O presente ensaio é adaptado de “A natureza e alguns poetas românticos,
modernos e contemporâneos”, palestra no 12º Festival de Inverno de
Bonito, Mato Grosso do Sul, a 30 de julho de 2011; versões anteriores
foram apresentadas como um dos ensaios do término do meu pós-doutorado
em 2011 e na revista literária Celuzlose em agosto de 2012; serviu como
base para um curso sobre poetas da natureza que ministrei no Museu da
Língua Portuguesa, São Paulo, em abril de 2012.
1
A natureza está na poesia, desde seus primórdios. Mas a postura
romântica e de alguns modernos e contemporâneos perante a natureza é
distinta daquela de clássicos e neo-clássicos. Árcades, por exemplo,
podiam povoar o quanto quisessem seus jardins e bosques idílicos de
ninfas e faunos; mas suas representações não tinham o sentido de uma
insurreição contra a massificação, a industrialização e as agressões ao
ambiente natural na sociedade burguesa.
O tratamento não mais decorativo do natural, porém crítico, é ilustrado
por um contemporâneo brasileiro, Roberto Piva. Entre outros lugares, em
uma série de textos intitulada “Sindicato da natureza”, publicada em
Estranhos sinais de Saturno, volume 3 de suas
Obras reunidas. No “Manifesto do partido surrealista-natural’,
associa a defesa do ambiente ao paganismo:
Dionysos, na Grécia Antiga, era o Deus da vegetação, da orgia, do vinho,
da anarquia. Pra começar a falar em Ecologia, precisamos iniciar a gira
invocando Dionysos, que traz a renovação da primavera & da vegetação.
[...]
É preciso não confundir Ecologia com jardinagem.
A Ecologia é uma ramificação da Biologia, que estuda as interações entre
os seres vivos & seu meio ambiente.
Nos anos 60 quando eu
falava de Ecologia, a resposta das pessoas, que se amontoavam em bandos
à direita & esquerda, era sempre uma profissão de fé na própria
mediocridade. “Com tanta gente passando fome, esse cara vem falar de
natureza.” Como se a vida do cretino não dependesse exatamente do
equilíbrio ecológico. Os trabalhadores têm a CUT, a CGT. A onça pintada
não tem sindicato. Os rios não têm sindicato. O mar não tem sindicato.
(Piva 2008, p. 178)
A dessacralização da natureza e o banimento do dionisíaco são atribuídos
por Piva ao cristianismo. Para os propósitos da presente argumentação,
não importa discutir se a destituição do caráter sagrado da natureza tem
sua gênese no desencantamento do mundo, associado por Max Weber à ética
protestante; no advento do “homem fáustico”, dominador do mundo, de
Spengler; no cristianismo; nas religiões dualistas e grandes monoteísmos
em geral; na geometrização e subordinação do mundo por Descartes; no
racionalismo grego; no Iluminismo e em sua ideologia do progresso; no
primado da visão científico-tecnológica na sociedade moderna.
Católicos poderiam responder a Piva que a natureza é obra de Deus;
portanto sagrada – e Piva retrucaria que o cristianismo é dualista e, na
Idade Média, a ordem franciscana esteve no limite de ser banida como
herética.
Interessa a continuidade ou sintonia de afirmações como essas de Piva
com o que já dizia, ao final do século XVIII, William Blake, iniciador
do romantismo e profeta da modernidade poética – e um panteísta que
vislumbrava a unidade do homem e do universo, da consciência individual
e daquela cósmica. Seu ideário foi expresso, entre outras passagens de
sua obra enorme, em O casamento do céu e do inferno:
O rugir dos leões, o uivo
dos lobos, a ira do mar revolto e a espada devastadora são porções de
eternidade demasiado grandes para o olho humano. [..]
A
altivez do pavão é a glória de Deus.
A
lascívia do bode é a dádiva de Deus.
A
fúria do leão é a sabedoria de Deus.
A nudez da mulher é a obra
de Deus. (Blake 2007, p. 28)
Detalhes ou desdobramentos de sua proclamação de que “tudo o que vive é
sagrado”.
Em outras passagens, Blake chegou a referir-se ao “mundo vegetal”. Isso
foi interpretado por estudiosos (por exemplo, Harold Bloom e Northrop
Frye) como depreciação da natureza. Mas não só em
O casamento do céu e do inferno,
porém em suas Canções da inocência e experiência, a natureza é manifestação do
divino. Um dos exemplos, o antológico poema sobre o tigre:
[...]
