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Quem fala com brasileiros, só ouve lamentações quanto à insegurança
em que vivem. Quem assiste aos telejornais, só toma conhecimento de
desgraças. São pessoas assassinadas barbaramente em assaltos de rua,
mesmo quando oferecem carro, carteira e nenhuma resistência; é aquele
infeliz que entra num hospital para curar uma ferida no braço e sai dele
com a perna amputada ou diretamente para o cemitério com uma injeção de
líquido fatal; é a criança atingida na cabeça por uma bala perdida; é
essa ou outra criança que espera oito horas nas urgências do hospital e
acaba por morrer sem assistência; é mais um desafortunado que espera
vinte e quatro horas no hospital, de peito aberto, após uma cirurgia ao
coração, porque não há fio de aço para costurar a ferida; é a mulher
espancada até à morte pelo marido ou vice-versa; são os corruptos
políticos que metem ao bolso os dinheiros públicos destinados aos
serviços de saúde e educação; são os telhados das escolas que desabam
sobre as crianças atentas à aula; são as crianças que espancam o
professor; são as corridas de carro mais espetaculares que as dos
filmes, em avenidas de trânsito cerrado, quando a polícia persegue um
grupo de criminosos; é o pior ainda que não me ocorre e a vós passe pela
imaginação.
Face a esta onda de violência, e sobretudo tratando-se, em muitos
casos, de crimes cometidos gratuitamente e com a maior frieza, o site
Terra até elaborou uma relação de mais de 30 crimes que abalaram os
brasileiros desde 1990 (http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/30-crimes-que-abalaram-o-brasil/
).
O Brasil tem
uma população de cerca de 197 milhões de habitantes, distribuídos por 26
estados e um distrito federal, numa superfície de 8.515.767,049 kms2 (a
área de Portugal é de 92.090 kms2). Não vou dividir 30, nem 300, nem
mesmo 300 mil crimes, por 1 ano, 27 estados e 197 milhões de habitantes,
apenas perguntar, dirigindo-me aos mass media, "a mídia" na versão
brasileira: e quantos espetáculos de cinema, circo, teatro, bailado,
quantos concertos, exibidos no Brasil em 2012, todos dignos de notícia,
passaram sem uma imagem, sem uma linha de reconhecimento, nesses mesmos
meios de comunicação? Quantas procissões, quantas missas cantadas,
quantos bailes, quantas paradas, quantos casamentos, quantos batizados,
tudo acontecimentos felizes, por isso dignos de registo, ocorreram em
2012, no maior silêncio dessa mídia? Corre pela Internet uma anedota que
regista a quantidade de pessoas nas cadeias, que transcrevo por
acreditar na verdade dos números que apresenta:
Um contribuinte teve sua declaração rejeitada pela Receita Federal
porque, aparentemente, respondeu a uma das questões incorretamente. Em
resposta à pergunta “Você tem dependentes?” o homem escreveu: “40.000
imigrantes ilegais, 10.000 viciados, 150.000 servidores públicos,
150.000 criminosos em nossas prisões, além de uma porrada de políticos
em Brasília e nos municípios.”. A Receita afirmou que o preenchimento
que ele deu foi inaceitável. Resposta do homem à Receita: “De quem foi
que eu me esqueci?”.
Sem anedota, houve tumultos recentes no estado de Santa Catarina, com
autocarros incendiados e inúmeros outros atos de vandalismo, de que
tinha resultado, à data em que deles fui informada, um morto e vários
feridos. Claro que estes acontecimentos correram pelos meios de
comunicação de meio mundo, chegaram-me ao conhecimento via Internet, mas
continua a ser verdade o que defendo: de um lado a mídia é quase
integralmente catastrófica e, de outro, o Brasil é um país pacato. O
Brasil não é só crime, praia, calor, asfalto ladeado por arranha-céus.
