REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 36-37 | fevereiro-março | 2013

 
 

 

 

CLAUDIO WILLER


Alguns poetas da Natureza
e o sagrado

Claudio Jorge Willer (São Paulo, 1940). Poeta, ensaísta, crítico e tradutor brasileiro, ligado sobretudo ao surrealismo e è geração beat.                                 
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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O presente ensaio é adaptado de “A natureza e alguns poetas românticos, modernos e contemporâneos”, palestra no 12º Festival de Inverno de Bonito, Mato Grosso do Sul, a 30 de julho de 2011; versões anteriores foram apresentadas como um dos ensaios do término do meu pós-doutorado em 2011 e na revista literária Celuzlose em agosto de 2012; serviu como base para um curso sobre poetas da natureza que ministrei no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo, em abril de 2012. 

1

A natureza está na poesia, desde seus primórdios. Mas a postura romântica e de alguns modernos e contemporâneos perante a natureza é distinta daquela de clássicos e neo-clássicos. Árcades, por exemplo, podiam povoar o quanto quisessem seus jardins e bosques idílicos de ninfas e faunos; mas suas representações não tinham o sentido de uma insurreição contra a massificação, a industrialização e as agressões ao ambiente natural na sociedade burguesa.

O tratamento não mais decorativo do natural, porém crítico, é ilustrado por um contemporâneo brasileiro, Roberto Piva. Entre outros lugares, em uma série de textos intitulada “Sindicato da natureza”, publicada em Estranhos sinais de Saturno, volume 3 de suas Obras reunidas. No “Manifesto do partido surrealista-natural’, associa a defesa do ambiente ao paganismo:

Dionysos, na Grécia Antiga, era o Deus da vegetação, da orgia, do vinho, da anarquia. Pra começar a falar em Ecologia, precisamos iniciar a gira invocando Dionysos, que traz a renovação da primavera & da vegetação.

[...]

É preciso não confundir Ecologia com jardinagem.

A Ecologia é uma ramificação da Biologia, que estuda as interações entre os seres vivos & seu meio ambiente.

Nos anos 60 quando eu falava de Ecologia, a resposta das pessoas, que se amontoavam em bandos à direita & esquerda, era sempre uma profissão de fé na própria mediocridade. “Com tanta gente passando fome, esse cara vem falar de natureza.” Como se a vida do cretino não dependesse exatamente do equilíbrio ecológico. Os trabalhadores têm a CUT, a CGT. A onça pintada não tem sindicato. Os rios não têm sindicato. O mar não tem sindicato. (Piva 2008, p. 178)

A dessacralização da natureza e o banimento do dionisíaco são atribuídos por Piva ao cristianismo. Para os propósitos da presente argumentação, não importa discutir se a destituição do caráter sagrado da natureza tem sua gênese no desencantamento do mundo, associado por Max Weber à ética protestante; no advento do “homem fáustico”, dominador do mundo, de Spengler; no cristianismo; nas religiões dualistas e grandes monoteísmos em geral; na geometrização e subordinação do mundo por Descartes; no racionalismo grego; no Iluminismo e em sua ideologia do progresso; no primado da visão científico-tecnológica na sociedade moderna.

Católicos poderiam responder a Piva que a natureza é obra de Deus; portanto sagrada – e Piva retrucaria que o cristianismo é dualista e, na Idade Média, a ordem franciscana esteve no limite de ser banida como herética.

Interessa a continuidade ou sintonia de afirmações como essas de Piva com o que já dizia, ao final do século XVIII, William Blake, iniciador do romantismo e profeta da modernidade poética – e um panteísta que vislumbrava a unidade do homem e do universo, da consciência individual e daquela cósmica. Seu ideário foi expresso, entre outras passagens de sua obra enorme, em O casamento do céu e do inferno:

O rugir dos leões, o uivo dos lobos, a ira do mar revolto e a espada devastadora são porções de eternidade demasiado grandes para o olho humano. [..]

A altivez do pavão é a glória de Deus.

A lascívia do bode é a dádiva de Deus.

A fúria do leão é a sabedoria de Deus.

A nudez da mulher é a obra de Deus. (Blake 2007, p. 28)

Detalhes ou desdobramentos de sua proclamação de que “tudo o que vive é sagrado”.

Em outras passagens, Blake chegou a referir-se ao “mundo vegetal”. Isso foi interpretado por estudiosos (por exemplo, Harold Bloom e Northrop Frye) como depreciação da natureza. Mas não só em O casamento do céu e do inferno, porém em suas Canções da inocência e experiência, a natureza é manifestação do divino. Um dos exemplos, o antológico poema sobre o tigre:

[...]

Tygre, Tygre, fogo ativo,

Nas florestas da noite, vivo,

Que mão imortal armaria

Tua terrível simetria?(Blake 2005, p. 121)

Ameaçadora e destruidora ou bela e sublime, a fera é, em sua ambivalência, a manifestação e encarnação de Deus.

O encantamento diante da natureza marca inúmeros dentre os autores românticos, desde Rousseau, que criou o termo “romantismo” e idealizou o natural. Sua expressão mais intensa está na poesia de Wordsworth. E também em um iniciador do romantismo francês, Chateaubriand: multiplicador de bons selvagens, exerceu enorme influência sobre românticos brasileiros; está na gênese do indianismo, tanto de Gonçalves Dias quanto de José de Alencar.

Mas é obrigatório, ao se comentar a associação da visão romântica da natureza ao paganismo, citar um conhecido poema de Gérard de Nerval:

VERSOS DOURADOS

Céus! tudo é sensível.

Pitágoras

Homem! livre pensador! serás o único que pensa

Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?

De tuas forças tua liberdade dispõe naturalmente,

Mas teus conselhos todos o universo dispensa.

 

Honra na fera o espírito que fermenta...

Cada flor é uma alma em Natura nascente;

Um mistério de amor no metal reside dormente;

“Tudo é sensível!” E poderoso em teu ser se apresenta.

 

Receia, no muro cego, um olhar curioso:

À própria matéria encontra-se um verbo unido...

Não te sirvas dela para qualquer fim impiedoso!

 

Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido.

E, como um olho novo coberto por suas pálpebras,

Um espírito puro medra sob a crosta das pedras! (Nerval 1995, p. 24)

Não se trata apenas, nesse poema, de encantamento frente ao natural, porém de vitalismo e panteísmo. Para Nerval, a flor tem “alma”; o muro, “um olhar”; em tudo, em cada coisa, há “um Deus escondido”.

Já foi observada, por Octavio Paz e outros, a sincronia desse poema de Nerval com aquele, seu contemporâneo e igualmente famoso, de As flores do mal de Baudelaire:

CORRESPONDÊNCIAS

A Natureza é um templo onde vivos pilares

Deixam filtrar não raro insólitos enredos;

O homem o cruza em meio a um bosque de segredos

Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

 

Como ecos longos que à distância se matizam

Numa vertiginosa e lúgubre unidade,

Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,

Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

 

Há aromas frescos como a carne dos infantes,

Doces como o oboé, verdes como a campina,

E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,

 

Com a fluidez daquilo que jamais termina,

Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,

Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.(Baudelaire 1995, p. 125)

Como se sabe, Baudelaire foi contraditório e paradoxal. Manifestava-se em favor do artificial e abominava a natureza e o natural. Foi o que declarou o poeta em seus elogios à modernidade e sua defesa da imaginação: “Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo que existe me satisfaz. A natureza é feita, e prefiro os monstros de minha fantasia à trivialidade concreta”. (Baudelaire, 1995: 804).

 

Mas em “Correspondências” a natureza é “um templo”; lugar sagrado. O poema é uma proclamação em favor do pensamento analógico, afirmando sua crença nas correspondências entre macrocosmo, o universo, e microcosmo, o mundo natural.

 

2

De Baudelaire os simbolistas adotaram a doutrina hermética das correspondências de macrocosmo e microcosmo; o dandismo e as provocações (no texto e na vida); o satanismo; o culto ao artificial e anti-naturalismo – e muito mais. A conhecida narrativa de J-K. Huysmans, Às avessas, o “breviário da decadência” (Huysmans, 1987), expõe essa poética e visão de mundo através da história do aristocrata que se isola e constrói um ambiente absolutamente artificial. Em outra de suas narrativas, En rade (Huysmans, 1984), o mundo natural é um cenário de horror que se confunde com os pesadelos de seu protagonista.

A natureza é importante na poesia de outro simbolista, Jules Laforgue. Mas, de modo muito original, retira-a da Terra em Litanias da Lua e a transfere para nosso satélite no poema “Clima, fauna e flora da Lua”. (Laforgue 1989, p. 73).

No âmbito do surrealismo, herdeiro e continuador do simbolismo, a natureza não ressurge apenas através do apreço por culturas arcaicas, sociedades tribais, seus mitos e criações, através de obras capitais como Le miroir du mérveilleux de Pierre Mabille, a antologia de contos e mitos indígenas preparada por Benjamin Péret e os relatos de viagens etnográficas de Michel Leiris, entre outros. Recebe um tratamento especialmente original em uma obra matricial, O camponês de Paris de Louis Aragon, de 1926. A segunda parte dessa narrativa intitula-se “O sentimento da natureza no parque Buttes-Chaumont”. Possuído pela “vertigem do moderno”, pela sensação de “tocar numa fechadura do universo”, o narrador põe-se “a descobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que me escoltavam, andando ao longo das aléias de terra”. Reencontra o sagrado: “Pareceu-me que o homem está pleno de deuses como uma esponja imersa em pleno céu”. Para ele, “Tudo o que é extravagante no homem e o que há nele de errante, de extraviado, sem dúvida poderia caber nessas duas sílabas: jardim”. (Aragon 1996, pgs. 140-145) E acaba por concluir que a natureza equivale ao inconsciente.

Jardins urbanos e parques são lugares, portanto, de um encontro de duas esferas ou planos; equivalem a uma síntese do consciente e inconsciente:

A experiência sensível aparece então para mim como o mecanismo da consciência e a natureza, vê-se no que ela se torna: a natureza é meu inconsciente. Aquilo a que meus sentidos se entregam, para falar a linguagem do hábito, não está separado dela. Mas por instantes, em limiares raros, reconheço esse liame que une os dados dos meus sentidos, alguns desses dados, à própria natureza: ao inconsciente. (idem, p. 150)

O encontro com “a idéia antiga da natureza” leva-o ao mito: “seria possível perguntar se não existiria hoje um sentimento mítico particular, eficaz, que se restringisse àquilo que outrora foi a natureza.” (idem, p. 152)

Aragon é, inequivocamente, um baudelairiano; sua “vertigem do moderno” está em perfeita relação de continuidade com o que Baudelaire escreveu em “O heroísmo da vida moderna” em Salão de 1846 e os subsequentes elogios à modernidade. Oferece um quadro de referência para situar o tratamento dado á natureza e ao natural na obra de alguns poetas, através de termos ou categorias binárias: mito e logos, sagrado e profano, pensamento analógico e lógica do discurso, poético e prosaico, natural e urbano, inconsciente e consciente. 

3

Depois dos românticos e precedendo o modernismo, a literatura brasileira teve Cruz e Souza – entre outras qualidades, um poderoso poeta da natureza, reproduzindo e multiplicando, de modo exuberante, as correspondências de Baudelaire. Em um de seus derradeiros sonetos, “Luz da natureza”, é o lugar “Onde a fé do meu sonho se condensa!” (Cruz e Souza 2008, Vol. 1, p. 543); em uma de suas prosas, “Manhã d’estio”, é o lugar de todas as sinestesias, “destes murmúrios todos, pelo fenômeno acústico da recepção e transladação dos sons, como em placas fotográficas” (Cruz e Souza 2008, Vol. 2, p. 375)– é como se desse aula sobre sinestesias baudelairianas; e, precursor, usasse uma então inexistente aparelhagem sonora para ampliá-las.

Modernistas brasileiros celebraram, notoriamente, a natureza. Foram continuadores do nativismo romântico. Em todos os grupos Verde, Anta, e até mesmo, de modo mais refinado e crítico, na Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade, há uma representação do Brasil: a pujança da natureza é seu emblema e metáfora.

Dentre aqueles poetas brasileiros que podem ser associados ao modernismo, certamente o mais telúrico, em cuja obra o binômio natureza-inconsciente, identificando os dois termos, se apresenta de modo mais forte, é Jorge de Lima. Especialmente, em Invenção de Orfeu, sua colossal epopéia, um monumento literário. Há testemunhos de que partes desse poema de longo curso foram escritos em estado sonambúlico ou delirante (cf. Willer 2008), enquanto seu autor era consumido pela doença que o mataria.

Mas Jorge de Lima já antecipara o delírio e o surrealismo na poesia nativista de Poemas negros; e, especialmente, no Livro de sonetos:

Não procureis qualquer nexo naquilo

que os poetas pronunciam acordados,

pois eles vivem no âmbito intranqüilo

em que se agitam seres ignorados. (Lima 1997, p. 473)

Também nos sonetos, a efusão telúrica:

Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço,

e qualquer coisa além: a cor dos frutos,

a seiva estuante, as folhas imprecisas

e o ramo verde como um ser colaço. (idem, p. 474)

Mas em Invenção de Orfeu o poeta sonâmbulo, em transe febril, desce a um mundo arquetípico, pré-verbal e pré-civilizado:

O céu jamais me dê a tentação funesta

de adormecer ao léu, na lomba da floresta,

 

 onde há visgo, onde certa erva sucosa e fria

carnívora de certo o sono nos espia.

 

Que culpa temos nós dessa planta de infância,

de sua sedução, de seu viço e constância? [...]

 

Minha cabeça estava em pedra, adormecida,

quando me sobreveio a cena pressentida.

 

Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados

dos passos e dos gestos em vão desperdiçados. [...] (idem, p. 525)

Em Jorge de Lima, é a natureza total; luxuriante, ao longo da epopéia em que se propôs a “cantar de cantos como um novo Orfeu”:

É a bela natureza com seus ouros,

relembranças incertas, noviciados,

fagotes bifurcados e barrocos. (idem, p. 589)

Ainda a propósito de surrealistas, ou dos poetas brasileiros com maior afinidade com o surrealismo, o pensamento analógico e a sacralização do natural reaparecem em Manoel de Barros. É um poeta do microcosmo, das pequenas coisas. E, assim como os místicos, herméticos e neo-platônicos, enxerga o universo em cada coisa; o alto no baixo, o maior no menor. Outro poeta com relação ao qual “Correspondências” de Baudelaire serve como paradigma.

Por exemplo, em O Guardador de Águas:

XX

[...]

Nas brisas vem sempre um silêncio de garças.

Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes.

Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a

fazer parte dos pássaros que a gorjeiam.

Quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os

olhinhos para Deus.

De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem

o rumo das grotas.

Todas estas informações têm uma soberba desimportância científica - como andar de costas. (idem, p. 253)

E, de modo quase expositivo, didático, também desdobrando ou multiplicando correspondências, em O livro das ignorãças, na parte intitulada “Mundo pequeno”:

I 

O mundo meu é pequeno, Senhor.

Tem um rio e um pouco de árvores.

Nossa casa foi feita de costas para o rio.

Formigas recortam roseiras da avó.

Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.

Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.

Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.

Quando o rio está começando um peixe,

Ele me coisa

Ele me rã

Ele me árvore.

De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. (idem, p 315) 

4

A Geração Beat norte-americana formou-se em ambientes metropolitanos; especialmente, aquele de Nova York. Mas teve grandes cultores da natureza. Entre eles, seu porta-voz, Jack Kerouac – que entra neste ensaio por ter escrito obra especificamente poética, e por haver sido, em suas narrativas, um extraordinário poeta em prosa. Maravilhava-se diante das paisagens e amplidões norte-americanas, como neste trecho de On the Road:

[...] também havia amplitudes selvagens no Leste; era a mesma imensidão na qual Bem Franklin se arrastara no tempo dos carros de boi quando era agente do correio, a mesma imensidão do tempo em que George Washington era um recruta destemido que combatia os índios, quando Daniel Boone contava histórias sob lampiões na Pensilvânia e prometia encontrar a passagem no Desfiladeiro, quando Bradford abriu sua estrada e os homens subiram ruidosamente por ela construindo suas cabanas de toras. (Kerouac 2008, p. 138)

E no registro de seu isolamento no topo de uma montanha em Anjos da desolação. Ou em seus “Hai-kais ocidentais”, sintéticos, em um aparente contraste com o que sua prosa tem de hiperbólico, exagerado, marcado por frases extensas:

Pássaros cantando

no escuro

- Aurora chuvosa (Kerouac 1971, p. 43)

Outro beat importante, o zen-budista Gary Snyder, autor de inúmeros poemas de louvação à natureza, como este, calcado em uma prece dos índios Mohawk, na forma de cântico:

Gratidão á Mãe terra, que navega noite e dia –

e a seu solo: rico, raro e doce

em nossas mentes assim seja.