Tygre, Tygre, fogo ativo,
Nas
florestas da noite, vivo,
Que
mão imortal armaria
Tua terrível simetria?(Blake
2005, p. 121)
Ameaçadora e destruidora ou bela e sublime, a fera é, em sua
ambivalência, a manifestação e encarnação de Deus.
O encantamento diante da natureza marca inúmeros dentre os autores
românticos, desde Rousseau, que criou o termo “romantismo” e idealizou o
natural. Sua expressão mais intensa está na poesia de Wordsworth. E
também em um iniciador do romantismo francês, Chateaubriand:
multiplicador de bons selvagens, exerceu enorme influência sobre
românticos brasileiros; está na gênese do indianismo, tanto de Gonçalves
Dias quanto de José de Alencar.
Mas é obrigatório, ao se comentar a associação da visão romântica da
natureza ao paganismo, citar um conhecido poema de Gérard de Nerval:
VERSOS DOURADOS
Céus! tudo é sensível.
Pitágoras
Homem! livre pensador! serás o único que pensa
Neste mundo onde a vida cintila em cada ente?
De tuas forças tua liberdade dispõe naturalmente,
Mas teus conselhos todos o universo dispensa.
Honra na fera o espírito que fermenta...
Cada flor é uma alma em Natura nascente;
Um mistério de amor no metal reside dormente;
“Tudo é sensível!” E poderoso em teu ser se apresenta.
Receia, no muro cego, um olhar curioso:
À própria matéria encontra-se um verbo unido...
Não te sirvas dela para qualquer fim impiedoso!
Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido.
E, como um olho novo coberto por suas pálpebras,
Um espírito puro medra sob a crosta das pedras!
(Nerval 1995, p. 24)
Não se trata apenas, nesse poema, de encantamento frente ao natural,
porém de vitalismo e panteísmo. Para Nerval, a flor tem “alma”; o muro,
“um olhar”; em tudo, em cada coisa, há “um Deus escondido”.
Já foi observada, por Octavio Paz e outros, a sincronia desse poema de
Nerval com aquele, seu contemporâneo e igualmente famoso, de
As flores do mal de Baudelaire:
CORRESPONDÊNCIAS
A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.
Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como o oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam
dos sentidos e da mente.(Baudelaire 1995, p. 125)
Como se
sabe, Baudelaire foi contraditório e paradoxal. Manifestava-se em favor
do artificial e abominava a natureza e o natural.
Foi o que
declarou o poeta em seus elogios à modernidade e sua defesa da
imaginação:
“Acho inútil e fastidioso representar aquilo que é, porque nada daquilo
que existe me satisfaz. A natureza é feita, e prefiro os monstros de
minha fantasia à trivialidade concreta”. (Baudelaire, 1995: 804).
Mas em
“Correspondências” a natureza é “um templo”; lugar sagrado. O poema é
uma proclamação em favor do pensamento analógico, afirmando sua crença
nas correspondências entre macrocosmo, o universo, e microcosmo, o mundo
natural.
2
De Baudelaire os simbolistas adotaram a doutrina hermética das
correspondências de macrocosmo e microcosmo; o dandismo e as provocações
(no texto e na vida); o satanismo; o culto ao artificial e
anti-naturalismo – e muito mais. A conhecida narrativa de J-K. Huysmans,
Às avessas, o “breviário da
decadência” (Huysmans, 1987), expõe essa poética e visão de mundo
através da história do aristocrata que se isola e constrói um ambiente
absolutamente artificial. Em outra de suas narrativas,
En rade (Huysmans, 1984), o mundo natural é um cenário de horror que
se confunde com os pesadelos de seu protagonista.
A natureza é importante na poesia
de outro simbolista, Jules Laforgue. Mas, de modo muito original,
retira-a da Terra em Litanias da
Lua e a transfere para nosso satélite no poema “Clima, fauna e flora
da Lua”. (Laforgue 1989, p. 73).
