REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

 

MARÍLIA MIRANDA LOPES

Poemas

Marília Miranda Lopes (Portugal, 1969. Poetisa, crítica literária, dramaturga e escritorade canções, formou-se em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É professora de Língua Portuguesa do Ensino Secundário e formadora nas áreas das Didácticas Específicas e das Oficinas de Escrita – Poesia e Teatro.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Armazém 

Um riso

simples se houver

um clarão de encosta dourada

 

Um varrimento um provador

deste sabor que descubro

 

E não acho designação

são considero nem conjecturo

 

É tudo antigo e novo

Preciso de colher

sem exame

 

Indo de casta em casta

findo inebriada

 

E só preciso disto

do que fica em sumo

a inteireza do espaço desabitado

brutalmente expandida

 

O meu mosaico é o teu sossego

Estou em armazém. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Prelúdio 

Este prelúdio

folhas passas cascas de pêssego

 

Meto um bago à boca

nas noites de lareira acesa

 

Noite lá fora

uma escuridão de socalcos

bichos revolvendo o mosto

do pensamento

 

À cabeça vêm capões

Acender o meu lume este instante

 

Chego do palco negro

aconchego-me

trinco rosários de figos

 

Enquanto não abrem valados

no meu corpo. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Cais 

Deslocam-me no cais

as embarcações do tempo

 

Fico parada num ranger

de espaldas e marinhagem

no ar atordoado das pedregosas

onde medra o generoso

 

Rogam-me

vasilhas de versos vinhateiros

 

enquanto meteorológico

Dionísio celebra

a singularidade

 

A vindima é uma mulher bacante

de mão decidida na anca

ofertando cachos de uvas. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Relevo 

O ritmo dos movimentos

o olhar soalheiro

É com ele que me alinho na marcha

com gigos ao alto das costas

 

Será talvez o que suspende a tecnologia

talhado para a prova dura

sob a erupção

 

Em exercício sensual

desgovernado assoma

à varanda das montanhas

 

Do balcão assiste

à labuta das mãos

 

Um fio de suor

escorre das órbitas. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Magnitude 

Assim os meus nervos

em socalco nos veios

Assim o cingir da pulsação

no vestido que aperta

 

Ergue-se a Suprema

a que no “Reino” fortalece

a fragilidade dos pulsos

 

Uma arquejante

prece em vitral

corre sem vidraça

vegetação adentro

Ecoa no xisto argiloso

nos muros navalhados

 

A tórrida tarde pede chuva

o éter a doçura

Xarope e frutos libertados

 

É no desprendimento que fica sulcada a magnitude. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Engrenagem 

A vinha é uma máquina

na labuta dos dias

 

Na engrenagem há gente faminta

enterrando ervas daninhas

 

O bago é o sangue

na boca do lavrador

enquanto a sinistra

lhe faz sombra

e lhe revolve os molhos de junco

 

Pensamento moscatel ainda trincado

por essa corja de gente governante. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Electrifico-me 

Electrifico-me

nos passos na curva incerta

Choque entre agulhas – veias –

- caminho de ferro rumo a ti

 

Estremeço onde o sono me tem

na paragem

da ausência

 

Depois acordo dentro da vitrine

Século – tentáculo cujas pernas

se lançam para o exterior

em surto de ramos luminosos

onde as aves caem

electrocutadas

 

Grito

Eco – sede – ferida

nesse teu voo alucinado

 

Vens em sonora

água em derrame

sobre o fumo

 

Voas sobre a fuligem deste tempo

onde te perco. 

 

As minhas mãos 

Em concha as minhas mãos oferecem

o sabor da titânica

 

paisagem de ranchos

vindimadores numa estreita

 

dádiva

água criadora

serros montes encostas vales

terra lavrada

 

As brancas casarias avistam

o labutar dos membros

os rebanhos a chocalhar

ermas fora

 

O rio abre um sulco navegante

que se ergue em cachões difíceis

como estes braços

 

vergastando machos

que equilibram canastros

recalcados de uvas

 

onde poisam abelhas

pelo melaço. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Villa Regula 

Queria mostrar-te

este universo

montanhas vinhedos colheita vinho

 

Queria que sentisses nos dedos

árvores grainhas cestos bagos

e nos pés a textura

a húmida embarcação

 

Vejo-te neste território

orquestra e viuvez

reciclada dos frutos

 

Entre palavras a faina matinal

a terapia do folclore

ou a forma como se reciclam misérias

 

Queria mostrar-te a cereja

do país do vinho

 

É aqui

no colo sulcado

que escrevo navegante.  

