REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA


Três poemas antigos

    JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA (CABO VERDE).
Jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico.
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  

Revista InComunidade (Porto)

 
 
 
 

TRÊS POEMAS ANTIGOS COLHIDOS À SOMBRA DO SOL E REFUNDIDOS À INTENÇÃO DE E POR ERASMO CABRAL DE ALMADA                            (TERCEIRA VERSÃO)

 

         1

     OLÍVIA

(TERCEIRA VERSÃO)

                 À memória de Olívia Varela,

                 flor antiga e primeva de Assomada

                Às poetisas amigas Regina Correia e Carlota de Barros

              

Ouve Olívia:

são obscuros

os caminhos da Assomada

e a noite

(im)perceptível

satura-se

de corvos ridentes

crocitando sobre a flor

do teu corpo desfeito

estendido sobre o dia

manchado de vinho

 

O teu gargalhar

é uma antiga lembrança

fugaz e longínqua

das nocturnas orgias

 e dos senhores

curvados 

em carnal solilóquio

sobre a frescura dos teus seios

dos seus êxtases e devaneios

debruçados retesados

em carnívoro circunlóquio

sobre a aquosa e enluarada

ardência dos teus olhos

embebidos de insónia e aguardente

 

E os tempos perderam-se

nos antigos atalhos

que levavam

ao balcão da imolação

da carne

a troco de sorrisos

em cifra e cifrão

a troco de carícias

em mijo e milho

sob o teu fosco e perdido olhar

de princesa das noites murchas

 

E os tempos perderam-se

no teu riso perdido

retinindo

nos caminhos obscuros

da Assomada

a caminho de Gilbispo

e do catre de recordações

 

Ouve Olívia:

são obscuros

os caminhos da Assomada

e visíveis

as suas pegadas

sobre o rio tinto

do teu riso empastado

de tristezas

 

Mas

porque insistes

em gargalhar

defronte do corpo

do velho cipreste

verde

da praça da Assomada?

 

Mas

porque persistes

neste diálogo - epílogo

com o vento

e com as folhas secas

da rua?...

            2

QUADROS DE LONGE

(VERSÃO TERCEIRA)

                     Ao Zé di Nair, agora mais conhecido

                     por José Maria (Pereira) Neves,

                     seu antiquíssimo nome de registo, de baptismo, de escola e de militante, 

                     seu recente nome de político e de primeiro-ministro caboverdiano

I

Longe.

Longe estão

os devoradores do destino.

 

Numa redoma

escarlate

impenetrável

jazem saciados

descansando-se

das múltiplas digestões.

 

Longe.

Longe estão

os predadores das utopias.

 

Numa modorra

sonolenta

compenetrada

jazem prostrados

escarnecendo

do estio dos passos

e das mudas sublevações

dos transeuntes do quotidiano.

 

Longe.

Longe estão

os sonegadores  dos testamentos

lavrados para os dias vindouros

 claríssimos

sempre ardentes  

nas suas secretas exasperações

sempre prementes

nas suas súbitas aparições.

 

Numa bruma

cinzenta

irrespirável

jazem ofegantes

conspirando

contra a angústia

dos corpos erectos

postados sobre o verde

erodido das praças recostadas

ao canto conspurcado

das aves do crepúsculo.

 

Longe.

Longe estão

os mastigadores do orvalho

das madrugadas.

 

Numa mortalha

dourada

refulgente

convalescem agonizantes

conjurando

contra o desassossego

das palavras impacientes

nas suas silenciosas subversões

contra  as envelhecidas  genealogias

dos sonhos cronometrados

no compasso dos calendários petrificados

sob as envelhecidas efígies

das estações.

 

Longe estão

os comedores do canto

das alvoradas.

 

Longe estão

ressonando

insípidos e impassíveis

no limbo da imponderabilidade.

 

Longe.

Longe estão

os que dormem as sestas

estirados sobre as sextas-feiras

e congeminam planos

e entoam hinos fúnebres

para os fins das caminhadas.

II

Ficam-nos

o candelabro de sombras

edificado sobre a pedra inexaurível

da clandestinidade dos sonhos

a subversiva solidão

do verde áspero e irónico

que desponta

do seco destino da secreta

predestinação das ilhas.

 

Restam-nos

o paraíso das águas

soterrado no cabo da infância

o fervilhar do porvir

no abraço da ribeira e do mar

e o sonho do poema de amanhã

no alforge de caminhante…

           3

        EXÍLIO

(VERSÃO TERCEIRA)

                     Ao Zona, agora mais conhecido

                    como Jorge Carlos (de Almeida) Fonseca,

                    seu já antiquíssimo nome de igreja, de poeta surrealista,

                    de militante clandestino e de académico,

                    seu recente nome de político e de chefe de estado caboverdiano      

 

I

Dias

e mais dias

turvos

translúcidos

na ondulação

das madrugadas

curvas

impregnando

com  Tejo e nostalgia

a face alagada

 de pátria e distância

intumescendo 

com tédio e melancolia

as sucumbidas mãos

do desterrado

latejando indóceis

 farejando clandestinas

o nocturno estremecer

das longínquas narinas

das calçadas da Praia-Maria

 

II

O mar é um rio

e quando

na extenuada vigília da lonjura

desagua

é uma ribeira sem amanhã

compulsivamente exaurindo-se

na saudade faminta

da ilha estéril e interdita

 

III

É então que

sozinho

o expatriado constrói

as dimensões

do exílio e da solidão

como a um poço

irreversivelmente empedrado

e inundado de recato e tristeza

IV

Sozinho

no seu poço

o exilado cisma

que só não morre

quem nunca nasceu

 

Sozinho

no seu poço

o asilado cisma

que só não nasce

quem nunca soube

do poço do perecimento  

 

V

Solitário

na sua dor

o deportado cisma

que só não renasce

quem nunca se negou a entregar

à implacável rotina do carniceiro

a carne nua táctil e sua

e ao severo silêncio do confessor

uma nesga da sua alma

- ínfimo conquanto valioso quinhão

na mesura e no peso do remorso

sopesado no tempo e na medida da dignidade

                  

Solitário

na sua dor

o banido cisma

no ressentimento

que prematuro e incendiário

rescende na memória

das águas e da infância

e em lume se refaz

e preenche de fúria 

as fissuradas algemas do riso

e inunda de impotência

as fracturadas paredes do cárcere

 

VI

Emparedado

e sozinho

transfigurado em forçado andarilho

dos inéditos abismos da sua exasperação

o renegado transita

da angústia da mordaça

para a memória da palavra

e cisma

na breve flor

que todavia germina

da prematura ruína do corpo

do moribundo olor

e dos restos nauseabundos da tarde

 

VII

Sozinho

e emparedado

transfigurado em esforçado peregrino

dos exorbitantes poços dos transitáveis

fossos da sua imaginação

de um poço

para outro poço

transita o auto-exilado 

e conclui

que iguais e funestas

são as dimensões de um e de outro

quando a solidão somente circundam

e medita

na frágil e comovida flor

que nos versos chora

e tal o súbito e previsível esplendor

 de todos os setembros

tal o ofuscante relampejar

 das convulsões  há muito aguardadas

se liberta

iluminando

a dor emparedada

desses tempos de pedra

de flagelação da alma

 de lenta derruição do corpo…

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA

Lisboa, 6 de Janeiro de 2013

(Nota do autor: os presentes poemas foram publicados pela primeira vez na obra em dois volumes À SOMBRA DO SOL (1990), constando uma sua segunda versão na edição de Dezembro do JORNAL DA CULTURA, de Angola)

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL