REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

NUNO REBOCHO

 

O que Eduardo Prado Coelho

me ensinou

Nuno Rebocho (1945, Portugal). Escritor e jornalista.
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Foi na Póvoa do Varzim, em plenas “Correntes de Escrita”, que pela última vez estive com o Eduardo Prado Coelho: já a doença o carcomia, o que me levou a enterrar antigos machados de guerra. Este “espírito cristão”, que empurra para a pieguice o comum dos mortais, estava arrimado ao facto de me sentir animado com a presença de dois amigos do peito que me quiseram acompanhar – o Aurelino Costa e o Jorge Velhote.

Com tal disposição, demos (ele e eu) para recordar os anos 60 quando ambos gatinhávamos literaturas pelas bandas do “Juvenil” do “Diário de Lisboa”, cada qual hasteando a sua bandeira e animando fações e tertúlias. Velhos tempos!... Íamos impulsionando polémicas que eram guerras de alecrim, ao estilo de “crítica a”, “crítica da crítica e “crítica da crítica crítica”. Enfim, entusiasmava-nos e sentíamo-nos importantes com coisas que valiam muito pouco: era a nossa forma de estarmos vivos e de nos animarmos contra censuras pidescas e o já encarquilhado ditador que embalsamava o país.

Foi nessa altura que o Eduardo criou um grupo de estudos ali para os lados do Rato, precisamente nas traseiras onde hoje se arruma o PS. Já não me lembra quem me convidou para lá ir, suponho que foi um sobrinho da Teresa Horta. O certo é que tive o prazer de então alinhar com gente que me fora adversa (apesar dos avisos do Mário Castrim) e que se revelaram a mergulhar nas águas dos mesmos interesses: lembro-me do Luís Matoso, do Jorge da Silva Melo, do João Rafael Nunes…

Racismo era o tema por então discutido. Pretendia-se demonstrar o demonstrado: que as raças eram invenção ideológica, que não assentavam em nenhuma base científica, o que era forma de revirar o dente à insuportável ditadura e de granjearmos fundamentos teóricos que ajudavam os nossos interesses. Felizmente que esses complexos rácicos abandonaram este fio de terra, aos trambolhões com o fascismo, o corporativismo e quejandos pássaros da mesma plumagem.

Recordando essas aventuras, Eduardo e eu fomos beberricando whisky no salão do hotel onde abancávamos. E aquecendo-nos com sonhos breves que tivemos e que os assopros das idades foram arrumando nas devidas prateleiras. Tiveram o seu armário próprio tal como as camaradagens com Alberto Costa, recém-chegado de Alcobaça, o José Pacheco Pereira, vindo do Porto, ou de João Bonifácio Serra, das Caldas da Rainha. Coisas do “Juvenil”. Mas nestas andanças já proliferavam outras razões políticas que episodicamente tinham demasiado peso, ao ponto de regularem (e muito) a vida, as preocupações, os gostos e os gestos. Tornei-me, com elas e com eles, ensimesmado “bicho do mato”: mandei às urtigas perspetivas culturais, só retomadas em finais dos anos 70, encharcado que fiquei de ideologia de manhã à noite – respirava-a, deglutia-a, despejava-a, vestia-a e despi-a. Levou o seu tempo a curar-me.

Este ínterim fabricou-me inimizades e amizades. Por dá aquela palha, envolvia-me em brigas, a maior parte delas sem sentido. Zangavam-se as comadres por algum bate-boca, ficava desviado de alguém durante anos e anos, mastigando ódios que me saltavam ao local da saliva. Assim determina a política que se tece de convencimentos vários e que vale o que o tempo permite: levei séculos (pareceram) a recuperar amizades deste modo atiradas para um canto, maltratadas como sarro de questiúnculas que se provaram desumanas. Aos poucos, as vantagens da democracia demostraram-me que essas desinteligências sabiam a muito pouco quando comparadas com o peso das amizades que enformam a vida. E fui arrumando as coisas no seu lugar.

Este rosário desembarquei certa vez, a uma mesa do Nicola, no regaço de Jorge da Silva Melo. Mas o que, no entretanto, se escafedeu de zangas e mais zangas sem sentido, isso é completamente irrecuperável. E lamento. Lamento e aprendo.

Nuno Rebocho

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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