No âmbito do surrealismo, herdeiro e continuador do simbolismo, a
natureza não ressurge apenas através do apreço por culturas arcaicas,
sociedades tribais, seus mitos e criações, através de obras capitais
como Le miroir du mérveilleux de Pierre Mabille, a antologia de contos e
mitos indígenas preparada por Benjamin Péret e os relatos de viagens
etnográficas de Michel Leiris, entre outros. Recebe um tratamento
especialmente original em uma obra matricial,
O camponês de Paris de Louis
Aragon, de 1926. A segunda parte dessa narrativa intitula-se “O
sentimento da natureza no parque Buttes-Chaumont”. Possuído pela
“vertigem do moderno”, pela sensação de “tocar numa fechadura do
universo”, o narrador põe-se “a descobrir o semblante do infinito sob as
formas concretas que me escoltavam, andando ao longo das aléias de
terra”. Reencontra o sagrado: “Pareceu-me que o homem está pleno de
deuses como uma esponja imersa em pleno céu”. Para ele, “Tudo o que é
extravagante no homem e o que há nele de errante, de extraviado, sem
dúvida poderia caber nessas duas sílabas: jardim”. (Aragon 1996, pgs.
140-145) E acaba por concluir que a natureza equivale ao inconsciente.
Jardins urbanos e parques são lugares, portanto, de um encontro de duas
esferas ou planos; equivalem a uma síntese do consciente e inconsciente:
A experiência sensível aparece então para mim como o mecanismo da
consciência e a natureza, vê-se no que ela se torna: a natureza é meu
inconsciente. Aquilo a que meus sentidos se entregam, para falar a
linguagem do hábito, não está separado dela. Mas por instantes, em
limiares raros, reconheço esse liame que une os dados dos meus sentidos,
alguns desses dados, à própria natureza: ao inconsciente. (idem, p. 150)
O encontro com “a idéia antiga da natureza” leva-o ao mito: “seria
possível perguntar se não existiria hoje um sentimento mítico
particular, eficaz, que se restringisse àquilo que outrora foi a
natureza.” (idem, p. 152)
Aragon é, inequivocamente, um baudelairiano; sua “vertigem do moderno”
está em perfeita relação de continuidade com o que Baudelaire escreveu
em “O heroísmo da vida moderna” em
Salão de 1846 e os subsequentes elogios à modernidade. Oferece um
quadro de referência para situar o tratamento dado á natureza e ao
natural na obra de alguns poetas, através de termos ou categorias
binárias: mito e logos, sagrado e profano, pensamento analógico e lógica do discurso,
poético e prosaico, natural e urbano, inconsciente e consciente.
3
Depois dos românticos e precedendo o modernismo, a literatura brasileira
teve Cruz e Souza – entre outras qualidades, um poderoso poeta da
natureza, reproduzindo e multiplicando, de modo exuberante, as
correspondências de Baudelaire. Em um de seus derradeiros sonetos, “Luz
da natureza”, é o lugar “Onde a fé do meu sonho se condensa!” (Cruz e
Souza 2008, Vol. 1, p. 543); em uma de suas prosas, “Manhã d’estio”, é o
lugar de todas as sinestesias, “destes murmúrios todos, pelo fenômeno
acústico da recepção e transladação dos sons, como em placas
fotográficas” (Cruz e Souza 2008, Vol. 2, p. 375)– é como se desse aula
sobre sinestesias baudelairianas; e, precursor, usasse uma então
inexistente aparelhagem sonora para ampliá-las.
Modernistas brasileiros celebraram, notoriamente, a natureza. Foram
continuadores do nativismo romântico. Em todos os grupos Verde, Anta, e
até mesmo, de modo mais refinado e crítico, na Poesia Pau Brasil de
Oswald de Andrade, há uma representação do Brasil: a pujança da natureza
é seu emblema e metáfora.
Dentre aqueles poetas brasileiros que podem ser associados ao
modernismo, certamente o mais telúrico, em cuja obra o binômio
natureza-inconsciente, identificando os dois termos, se apresenta de
modo mais forte, é Jorge de Lima. Especialmente, em
Invenção de Orfeu, sua
colossal epopéia, um monumento literário. Há testemunhos de que partes
desse poema de longo curso foram escritos em estado sonambúlico ou
delirante (cf. Willer 2008), enquanto seu autor era consumido pela
doença que o mataria.
Mas Jorge de Lima já antecipara o delírio e o surrealismo na poesia
nativista de Poemas negros; e,
especialmente, no Livro de sonetos:
Não procureis qualquer nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranqüilo
em que se agitam seres ignorados. (Lima 1997, p. 473)
Também nos sonetos, a efusão telúrica:
Entre a raiz e a flor: o tempo e o
espaço,
e qualquer coisa além: a cor dos frutos,
a seiva estuante, as folhas imprecisas
e o ramo verde como um ser colaço. (idem,
p. 474)
Mas em Invenção de Orfeu o
poeta sonâmbulo, em transe febril, desce a um mundo arquetípico,
pré-verbal e pré-civilizado:
O céu jamais me dê a tentação funesta
de adormecer ao léu, na lomba da floresta,
onde há visgo, onde certa erva
sucosa e fria
carnívora de certo o sono nos espia.