 

Gratidão às Plantas, à folha voltada pro sol,

que se transforma com a luz

e pelos radiculares vistosos; em pé, firme,

resistindo ao vento

e à chuva; sua dança está no grão espiral que brota

em nossas mentes que assim seja

 

[...]

Gratidão ao Grande Céu

que comporta bilhões de estrelas – e vai ainda além –

além de todos os poderes e pensamento

e ainda está dentro de nós –

Avô Espaço.

A Mente é sua Esposa

assim seja (Snyder 2005, p. 117)

São, vários dentre os poemas de Re-habitar, explicitamente políticos; manifestos ambientalistas:

Os EUA lentamente perderam seu mandato

da metade até o fim do século vinte

nunca deram ás montanhas e rios,

árvores e animais,

um voto. [...] (idem, p. 131)

Terá Piva, ao propor um “Sindicato da natureza”, se inspirado em Snyder? É possível. O autor de Paranóia também conhecia outro poeta beat da natureza, de especial interesse para a presente argumentação: Michael McClure, que equiparou o “eu” profundo dos místicos, a verdadeira natureza humana, a um mamífero, e não a uma entidade espiritual, extra-mundana ou supra-terrena:

QUANDO UM HOMEM NÃO ADMITE SER UM ANIMAL, ele é menos que um animal. O grande MAMÍFERO William Blake é importante pela beleza que apresenta, pela clareza da sua visão e pelo seu exemplo. [...] O homem é um mamífero se experimentando. [...] O HOMEM NÃO É UM ISÔMERO DE MAMÍFERO – ele é precisamente um mamífero. A rota para essa consciência é necessariamente biológica. A poesia é biológica. (McClure 2005, p. 134)

A identificação com mamíferos e grandes predadores é ilustrada por seus poemas de glossolalias e onomatopéias, a exemplo deste trecho:

[...] HUUUUUUUUUU! HUUUUUU! GRAHH!

GRUUUUUUUUUUUUUH! GRUUUUUUUUH! NAHHR!

MHII1

Gruuuuuuuur gruhta.

MUAHH!

Griiiiiiiii-gruuuuuuuuuuuuuu.

GARHRRRRUUUUUUUUUUUUH

RHUUG CLAUBB. [...]  (idem, p. 216)

Em vários de seus escritos e na entrevista publicada na edição brasileira, A nova visão: de Blake aos Beats, McClure detalha e dá exemplos:

[...] a não ser que nos dermos conta de que um animal é muito mais que o homem socializado considera, não teremos noção da amplitude de fronteiras e serem exploradas. [..] Eu fiz uma leitura de um poema de Ghost tantras para quatro leões num zoológico e tivemos a sorte de ter gravado os animais rugindo junto com os poemas. Mais tarde, me pediram para fazer isso novamente para um grupo de documentaristas e de novo os leões me acompanharam na leitura. [...] Há uma forte conexão entre o Ghost tantras e a minha crença de que quando um homem não admite que é um animal, ele é menos que um homem. (idem, pgs. 203-205)

O português contemporâneo Herberto Helder é um poeta total: do sagrado e do profano, da palavra, do corpo; e um poderoso poeta da natureza. Poéticas e modos de expressar-se de Helder e McClure são bem diversas. Mas é como se, em poemas da série “Selos”, de 1989, com ecos ou reminiscências de quando morou em Angola, Helder comentasse ou ilustrasse McClure:

São estes – leopardo e leão: carne turva e

atravessadamente

rítmica a sonhar nas noites de água aos buracos. [...]

Montanhas das áfricas,

montanhas das árvores que sangram.