O que acima declaro vale também para Portugal, onde só a crise é
falada, mais o futebol, evidentemente. Aliás os nossos telejornais
dividem-se em três blocos: notícias catastróficas do país, notícias mais
ou menos catastróficas do estrangeiro, e notícias do futebol. Hoje, por
exemplo, muito tempo de antena tem sido concedido a esse raríssimo e
extraordinário acontecimento que é o aniversário de um futebolista. Os
meus parabéns igualmente, Ronaldo! Vivemos uma cultura da tragédia que
dá do mundo uma imagem tenebrosa, não porque o mundo tenha só essa face,
e ela seja a dominante, sim porque os meios de comunicação de massa, das
duas faces e mais da moeda, só oferecem a que julgam garantir-lhes maior
audiência, donde mais contributos da publicidade, logo mais dinheiro. A
dor rende, a alegria, só a do futebol.
Eu conheço outro Brasil, o Brasil pacato, e é desse que vou falar e
mostrar imagens, com a experiência das diversas viagens que nele tenho
empreendido, desde Recife, no norte, a Porto Alegre, no sul, sozinha ou
com a única companhia de Ana Luísa Janeira. Sem pacotes turísticos, sem
guias, sem itinerários rígidos. Duas senhoras ou só uma, indefesas, a
viajarem quase sempre de autocarro, com o povão, nesse país cuja imagem
interna é a de um bando de criminosos à coca em todas as esquinas.
O Brasil que me encanta não é o da modernidade, se bem que admire as
grandes cidades, com os seus bairros erguidos nas torres dos
arranha-céus, em cada um dos quais cabe mais do que a população da minha
terra, Britiande, como é o caso de Curitiba, no Paraná, para mencionar
não a maior, antes aquela onde passo a maior parte do tempo. E posso
começar pela casa onde me proporcionam familiar guarida, dita «o
castelo», isolada no interior da floresta. Não há armas na casa a não
ser as facas de cozinha, espadas e punhais ritualísticos, de eficácia
duvidosa em caso de defesa num assalto. Cães demasiado mansos guardam o
castelo; como ladram a qualquer borboleta, de pouco servem para alerta
de perigo. Os moradores, pacatos, nunca denunciaram temor, a despeito do
isolamento. Nem eu alguma vez senti medo, apesar de já ter acontecido
ficar sozinha em casa. O que existe é a lamentação contínua do
proprietário pela quantidade de crimes que ocorrem no Brasil. Tendo-lhe
comunicado o teor deste artigo, e que o mencionaria, ele contrariou-me
as ideias, como era de esperar, explicando que o castelo nunca foi
assaltado porque ele é detective e ex-delegado da Polícia. Pois sim,
caro Walmir Battu.
Em São Paulo costumo ficar em casa de amigos que não se trancam
dentro de casa. Vivem num alto prédio com segurança à entrada, no centro
da cidade. Se um estranho soubesse disto, bastava-lhe rodar o trinco
para entrar. Também esses proprietários do apartamento vivem no terror
constante de ser assaltados, e já foram, mas não fecham a porta à chave.
Talvez prefiram com isso minorar os estragos, na eventualidade de
arrombamento.
Mas o Brasil que me fascina é outro, não só por ser pacato, como
português. O Brasil que me encanta é o das cidadezinhas sossegadas à
beira de lagunas, rios e mangais, com o centro histórico a ressumar
arquitectura portuguesa, como Olinda, Laguna, Lapa, Morretes, Antonina
ou Paranaguá. São cidades-museu como Ouro Preto, Diamantina, Tiradentes
ou Mariana, no Estado de Minas Gerais, em que até a gastronomia, famosa
pelos torresmos, recorda o nosso país. Tal como recordam a nossa terra
os bordados e as cortinas de renda, as calçadas empedradas, as madeiras
grossas das portas e das escadas, as janelas de guilhotina. Em Ouro
Preto, com uma das universidades mais carismáticas, a Escola de Minas,
sobrevive o hábito coimbrão das repúblicas e das praxes aos caloiros. Já
Belo Horizonte, a capital, se demarca destas caracterizações, para
ascender às alturas dos prédios modernos, em geral, em todo o Brasil, de
bela arquitetura. Qualquer central de ônibus de cidadezinha mediana, por
exemplo, exibe alguma graça arquitetónica, a cujos calcanhares não
chegam as do Porto ou de Lisboa.
