REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

 

FERNANDO GRADE

Muito longa memória para o poeta
Ruy Belo

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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DIVÓRCIO II
Pus os teus beijos debaixo do rabo.
 
 
 
MUITO LONGA MEMÓRIA

PARA O POETA RUY BELO

        "Nenhum cristão deve ser mercador"
        (S. Jerónimo e Santo Agostinho)

 

Posso estar deitado ao comprido nesta cama
as unhas grossas, enormes, os dedos em concha
apontando os móveis da casa, e ter a janela aberta
de par em par escancarada para o bulício dos carros
para os beijos trocados na rua rente ao candeeiro
para as mulheres vestidas de preto negríssimo
que passam com carregos à cabeça;
poderei ter as horas todas para pensar, fumá-las, e
saúde muita, o cheiro quase infantil das godécias
os retratos de oblíquas viagens pela praia fora,
mas nenhum silêncio flor ou ave doida fará esquecer a tua
                                                                 [morte longínqua
nos antípodas (não foi em Queluz?),
e regressas assim a estas paredes de musgo bom
donde os teus versos nunca saíram, o riso que
deixavas na água, os teus versos, o alto poema:
gaivota viajada por dentro de casa
e tão dada ao sossego, tão de cereja a boca que soltaste
sobre os rios, o mar saloio. E pó de pedra e ranço
nunca serás.
 
 
 
 
Chegas morto, porém,fuzilado na alma às páginas das gazetas
 
que pouco sabiam da tua pessoa ou sentiam. Tampouco foste do
 
                                                                                           [negócio
 
dos vates, brocados, chiadices, morreste quase anónimo
 
mas defendido é certo pelos quarenta primos que são os poetas
 
                                                                                           [daqui.
 
Quem apenas viveu a tua morte letra impressa
 
em jornais repletos de políticos e pandeiretas
 
deve ter encolhido os ombros e pensado
 
que -- se tanto sobre ti diziam hoje -- é porque dos mortos ninguém
 
                                                                                            [diz mal
 
e a morte não passa de mercadoria romântica.
 
Mas contigo foram outros e floridos os lenços de acenar.
 
Estamos todos mais pobres e
 
varados por balas de terra nua junto ao coração.
 
Quem pegará na flauta ao chão descida?,
 
quem tocará agora nas margens do grande rio Eufrates? 
 
 
 
Como cigarra devastada pelas tranças
 
estás ainda virado para o pinhal -- e cantas.
 
Quotidiana e de aldeias brancas a morte em que crias
 
católico assim também eu fora, antes do sonho noutro barco
 
embarcado, diverso trapézio ecuménico.
 
Aqui tenho as tuas falas feitas de brisa e cal
 
no meio de outros mortos-vivos como tu
 
as praias explodem a Oeste.
 
E de novo regressas aos jornais a barba eternamente por fazer
 
e o espanto viajará em muitos olhos
 
por antes disso não te saberam o nome: de corridas a pé ou
 
a cavalo, bicicletas ou bólides, não te reconhecem o rosto
 
como trepador de Pirenéus, fadista de beco ou toureiro janota.
 
E por bastos anos serás sinaleiro da água
 
da ternura

homem ao centro descendo ao centro da terra
 
por muitos sítios. Talvez tenhas agora a alma desportiva
 
que sempre quiseste ter, oh adepto do grande campeão
 
José Maria Nicolau.

 
   
 
Renovados estão os poderes que possuias sobre o fogo
 
e à sombra da tua memória vão ser encenados outros crimes e
 
desastres
 
outras pombas desastradas outros dias de silêncio
 
mas jamais esqueceremos o vaso de gerânios que deixaste.
 
Morreste? Ainda e sempre, hoje, pelo sítio do púbis.
 
Eternamente estarás quedo e mudo a ver passar o rio
 
o grande  rio Eufrates que corre igualmente à minha porta.
 
E é por isso que a morte não são botas inchadas de sebo
 
e moscas ruins ou somente fardos de feno.
 
 
 
Se o Cesário Verde ainda fosse vivo, isto é
 
se fosse nosso agora -- iria também ao teu enterro.   
 
 
 
Estoril - 10 de Agosto de 1978
(in 25 ANOS DE POESIA ANTOLOGIA 1962-1987".
Edições Mic. Colecção Salamandra/12, Estoril,
Janeiro de 1988. Esgotado)
  
HAIKAI CONTRA A GEOMETRIA ROMÂNTICA
        
 
 
 
Nunca tive jeito para a geometria

porque vejo sempre na pirâmide
o suor de quem a construía.
 
 

FERNANDO José da Costa GRADE (Portugal, 1943)
Poeta, pintor, cronista, ficcionista, crítico de arte, jornalista, escultor e dinamizador cultural. Poeta com vasta obra publicada, constituída por 29 títulos, de onde sobressaem "O VINHO DOS MORTOS" (em 5ª. edição), "SAUDADES DE SER ÍNDIO" e a antologia "25 ANOS DE POESIA" (1962,1987).
Como artista plástico -- desenhador, pintor, colagista, escultor e ilustrador --, expõe desde 1965. Participou em 388 exposições colectivas e realizou 16 individuais. Foi três vezes premiado, em Desenho, com primeiras medalhas de prata, nos salões da Junta de Turismo da Costa do Sol (XI e XV Salão de Outono e no VIII Salão de Arte Moderna), e obteve, conjuntamente com Carlos Calvet, o PRÉMIO DE AQUISIÇÃO do VI Salão de Arte Moderna de Luanda. Foi critico de arte do "Jornal de Letras e Artes", "Século Ilustrado"e "Diário de Notícias". Assinou balanços anuais de artes plásticas para o jornal "O Século". É o presidente do Comité Directivo do Movimento de Intervenção Cultural (MIC/Edições Mic), desde  o inicio -- 1976/1977.

www.fernando.grade.webnode.pt

 

 

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