Que culpa temos nós dessa planta de infância,
de sua sedução, de seu viço e constância? [...]
Minha cabeça estava em pedra, adormecida,
quando me sobreveio a cena pressentida.
Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados
dos passos e dos gestos em vão desperdiçados. [...] (idem, p.
525)
Em Jorge de Lima, é a natureza total; luxuriante, ao longo da epopéia em
que se propôs a “cantar de cantos como um novo Orfeu”:
É a bela natureza com seus ouros,
relembranças incertas, noviciados,
fagotes bifurcados e barrocos. (idem, p. 589)
Ainda a propósito de surrealistas, ou dos poetas brasileiros com maior
afinidade com o surrealismo, o pensamento analógico e a sacralização do
natural reaparecem em Manoel de Barros. É um poeta do microcosmo, das
pequenas coisas. E, assim como os místicos, herméticos e neo-platônicos,
enxerga o universo em cada coisa; o alto no baixo, o maior no menor.
Outro poeta com relação ao qual “Correspondências” de Baudelaire serve
como paradigma.
Por exemplo, em
O Guardador de Águas:
XX
[...]
Nas brisas vem sempre um
silêncio de garças.
Mais alto que o escuro é o
rumor dos peixes.
Uma árvore bem gorjeada, com
poucos segundos, passa a
fazer parte dos pássaros que a
gorjeiam.
Quando a rã de cor palha está
para ter - ela espicha os
olhinhos para Deus.
De cada 20 calangos,
enlanguescidos por estrelas, 15 perdem
o rumo das grotas.
Todas estas informações têm
uma soberba desimportância científica - como andar de costas. (idem, p.
253)
E, de modo quase expositivo, didático, também desdobrando ou
multiplicando correspondências, em
O livro das ignorãças,
na parte intitulada “Mundo pequeno”:
I
O mundo meu é
pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco
de árvores.
Nossa casa foi feita
de costas para o rio.
Formigas recortam
roseiras da avó.
Nos fundos do quintal
há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste
lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte
enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está
começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. (idem,
p 315)
4
A Geração Beat norte-americana formou-se em ambientes metropolitanos;
especialmente, aquele de Nova York. Mas teve grandes cultores da
natureza. Entre eles, seu porta-voz, Jack Kerouac – que entra neste
ensaio por ter escrito obra especificamente poética, e por haver sido,
em suas narrativas, um extraordinário poeta em prosa. Maravilhava-se
diante das paisagens e amplidões norte-americanas, como neste trecho de
On the Road:
[...] também havia amplitudes selvagens no Leste; era a mesma imensidão
na qual Bem Franklin se arrastara no tempo dos carros de boi quando era
agente do correio, a mesma imensidão do tempo em que George Washington
era um recruta destemido que combatia os índios, quando Daniel Boone
contava histórias sob lampiões na Pensilvânia e prometia encontrar a
passagem no Desfiladeiro, quando Bradford abriu sua estrada e os homens
subiram ruidosamente por ela construindo suas cabanas de toras. (Kerouac
2008, p. 138)
E no registro de seu isolamento no topo de uma montanha em
Anjos da desolação. Ou em seus “Hai-kais ocidentais”, sintéticos, em
um aparente contraste com o que sua prosa tem de hiperbólico, exagerado,
marcado por frases extensas:
Pássaros cantando
no escuro
- Aurora chuvosa (Kerouac 1971, p. 43)
Outro beat importante, o
zen-budista Gary Snyder, autor de inúmeros poemas de louvação à
natureza, como este, calcado em uma prece dos índios Mohawk, na forma de
cântico:
Gratidão á Mãe terra, que navega noite e dia –
e a seu solo: rico, raro e doce
em nossas mentes assim seja.
Gratidão às Plantas, à folha voltada pro sol,
que se transforma com a luz
e pelos radiculares vistosos; em pé, firme,
resistindo ao vento
e à chuva; sua dança está no grão espiral que brota
em nossas mentes que assim seja
[...]
Gratidão ao Grande Céu
que comporta bilhões de estrelas – e vai ainda além –
além de todos os poderes e pensamento
e ainda está dentro de nós –
Avô Espaço.
