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Foi na Póvoa do Varzim, em plenas “Correntes de
Escrita”, que pela última vez estive com o Eduardo Prado Coelho: já a
doença o carcomia, o que me levou a enterrar antigos machados de guerra.
Este “espírito cristão”, que empurra para a pieguice o comum dos
mortais, estava arrimado ao facto de me sentir animado com a presença de
dois amigos do peito que me quiseram acompanhar – o Aurelino Costa e o
Jorge Velhote.
Com tal disposição, demos (ele e eu) para recordar
os anos 60 quando ambos gatinhávamos literaturas pelas bandas do
“Juvenil” do “Diário de Lisboa”, cada qual hasteando a sua bandeira e
animando fações e tertúlias. Velhos tempos!... Íamos impulsionando
polémicas que eram guerras de alecrim, ao estilo de “crítica a”,
“crítica da crítica e “crítica da crítica crítica”. Enfim,
entusiasmava-nos e sentíamo-nos importantes com coisas que valiam muito
pouco: era a nossa forma de estarmos vivos e de nos animarmos contra
censuras pidescas e o já encarquilhado ditador que embalsamava o país.
Foi nessa altura que o Eduardo criou um grupo de
estudos ali para os lados do Rato, precisamente nas traseiras onde hoje
se arruma o PS. Já não me lembra quem me convidou para lá ir, suponho
que foi um sobrinho da Teresa Horta. O certo é que tive o prazer de
então alinhar com gente que me fora adversa (apesar dos avisos do Mário
Castrim) e que se revelaram a mergulhar nas águas dos mesmos interesses:
lembro-me do Luís Matoso, do Jorge da Silva Melo, do João Rafael Nunes…
Racismo era o tema por então discutido.
Pretendia-se demonstrar o demonstrado: que as raças eram invenção
ideológica, que não assentavam em nenhuma base científica, o que era
forma de revirar o dente à insuportável ditadura e de granjearmos
fundamentos teóricos que ajudavam os nossos interesses. Felizmente que
esses complexos rácicos abandonaram este fio de terra, aos trambolhões
com o fascismo, o corporativismo e quejandos pássaros da mesma plumagem.
Recordando essas aventuras, Eduardo e eu fomos
beberricando whisky no salão do hotel onde abancávamos. E aquecendo-nos
com sonhos breves que tivemos e que os assopros das idades foram
arrumando nas devidas prateleiras. Tiveram o seu armário próprio tal
como as camaradagens com Alberto Costa, recém-chegado de Alcobaça, o
José Pacheco Pereira, vindo do Porto, ou de João Bonifácio Serra, das
Caldas da Rainha. Coisas do “Juvenil”. Mas nestas andanças já
proliferavam outras razões políticas que episodicamente tinham demasiado
peso, ao ponto de regularem (e muito) a vida, as preocupações, os gostos
e os gestos. Tornei-me, com elas e com eles, ensimesmado “bicho do
mato”: mandei às urtigas perspetivas culturais, só retomadas em finais
dos anos 70, encharcado que fiquei de ideologia de manhã à noite –
respirava-a, deglutia-a, despejava-a, vestia-a e despi-a. Levou o seu
tempo a curar-me.
Este ínterim fabricou-me inimizades e amizades. Por
dá aquela palha, envolvia-me em brigas, a maior parte delas sem sentido.
Zangavam-se as comadres por algum bate-boca, ficava desviado de alguém
durante anos e anos, mastigando ódios que me saltavam ao local da
saliva. Assim determina a política que se tece de convencimentos vários
e que vale o que o tempo permite: levei séculos (pareceram) a recuperar
amizades deste modo atiradas para um canto, maltratadas como sarro de
questiúnculas que se provaram desumanas. Aos poucos, as vantagens da
democracia demostraram-me que essas desinteligências sabiam a muito
pouco quando comparadas com o peso das amizades que enformam a vida. E
fui arrumando as coisas no seu lugar.
Este rosário desembarquei certa vez, a uma mesa do
Nicola, no regaço de Jorge da Silva Melo. Mas o que, no entretanto, se
escafedeu de zangas e mais zangas sem sentido, isso é completamente
irrecuperável. E lamento. Lamento e aprendo.
Nuno Rebocho
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