Há tanto ar rodeando as árvores nas montanhas: na sua

animalidade

dourada, leões e leopardos compactos aligeiram-se

como o ar onde crescem as montanhas. [...]

Leopardos vivos debaixo das coroas, e os leões que alguém

soprou na boca. Como descem o ar

e a água das montanhas, como

se embrenham pelas árvores sangrando no escuro – e saem

ao reluzir dos dedos e aos cantos

roucos, nas áfricas. (Helder 1991, p. 558)

Em ambos, Helder e McClure, há correspondência entre o rugido das feras e dizer poemas:

[...] O caos encontrava o equilíbrio

dos algarismos. Talvez cantassem, leão e leopardo

comigo: garras e unhas lunadas,

gargantas, as mesmas

pupilas bruscas, a mesma seiva, o mesmo furor

dourado na escuridão. [...] (idem, ibidem)

E, de modo mais incisivo, para não deixar dúvidas quanto à sincronia das vozes do animal e do poeta:

[...] começa a ferver a luz como uma

coroação, a realeza do poema animal – leopardo e leão. Oh,

cantam em música humana, eles, no trono

das montanhas das áfricas redivivas. (idem, ibidem) 

5

Semelhante identificação do animal ao sagrado, como se observa em Snyder, McClure e Helder, entre outros, tem fundamento em cosmovisões e doutrinas arcaicas. É substância dos mitos, dos relatos “daquele tempo”, quando “os animais falavam”, como é dito nas fábulas. Atestam-no totens, imagens teriomorfas (híbridas de animal e homem) desde as inscrições em cavernas, os “abraxas” gnósticos e divindades animalescas em uma diversidade de manifestações (cf. Willer 2010).

É correta a observação de Alain Daniélou  sobre o valor religioso do animal nas sociedades arcaicas, em Shiva e Dioniso:

No universo cósmico, os princípios que se manifestam nos deuses, nos gênios e nos homens também aparecem no mundo animal, vegetal e mineral. [...] Alguns animais, por sua natureza e pelos símbolos que representam, são sempre associados a certos deuses. Cada aspecto do divino está ligado a uma espécie animal, como o elefante de Indra (o rei do céu), o carneiro de Agni (deus do Fogo), o rato de Ganesha, o abutre de Vishnu, etc.

Os princípios representados por Shiva e a deusa correspondem à natureza do touro, da serpente, da pantera (às vezes substituída pelo tigre e pelo leão) e, no caso, venerados em Creta. (Daniélou 1989, p. 97)

O estudioso ainda associa os grandes mamíferos predadores, com aqueles com que McClure se relaciona preferencialmente, a Dioniso:

Na tradição dionisíaca, o leopardo é consagrado a Dioniso e as mênades são assimiladas a panteras. [...] O carro sobre o qual se apresenta Dioniso é, às vezes, puxado por panteras. As mênades brincam com panteras (idem p. 102)

Não há evidência de que McClure e Helder conheçam a obra de Daniélou. E a busca de uma integração profunda com o mundo natural por McClure precede cronologicamente a publicação de Shiva e Dioniso. Mas essa foi uma das obras de cabeceira de Piva, justificando terminar o presente artigo com a citação de mais algumas de suas contribuições ao tema. Em especial, nas etapas finais de sua obra, constituída pelos livros Ciclones e Estranhos sinais de Saturno.

Em Ciclones, a tônica dominante é a oposição da vida natural e urbana:

piratas

plantados

na carne da aventura

desertaremos as cidades

ilhas de destroços (Piva 2008, p. 44)

Manifesta-se “pelos direitos não-/humanos do planeta” (idem, p. 56), “sonhando saídas / definitivas da / cidade-sucata” (idem, p. 58), impelido pela “força do xamã” que “provém do nada / do êxtase / do Eros” (idem, p. 64), pois

a rua é muito estreita

para o exército

de folhas

& seu AXÉ (idem, p. 65)

A primeira parte de Ciclones é composta por “flashes”, registros de instantes de encantamento:

gaivotas

estrelas que despencam

no mar

& se eclipsam (idem, p. 32)

A reintegração equivale a uma experiência alucinatória:

Baco

me transforma

num astro vibratório

com este elixir

de cacto selvagem (idem, p. 33)