A Mente é sua Esposa
assim seja
(Snyder 2005, p. 117)
São, vários dentre os poemas de
Re-habitar, explicitamente políticos; manifestos ambientalistas:
Os EUA lentamente perderam seu mandato
da metade até o fim do século vinte
nunca deram ás montanhas e rios,
árvores e animais,
um voto. [...] (idem, p. 131)
Terá Piva, ao propor um “Sindicato da natureza”, se inspirado em Snyder?
É possível. O autor de Paranóia
também conhecia outro poeta beat
da natureza, de especial interesse para a presente argumentação: Michael
McClure, que equiparou o “eu” profundo dos místicos, a verdadeira
natureza humana, a um mamífero, e não a uma entidade espiritual,
extra-mundana ou supra-terrena:
QUANDO UM HOMEM NÃO ADMITE SER UM ANIMAL, ele é menos que um animal. O
grande MAMÍFERO William Blake é importante pela beleza que apresenta,
pela clareza da sua visão e pelo seu exemplo. [...] O homem é um
mamífero se experimentando. [...] O HOMEM NÃO É UM ISÔMERO DE MAMÍFERO –
ele é precisamente um mamífero. A rota para essa consciência é
necessariamente biológica. A
poesia é biológica. (McClure 2005, p. 134)
A identificação com mamíferos e grandes predadores é ilustrada por seus
poemas de glossolalias e onomatopéias, a exemplo deste trecho:
[...] HUUUUUUUUUU! HUUUUUU! GRAHH!
GRUUUUUUUUUUUUUH! GRUUUUUUUUH! NAHHR!
MHII1
Gruuuuuuuur gruhta.
MUAHH!
Griiiiiiiii-gruuuuuuuuuuuuuu.
GARHRRRRUUUUUUUUUUUUH
RHUUG CLAUBB. [...]
(idem, p. 216)
Em vários de seus escritos e na entrevista publicada na edição
brasileira, A nova visão: de Blake
aos Beats, McClure detalha e dá exemplos:
[...] a não ser que nos dermos conta de que um animal é muito mais que o
homem socializado considera, não teremos noção da amplitude de
fronteiras e serem exploradas. [..] Eu fiz uma leitura de um poema de
Ghost tantras para quatro
leões num zoológico e tivemos a sorte de ter gravado os animais rugindo
junto com os poemas. Mais tarde, me pediram para fazer isso novamente
para um grupo de documentaristas e de novo os leões me acompanharam na
leitura. [...] Há uma forte conexão entre o
Ghost tantras e a minha crença de que quando um homem não admite que
é um animal, ele é menos que um homem. (idem, pgs. 203-205)
O português contemporâneo Herberto Helder é um poeta total: do sagrado e
do profano, da palavra, do corpo; e um poderoso poeta da natureza.
Poéticas e modos de expressar-se de Helder e McClure são bem diversas.
Mas é como se, em poemas da série “Selos”, de 1989, com ecos ou
reminiscências de quando morou em Angola, Helder comentasse ou
ilustrasse McClure:
São estes – leopardo e leão: carne turva e
atravessadamente
rítmica a sonhar nas noites de água aos buracos. [...]
Montanhas das áfricas,
montanhas das árvores que sangram.
Há tanto ar rodeando as árvores nas montanhas: na sua
animalidade
dourada, leões e leopardos compactos aligeiram-se
como o ar onde crescem as montanhas. [...]
Leopardos vivos debaixo das coroas, e os leões que alguém
soprou na boca. Como descem o ar
e a água das montanhas, como
se embrenham pelas árvores sangrando no escuro – e saem
ao reluzir dos dedos e aos cantos
roucos, nas áfricas. (Helder 1991, p. 558)
Em ambos, Helder e McClure, há
correspondência entre o rugido das feras e dizer poemas:
[...] O caos encontrava o equilíbrio
dos algarismos. Talvez cantassem, leão e leopardo
comigo: garras e unhas lunadas,
gargantas, as mesmas
pupilas bruscas, a mesma seiva, o mesmo furor
dourado na escuridão. [...] (idem, ibidem)
E, de modo mais incisivo, para
não deixar dúvidas quanto à sincronia das vozes do animal e do poeta:
[...] começa a ferver a luz como uma
coroação, a realeza do poema animal – leopardo e leão. Oh,
cantam em música humana, eles, no trono
das montanhas das áfricas redivivas. (idem, ibidem)
5
Semelhante identificação do animal ao sagrado, como se observa em
Snyder, McClure e Helder, entre outros, tem fundamento em cosmovisões e
doutrinas arcaicas. É substância dos mitos, dos relatos “daquele tempo”,
quando “os animais falavam”, como é dito nas fábulas. Atestam-no totens,
imagens teriomorfas (híbridas de animal e homem) desde as inscrições em
cavernas, os “abraxas” gnósticos e divindades animalescas em uma
diversidade de manifestações (cf. Willer 2010).
