DIVÓRCIO II
Pus os teus beijos debaixo do rabo.
MUITO LONGA MEMÓRIA
PARA O POETA RUY BELO
Posso estar deitado ao
comprido nesta cama
as unhas grossas, enormes,
os dedos em concha
apontando os móveis da casa,
e ter a janela aberta
de par em par escancarada
para o bulício dos carros
para os beijos trocados na
rua rente ao candeeiro
para as mulheres vestidas de
preto negríssimo
que passam com carregos à
cabeça;
poderei ter as horas todas
para pensar, fumá-las, e
saúde muita, o cheiro quase
infantil das godécias
os retratos de oblíquas
viagens pela praia fora,
mas nenhum silêncio flor ou
ave doida fará esquecer a tua
[morte
longínqua
nos antípodas (não foi em
Queluz?),
e regressas assim a estas
paredes de musgo bom
donde os teus versos nunca
saíram, o riso que
deixavas na água, os teus
versos, o alto poema:
gaivota viajada por dentro
de casa
e tão dada ao sossego, tão
de cereja a boca que soltaste
sobre os rios, o mar saloio.
E pó de pedra e ranço
nunca serás.
Chegas morto, porém,fuzilado na alma às páginas das gazetas
que pouco sabiam da tua pessoa ou sentiam. Tampouco foste do
[negócio
dos vates, brocados, chiadices, morreste quase anónimo
mas defendido é certo pelos quarenta primos que são os poetas
[daqui.
Quem apenas viveu a tua morte letra impressa
em jornais repletos de políticos e pandeiretas
deve ter encolhido os ombros e pensado
que -- se tanto sobre ti diziam hoje -- é porque dos mortos ninguém
[diz mal
e a morte não passa de mercadoria romântica.
Mas contigo foram outros e floridos os lenços de acenar.
Estamos todos mais pobres e
varados por balas de terra nua junto ao coração.
Quem pegará na flauta ao chão descida?,
quem tocará agora nas margens do grande rio Eufrates?
Como cigarra devastada pelas tranças
estás ainda virado para o pinhal -- e cantas.
Quotidiana e de aldeias brancas a morte em que crias
católico assim também eu fora, antes do sonho noutro barco
embarcado, diverso trapézio ecuménico.
Aqui tenho as tuas falas feitas de brisa e cal
no meio de outros mortos-vivos como tu
as praias explodem a Oeste.
E de novo regressas aos jornais a barba eternamente por fazer
e o espanto viajará em muitos olhos
por antes disso não te saberam o nome: de corridas a pé ou
a cavalo, bicicletas ou bólides, não te reconhecem o rosto
como trepador de Pirenéus, fadista de beco ou toureiro janota.
E por bastos anos serás sinaleiro da água
da ternura
homem ao centro descendo ao centro da terra
por muitos sítios. Talvez tenhas agora a alma desportiva
que sempre quiseste ter, oh adepto do grande campeão
José Maria Nicolau.
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