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Suspensão 

Suspendemos o jardim

onde nos deixámos

como estátuas brancas

 

Suspendemos o brinco  - de - princesa

a escultura da noite

 

Resta-nos a água dourada

nascendo correndo desaguando

 

A transparência

com que nos vemos

submersos

 

Há um maremoto

na fenda húmida

de mármore. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

A turba 

À memória do grande poeta e amigo António Cabral 

A turba engole-me em sentidos

Pela manhã o disco referve

A minha antefebre esta volúpia

de aromas e cores

 

Vejo-me do arco

 

Dizes-me

para que me debruce na minha vez

e não escorregue na vertigem

 

Silencio-me

Deixo

que o Douro exale

 

A minha circunstância

é ser assim.  

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Douro 

Douro não fiques

serpente de rio entre montanhas

A tua gente é o teu sopro

e o sopro canto continuado

entre terra burilada

 

Duro em cantadas sílabas

rotação pronúncia

vibrato

 

És coro de moléculas

sangramento de memória

danada. 

(in “Castas” – Q de Vien Cadernos de A Porta Verde do Sétimo Andar) 

 

Tequilha 

Bebo uma tequilha de Frida

neste dia de finados

 

O chão treme, a segurança é termos um ninho na árvore

mais recolhida da indústria

 

Passa um mendigo esfarrapado que pára de cantar

 

Happy Birhday, fiéis defuntos!

Quero confraternizar com as feridas

Num danzón no salón México!

 

Anoitece no passeio dos olhos de fumo

Tiro a roupa. espero não regressar à realidade

 

Aqui morro com marimbas, despida.

Que me lancem, sôfregos versos,

os vagabundos invisíveis de Mictlán. 

(inédito -2013)

 

Amália transversal 

Mais aceso é o poema na máquina vocal

quando cantado.

 

A ardente esvoaça no palco, onde resgatamos o instante do destino, em retrato

A fortaleza com que nos amacia entranhas docemente. o som vai crescendo

com o despontar da lágrima contida. já sem palavras. só o timbre

 

Dentro, uma harmonia triste

 

Fado da lonjura - nevoeiro dos mortos e dos que ainda respiram nos faróis

Saudade - as horas sagradas, as da escuta. amarramos o horizonte

à crença nessa estirpe inatingível que voltará a erguer-se

como a voz, uma vez dormida ou embriagada

na sua poética de projecções

 

Navia olhará por nós, na correnteza das águas. a melodia transborda

a força dos versos na manhã clara

 

O povo sempre cantará. 

(inédito – 2013) 

 

Commodore 

É de Commodore que vamos

rente ao abismo

trilho nas mãos que fundem

ferro e fogo

 

Acendemos néons

inutilidades

Seguimos, ávidos de percurso

 

Há tenebrosos

Olhos na chuva que se projectam

Cansaços, sombras que toldam a corrida dos pássaros

enquanto da janela, em edição limitada

passa a história

 

que avisos nos fazem dos entroncamentos

das árvores que caem e dos desvios

e daqueles que saem calados

e dos que mais não falam, sentados na bruma?

 

Não nos avisam onde fica

a estação mais próxima:

Desistir 

(inédito -2013) 

 

Estrondo 

O estrondo não me provocava

 

As palavras ouvidas de encontro às portas

ou os instantes transpirados

estariam em menos de sete minutos na sala à direita

transformada em passagem

frincha dos olhos

 

 

Decidira percorrê-la, apesar da névoa

do grito lancinante a corrigir silêncios. entre nervos

apiedava-me da lisura quotidiana

 

 

Cada vez mais me sufocaria

a infinita ausência. 

(inédito -2013) 

 

Desbravamento 

Em cada passagem um desbravamento
mais do que mistério
ou ritual

Em cada transformação um sopro
mais do que passo
mais do que tempo

Que se brinde
ao Desconhecido
que trazemos dentro
que se brinde ao mover dos lábios
rente ao cálice,
revolucionário amor.
 

(inédito, 2013)

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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