Para voltar
a Belo Horizonte, o que mais me impressionou na cidade, de que deixo
duas fotos que devem ser imaginariamente coladas uma à outra pelos
leitores, foi o facto de cidade rica estar mesmo ao lado da favela. Duas
faces do Brasil separadas apenas por um vale, a riqueza e a miséria, um
morro recamado de casitas encaixadas umas nas outras, quase sem ruas
(uma apenas parece existir, por onde via circular autocarros), o outro
eriçado de arranhacéus bem espaçados nas largas ruas.
Os brasileiros são afáveis, carinhosos. Aproximam-se para fumar
connosco quando, num jardim, nos sentamos para saborear um cigarro.
Metem conversa, querem saber das nossas terras, ao descobrirem que somos
portugueses, porque em muitas famílas brasileiras, desde as pobres às
abastadas, há sempre ascendentes lusos. Na maior parte, porém, ignoram
de que parte de Portugal eram oriundos os antepassados. É o seu
interesse nas raízes que desencadeou a pesquisa da árvore genealógica.
Ora da minha parte o interesse vem de verificar que o Portugal antigo,
que vamos perdendo por cá, é preservado com o maior carinho no Brasil.
Por falar em
jardins, espaços edénicos e por isso pacatos, há-os belíssimos, dou
apenas três exemplos curiosos: Inhotim, uma enorme propriedade que, além
do elemento vegetal, inclui vários pavilhões de arte, eles mesmos obras
de arte da arquitetura contemporânea, e o recente Horto Botânico de
Ouro Preto, obra do pensamento de Anna Parsons, em Minas Gerais. E o
«Sítio do Picapau Amarelo», em Taubaté, no Estado de São Paulo, em que
há actividade diária das personagens, convidando os visitantes a
participar em leituras encenadas da obra de Monteiro Lobato.
Quase todo o Brasil sossega sob uma colcha de floresta, a Amazónia,
de que só conheço uma fímbria peruana, e a Mata Atlântica, já muito
familiar. Isto a despeito da desmatação constante.
O que me encanta patenteia-se mais nas imagens do que nas palavras.
Como estas já vão longas, remato com o que me chega a incomodar, no
Brasil: a proliferação de igrejas não-católicas, patente nas prédicas
televisivas, à noite, e na quantidade de igrejas. Na televisão, fazem-se
todas as noites mais milagres do que em Fátima. Para cada igreja
católica, nas cidadezinhas por onde andei este ano, no Paraná, via
quatro e cinco igrejas baptistas, evangélicas, do Reino de Deus e
similares. Por vezes, ao longo das estradas, quando seguia de autocarro,
essas igrejas protestantes apareciam em lugares desertos, sem nenhuma
povoação à vista. Livrarias evangélicas, também vi muitas.
Contaram-me que nas igrejas dos grandes centros urbanos, com
capacidade para milhares de crentes, se recolhem esmolas com máquina de
cartão de crédito. E que numa outra o padre se gabou de que acabaria a
assembleia com verba suficiente para o autocarro cuja falta iria
declarar na cerimónia. Acabou com ela, chegando a convencer os elementos
mais abastados do auditório a emprestarem aos que não tinham, ali mesmo,
na igreja. Não pedia cinco reais, pedia cinco mil ou mais. Dado o poder
de convicção, e correlatas dimensões do auditório, não espanta que
certos líderes religiosos estejam a receber passaporte diplomático.
Há quem lamente que o Brasil, nas sondagens mais recentes, já não
seja um país de religião maioritariamente católica. Fui à missa duas
vezes, ao domingo, e as igrejas estavam meio vazias. Já assisti a missas
protestantes em imensos espaços fechados. Senti medo, não por causa das
pessoas, sim da multidão. Mas realmente atrai o diálogo do líder
religioso com o público, a emocionada participação deste, a presença da
orquestra e as belas vozes dos cantores. Porém a imensa concentração de
pessoas é algo alarmante.
Não é a desproporção entre protestantes e católicos que me incomoda,
as pessoas são livres de rejeitar um credo e aceitar outro, ou outros,
cumulativamente, como não é raro no Brasil. O que incomoda é a
facilidade com que milhões de pessoas se deixam endoutrinar, em tantos
casos por charlatães.
Casa dos Banhos, 6 de fevereiro de 2013
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