Desde a hora do nosso nascimento até à hora em que partimos
o caos donde viemos manifesta-se.
Não percebemos porque somos acolhidos na nossa família com
uma exuberância que nos incomoda, por isso choramos muito quando somos
bebés.
Quando vamos para o infantário é um caos. Sorriem, fazem exclamações,
afagam-nos as costas com violência e alçam-nos as pernas para mudar as
fraldas. Fazem tudo a sorrir mas é um pesadelo. Nem sempre a eficiência
acompanha o carinho, a suavidade. Somos tão frágeis e viemos de um
ambiente protegido. Há muito ruído à nossa volta.
Quando nos começam a tentar educar pensam que somos de plasticina. Cada
família com a sua arte para nos moldar a seus costumes e intenções.
Muitas vezes não cabemos na forma e gesticulamos doidamente. É um caos.
A
escola é onde encontramos os primeiros selvagens. É onde aprendemos um
vocabulário que estava, quase sempre omisso ou disfarçado em nossas
casas. Sai caro aos nossos pais a nossa iniciação. Aprendemos primeiro
os palavrões, os gestos obscenos. Informam-nos que são ordinários esses
termos e fazem cara feia. Os nossos professores parecem gente muito
cansada. Às vezes falam com muita rapidez e o melhor é desligar.
Quando regressamos a casa é uma sucessão de deveres. Chegamos à espera
de só fazer o que nos apetece e começam outras obrigações. Se há tempo
brincam connosco e dão muitos beijinhos e parece-nos que tudo vai correr
bem. Mas começa um chorrilho de obrigações: o banho, que é das poucas
coisas agradáveis, tem regras e horários... a comida que nem sempre é a
que gostamos mas a que dizem fazer bem ou apenas o que foi possível
adquirir. A hora de deitar que desejamos atrasar para poder estar mais
tempo com os grandes...é um
caos.
Quando os professores nos avaliam não se apercebem que tentaram ensinar
e educar segundo fórmulas e esquemas que poderão formatar-nos para um
mundo que era o deles, mas não será o nosso. A evolução é agora a
aceleração para outro caos.
Ao
chegarmos à adolescência começamos a perceber o muito do errado na vida
que escolheram para nós. Ou fingimos não perceber ou a revolta
instala-se. Geralmente somos tidos como jovens insurrectos que deviam
ser abrigados em armários para um período de estágio. Se esse estágio
fosse num local à nossa escolha podia ser que a pressão abrandasse. Não!
Teremos que nos sujeitar a entrar no caos onde eles teimam em viver.
Eles exigem o sucesso para nós, mesmo quando nunca o tiveram.
O
sexo oposto que algumas vezes nos incomodou porque era uma parte de nós
que abominávamos começa a atrair-nos. Parece que talvez possamos
encontrar uma âncora que fomos perdendo ao conhecer os nossos maiores e
as suas contradições.
É
esse apelo, que tão depressa parece atracção mental como física que nos
exaspera. Para experimentar essa via, talvez a nossa libertação,
esbarramos com os conceitos da nossa família e, ainda por acréscimo, com
os conceitos daquele ou daquela que nos parecia uma porta aberta para a
fuga no amor.
Aos
poucos percebemos que as palavras - já há muito duvidávamos delas! – nem
sempre correspondem ao que sentimos. É então que percebemos porque
quiseram que não fossemos selvagens mas é um desejo impossível. É o
caos.
A
arrogância dos nossos educadores, por mais bem-intencionada que seja, é
sempre um princípio redutor. Arquimedes, há quantos anos! sabia que não
havia dogmas e sim postulados porque um homem que estuda a ciência e
também a humanidade nunca encontra a Verdade. Os que educam, e nós, os
educandos, vivemos na dúvida, no caos.
Na
maioria das famílias há também o encaminhamento para uma religião. Com
um Deus as coisas ficam mais fáceis de ensinar. O pior é quando
questionamos o inquestionável! Um Deus monoteísta resolve um mundo de
dúvidas para uma maioria e deixa outra facção perdida e a viver no caos.
Quando nos parece encontrar uma estabilidade relativamente afectiva é
porque nos submetemos a qualquer esquema. Geralmente estamos a
envelhecer e o caos pode ser substituído por cansaço.
Temos
duas escolhas. Afinal é simples. Aceitamos todas as incoerências,
praguejamos enquanto tentamos dormir, fazemos concessões para atingir
alguma comodidade. Refugiamo-nos nas leituras, nas pesquisas na
internet, onde as nossas dúvidas percorrem caminhos labirínticos. Isto
quando gostamos de ler e enfrentar o caos dos outros pensadores. É um
caos mitigado porque atingimos o caos de outros homens que, como nós,
quase todos muito superiores a nós, espraiam o conhecimento científico,
espiritual. Sempre uma dúvida, um caos.
Quando olhamos as crianças que têm saúde física e são amadas, embora
condicionadas à sua civilização, sentimos que o ser humano tem momentos
de apaziguamento, tolerância. Usufruímos de alguma beatitude. Dizemos:
somos felizes. Felizes perante o caos.
Manuela Nogueira
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