REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

 

MANUELA NOGUEIRA

Bing-Bang. O Caos

Manuela Nogueira (Portugal). Maria Manuela Nogueira Rosa Dias Murteira é poeta, ficcionista, autora de obras para a infância, colaboradora de jornais e revistas, rádio e televisão. Co-fundadora da Fundação Fernando Pessoa.

 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Desde a hora do nosso nascimento até à hora em que partimos o caos donde viemos manifesta-se.

Não percebemos porque somos acolhidos na nossa família com uma exuberância que nos incomoda, por isso choramos muito quando somos bebés.

Quando vamos para o infantário é um caos. Sorriem, fazem exclamações, afagam-nos as costas com violência e alçam-nos as pernas para mudar as fraldas. Fazem tudo a sorrir mas é um pesadelo. Nem sempre a eficiência acompanha o carinho, a suavidade. Somos tão frágeis e viemos de um ambiente protegido. Há muito ruído à nossa volta.

Quando nos começam a tentar educar pensam que somos de plasticina. Cada família com a sua arte para nos moldar a seus costumes e intenções. Muitas vezes não cabemos na forma e gesticulamos doidamente. É um caos.

A escola é onde encontramos os primeiros selvagens. É onde aprendemos um vocabulário que estava, quase sempre omisso ou disfarçado em nossas casas. Sai caro aos nossos pais a nossa iniciação. Aprendemos primeiro os palavrões, os gestos obscenos. Informam-nos que são ordinários esses termos e fazem cara feia. Os nossos professores parecem gente muito cansada. Às vezes falam com muita rapidez e o melhor é desligar.

Quando regressamos a casa é uma sucessão de deveres. Chegamos à espera de só fazer o que nos apetece e começam outras obrigações. Se há tempo brincam connosco e dão muitos beijinhos e parece-nos que tudo vai correr bem. Mas começa um chorrilho de obrigações: o banho, que é das poucas coisas agradáveis, tem regras e horários... a comida que nem sempre é a que gostamos mas a que dizem fazer bem ou apenas o que foi possível adquirir. A hora de deitar que desejamos atrasar para poder estar mais tempo com  os grandes...é um caos. 

Quando os professores nos avaliam não se apercebem que tentaram ensinar e educar segundo fórmulas e esquemas que poderão formatar-nos para um mundo que era o deles, mas não será o nosso. A evolução é agora a aceleração para outro caos.

Ao chegarmos à adolescência começamos a perceber o muito do errado na vida que escolheram para nós. Ou fingimos não perceber ou a revolta instala-se. Geralmente somos tidos como jovens insurrectos que deviam ser abrigados em armários para um período de estágio. Se esse estágio fosse num local à nossa escolha podia ser que a pressão abrandasse. Não! Teremos que nos sujeitar a entrar no caos onde eles teimam em viver. Eles exigem o sucesso para nós, mesmo quando nunca o tiveram.

O sexo oposto que algumas vezes nos incomodou porque era uma parte de nós que abominávamos começa a atrair-nos. Parece que talvez possamos encontrar uma âncora que fomos perdendo ao conhecer os nossos maiores e as suas contradições.

É esse apelo, que tão depressa parece atracção mental como física que nos exaspera. Para experimentar essa via, talvez a nossa libertação, esbarramos com os conceitos da nossa família e, ainda por acréscimo, com os conceitos daquele ou daquela que nos parecia uma porta aberta para a fuga no amor.

Aos poucos percebemos que as palavras - já há muito duvidávamos delas! – nem sempre correspondem ao que sentimos. É então que percebemos porque quiseram que não fossemos selvagens mas é um desejo impossível. É o caos.

A arrogância dos nossos educadores, por mais bem-intencionada que seja, é sempre um princípio redutor. Arquimedes, há quantos anos! sabia que não havia dogmas e sim postulados porque um homem que estuda a ciência e também a humanidade nunca encontra a Verdade. Os que educam, e nós, os educandos, vivemos na dúvida, no caos.

Na maioria das famílias há também o encaminhamento para uma religião. Com um Deus as coisas ficam mais fáceis de ensinar. O pior é quando questionamos o inquestionável! Um Deus monoteísta resolve um mundo de dúvidas para uma maioria e deixa outra facção perdida e a viver no caos.

Quando nos parece encontrar uma estabilidade relativamente afectiva é porque nos submetemos a qualquer esquema. Geralmente estamos a envelhecer e o caos pode ser substituído por cansaço.

Temos duas escolhas. Afinal é simples. Aceitamos todas as incoerências, praguejamos enquanto tentamos dormir, fazemos concessões para atingir alguma comodidade. Refugiamo-nos nas leituras, nas pesquisas na internet, onde as nossas dúvidas percorrem caminhos labirínticos. Isto quando gostamos de ler e enfrentar o caos dos outros pensadores. É um caos mitigado porque atingimos o caos de outros homens que, como nós, quase todos muito superiores a nós, espraiam o conhecimento científico, espiritual. Sempre uma dúvida, um caos.

Quando olhamos as crianças que têm saúde física e são amadas, embora condicionadas à sua civilização, sentimos que o ser humano tem momentos de apaziguamento, tolerância. Usufruímos de alguma beatitude. Dizemos: somos felizes. Felizes perante o caos.

 

 

Manuela Nogueira                                                

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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