TRÊS POEMAS
ANTIGOS COLHIDOS
À SOMBRA DO SOL E REFUNDIDOS À INTENÇÃO DE E POR ERASMO
CABRAL DE ALMADA
(TERCEIRA VERSÃO)
1
OLÍVIA
(TERCEIRA
VERSÃO)
À memória de Olívia Varela,
flor antiga e primeva de Assomada
Às poetisas amigas Regina Correia e Carlota de Barros
Ouve Olívia:
são obscuros
os caminhos da Assomada
e a noite
(im)perceptível
satura-se
de corvos ridentes
crocitando sobre a flor
do teu corpo desfeito
estendido sobre o dia
manchado de vinho
O teu gargalhar
é uma antiga lembrança
fugaz e longínqua
das nocturnas orgias
e dos
senhores
curvados
em carnal solilóquio
sobre a frescura dos teus seios
dos seus êxtases e devaneios
debruçados retesados
em carnívoro circunlóquio
sobre a aquosa e enluarada
ardência dos teus olhos
embebidos de insónia e aguardente
E os tempos perderam-se
nos antigos atalhos
que levavam
ao balcão da imolação
da carne
a troco de sorrisos
em cifra e cifrão
a troco de carícias
em mijo e milho
sob o teu fosco e perdido olhar
de princesa das noites murchas
E os tempos perderam-se
no teu riso perdido
retinindo
nos caminhos obscuros
da Assomada
a caminho de Gilbispo
e do catre de recordações
Ouve Olívia:
são obscuros
os caminhos da Assomada
e visíveis
as suas pegadas
sobre o rio tinto
do teu riso empastado
de tristezas
Mas
porque insistes
em gargalhar
defronte do corpo
do velho cipreste
verde
da praça da Assomada?
Mas
porque persistes
neste diálogo - epílogo
com o vento
e com as folhas secas
da rua?...
2
QUADROS DE
LONGE
(VERSÃO
TERCEIRA)
Ao Zé di Nair, agora mais
conhecido
por José Maria (Pereira) Neves,
seu antiquíssimo nome de registo, de baptismo, de escola e de
militante,
seu recente nome de político e de primeiro-ministro caboverdiano
I
Longe.
Longe estão
os devoradores do destino.
Numa redoma
escarlate
impenetrável
jazem saciados
descansando-se
das múltiplas digestões.
Longe.
Longe estão
os predadores das utopias.
Numa modorra
sonolenta
compenetrada
jazem prostrados
escarnecendo
do estio dos passos
e das mudas sublevações
dos transeuntes do quotidiano.
Longe.
Longe estão
os sonegadores
dos testamentos
lavrados para os dias vindouros
claríssimos
sempre ardentes
nas suas secretas exasperações
sempre prementes
nas suas súbitas aparições.
Numa bruma
cinzenta
irrespirável
jazem ofegantes
conspirando
contra a angústia
dos corpos erectos
postados sobre o verde
erodido das praças recostadas
ao canto conspurcado
das aves do crepúsculo.
Longe.
Longe estão
os mastigadores do orvalho
das madrugadas.
Numa mortalha
dourada
refulgente
convalescem agonizantes
conjurando
contra o desassossego
das palavras impacientes
nas suas silenciosas subversões
contra
as envelhecidas genealogias
dos sonhos cronometrados
no compasso dos calendários petrificados
sob as envelhecidas efígies
das estações.
Longe estão
os comedores do canto
das alvoradas.
Longe estão
ressonando
insípidos e impassíveis
no limbo da imponderabilidade.
Longe.
Longe estão
os que dormem as sestas
estirados sobre as sextas-feiras
e congeminam planos
e entoam hinos fúnebres
para os fins das caminhadas.
II
Ficam-nos
o candelabro de sombras
edificado sobre a pedra inexaurível
da clandestinidade dos sonhos
a subversiva solidão
do verde áspero e irónico
que desponta
do seco destino da secreta
predestinação das ilhas.
Restam-nos
o paraíso das águas
soterrado no cabo da infância
o fervilhar do porvir
no abraço da ribeira e do mar
e o sonho do
poema de amanhã
no alforge de caminhante…
3
EXÍLIO
(VERSÃO
TERCEIRA)
Ao Zona, agora mais conhecido
como Jorge Carlos (de Almeida) Fonseca,
seu já antiquíssimo nome de igreja, de poeta surrealista,
de militante clandestino e de académico,
seu recente nome de político e de chefe de estado caboverdiano
I
Dias
e mais dias
turvos
translúcidos
na ondulação
das madrugadas
curvas
impregnando
com
Tejo e nostalgia
a face alagada
de pátria e
distância
intumescendo
com tédio e melancolia
as sucumbidas mãos
do desterrado
latejando indóceis
farejando
clandestinas
o nocturno estremecer
das longínquas narinas
das calçadas da Praia-Maria
II
O mar é um rio
e quando
na extenuada vigília da lonjura
desagua
é uma ribeira sem amanhã
compulsivamente exaurindo-se
na saudade faminta
da ilha estéril e interdita
III
É então que
sozinho
o expatriado constrói
as dimensões
do exílio e da solidão
como a um poço
irreversivelmente empedrado
e inundado de recato e tristeza
IV
Sozinho
no seu poço
o exilado cisma
que só não morre
quem nunca nasceu
Sozinho
no seu poço
o asilado cisma
que só não nasce
quem nunca soube
do poço do perecimento
V
Solitário
na sua dor
o deportado cisma
que só não renasce
quem nunca se negou a entregar
à implacável rotina do carniceiro
a carne nua táctil e sua
e ao severo silêncio do confessor
uma nesga da sua alma
- ínfimo conquanto valioso quinhão
na mesura e no peso do remorso
sopesado no tempo e na medida da dignidade
Solitário
na sua dor
o banido cisma
no ressentimento
que prematuro e incendiário
rescende na memória
das águas e da infância
e em lume se refaz
e preenche de fúria
as fissuradas algemas do riso
e inunda de impotência
as fracturadas paredes do cárcere
VI
Emparedado
e sozinho
transfigurado em forçado andarilho
dos inéditos abismos da sua exasperação
o renegado transita
da angústia da mordaça
para a memória da palavra
e cisma
na breve flor
que todavia germina
da prematura ruína do corpo
do moribundo olor
e dos restos nauseabundos da tarde
VII
Sozinho
e emparedado
transfigurado em esforçado peregrino
dos exorbitantes poços dos transitáveis
fossos da sua imaginação
de um poço
para outro poço
transita o auto-exilado
e conclui
que iguais e funestas
são as dimensões de um e de outro
quando a solidão somente circundam
e medita
na frágil e comovida flor
que nos versos chora
e tal o súbito e previsível esplendor
de todos os
setembros
tal o ofuscante relampejar
das
convulsões há muito
aguardadas
se liberta
iluminando
a dor emparedada
desses tempos de pedra
de flagelação da alma
de lenta
derruição do corpo…
JOSÉ LUÍS
HOPFFER C. ALMADA
Lisboa, 6 de
Janeiro de 2013
(Nota do
autor: os presentes poemas foram publicados pela primeira vez na obra em
dois volumes À SOMBRA DO SOL (1990), constando uma sua segunda versão na
edição de Dezembro do JORNAL DA CULTURA, de Angola)
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