Ou:

miraculosa Cannabis

planta do incesto

do sol com as

águas (idem, p. 54)

Em seu derradeiro livro, Estranhos sinais de Saturno, alternam-se invocações e anátemas – “Os rios revoltados saberão / vingar-se” (idem, p. 125) –, reafirmações do caráter sagrado da natureza e visões da metrópole como cenário de horror:

E para que ser poeta

em tempos de penúria? Exclama

Hölderlin adoidado

assassinos travestidos em folhagens

hordas de psicopatas

atirados nas praças

enquanto os últimos

poetas

perambulam na noite

acolchoada (idem,p. 149)

O final de Estranhos sinais de Saturno – cronologicamente, o final de sua criação poética – é a série intitulada “Uma dimensão extrema”; sobre plantas; e todas essas plantas com uma função mágica, por isso presentes em rituais do sincretismo afro-brasileiro ou de índios, assim propiciando ligações com o sagrado: “Guarapuvu”, “Jurema preta”, “Grumixama”, “Espinheira Santa”, “Ipê roxo” e “Pau-ferro”.

Mas um dos poemas de Ciclones, dedicado a um pai de santo, um babalaorixá do candomblé, equivale a um manifesto; incorpora temas, categorias e tópicas expostas neste ensaio. Por isso, merece completar a presente série. A observar como anáforas e repetições lhe conferem ritmo, força e caráter litúrgico: 

Ritual dos 4 ventos & dos 4 gaviões

para Marco Antonio de Ossain

 

Eu trago os guardiães

dos Circuitos Celestes

Livro dos Mortos do antigo Egito

 

Ali onde o gavião do Norte resplandece

sua sombra

Ali onde a aventura conserva os cascos

do vodu da aurora

Ali onde o arco-íris da linguagem está

carregado de vinho subterrâneo

Ali onde os orixás dançam na velocidade

de puros vegetais

Revoada de pedras do rio

Olhos no circuito da Ursa Maior

na investida louca

Olhos de metabolismo floral

Almofadas de floresta

Focinho silencioso da suçuarana com

passos de sabotagem

Carne rica de Exu nas couraças da noite

Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada

Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas

Bate o tambor

no ritmo dos sonhos espantosos

no ritmo dos naufrágios

no ritmo dos adolescentes

à porta dos hospícios

no ritmo do rebanho de atabaques

Bate o tambor

no ritmo das oferendas sepulcrais

no ritmo da levitação alquímica

no ritmo da paranóia de Júpiter

Caciques orgiásticos do tambor

com meu Skate-gavião

Tambor na virada do século Ganimedes

Iemanjá com seus cabelos de espuma

Claudio Willer
   
 
 

BIBLIOGRAFIA:

ARAGON, Louis, O Camponês de Paris, apresentação, tradução e notas de Flávia Nascimento, Imago, Rio de Janeiro, 1996;

BARROS, Manoel, Poesia completa, São Paulo: Leya, 2010;

BAUDELAIRE, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, tradução de As Flores do Mal por Ivan Junqueira, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995;

BLAKE, William, Canções da Inocência e da Experiência, tradução, prefácio e notas de Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves, Crisálida, Belo Horizonte, 2005;

BLAKE, William, O Casamento do Céu e do Inferno, tradução de Alberto Marsicano, Porto Alegre: L&PM, 2005;

CRUZ E SOUZA, Obra Completa, vol. 1: Poesia, Lauro Junkes, org., Jaraguá do Sul, SC: Avenida, 2008;

CRUZ E SOUZA, Obra Completa, vol. 2: Prosa, Lauro Junkes, org., Jaraguá do Sul, SC: Avenida, 2008;

DANIÉLOU, Alain, Shiva e Dioniso – a religião da natureza e do Eros, tradução de Edison Darci Heldt, São Paulo: Martins Fontes, 1989.

HELDER, Herberto, Poesia toda, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991;

HUYSMANS, J. K, Às avessas, tradução e prefácio de José Paulo Paes, São Paulo, Companhia das Letras, 1987;

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KEROUAC, Jack, On the Road: Pé na Estrada; tradução de Eduardo Bueno, Porto Alegre: L&PM Pocket, 2004;

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© Maria Estela Guedes
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