É correta a observação de Alain Daniélou
sobre o valor religioso do animal nas sociedades arcaicas, em
Shiva e Dioniso:
No universo cósmico, os princípios que se manifestam nos deuses, nos
gênios e nos homens também aparecem no mundo animal, vegetal e mineral.
[...] Alguns animais, por sua natureza e pelos símbolos que representam,
são sempre associados a certos deuses. Cada aspecto do divino está
ligado a uma espécie animal, como o elefante de Indra (o rei do céu), o
carneiro de Agni (deus do Fogo), o rato de Ganesha, o abutre de Vishnu,
etc.
Os princípios
representados por Shiva e a deusa correspondem à natureza do touro, da
serpente, da pantera (às vezes substituída pelo tigre e pelo leão) e, no
caso, venerados em Creta. (Daniélou 1989, p. 97)
O estudioso ainda associa os grandes mamíferos predadores, com aqueles
com que McClure se relaciona preferencialmente, a Dioniso:
Na tradição dionisíaca, o leopardo é consagrado a Dioniso e as mênades
são assimiladas a panteras. [...] O carro sobre o qual se apresenta
Dioniso é, às vezes, puxado por panteras. As mênades brincam com
panteras (idem p. 102)
Não há evidência de que McClure e Helder conheçam a obra de Daniélou. E
a busca de uma integração profunda com o mundo natural por McClure
precede cronologicamente a publicação de
Shiva e Dioniso. Mas essa foi
uma das obras de cabeceira de Piva, justificando terminar o presente
artigo com a citação de mais algumas de suas contribuições ao tema. Em
especial, nas etapas finais de sua obra, constituída pelos livros
Ciclones e
Estranhos sinais de Saturno.
Em Ciclones, a tônica
dominante é a oposição da vida natural e urbana:
piratas
plantados
na carne da aventura
desertaremos as cidades
ilhas de destroços (Piva 2008, p. 44)
Manifesta-se “pelos direitos não-/humanos do planeta” (idem, p. 56),
“sonhando saídas / definitivas da / cidade-sucata” (idem, p. 58),
impelido pela “força do xamã” que “provém do nada / do êxtase / do Eros”
(idem, p. 64), pois
a rua é muito estreita
para o exército
de folhas
& seu AXÉ (idem, p. 65)
A primeira parte de Ciclones é
composta por “flashes”, registros de instantes de encantamento:
gaivotas
estrelas que despencam
no mar
& se eclipsam (idem, p. 32)
A reintegração
equivale a uma experiência alucinatória:
Baco
me transforma
num astro vibratório
com este elixir
de cacto selvagem
(idem, p. 33)
Ou:
miraculosa Cannabis
planta do incesto
do sol com as
águas (idem, p. 54)
Em seu derradeiro livro, Estranhos
sinais de Saturno, alternam-se invocações e anátemas – “Os rios
revoltados saberão / vingar-se” (idem, p. 125) –, reafirmações do
caráter sagrado da natureza e visões da metrópole como cenário de
horror:
E para que ser poeta
em tempos de penúria? Exclama
Hölderlin adoidado
assassinos travestidos em folhagens
hordas de psicopatas
atirados nas praças
enquanto os últimos
poetas
perambulam na noite
acolchoada (idem,p. 149)
O final de Estranhos sinais de
Saturno – cronologicamente, o final de sua criação poética – é a
série intitulada “Uma dimensão extrema”; sobre plantas; e todas essas
plantas com uma função mágica, por isso presentes em rituais do
sincretismo afro-brasileiro ou de índios, assim propiciando ligações com
o sagrado: “Guarapuvu”, “Jurema preta”, “Grumixama”, “Espinheira Santa”,
“Ipê roxo” e “Pau-ferro”.
Mas um dos poemas de Ciclones,
dedicado a um pai de santo, um babalaorixá do candomblé, equivale a um
manifesto; incorpora temas, categorias e tópicas expostas neste ensaio.
Por isso, merece completar a presente série. A observar como anáforas e
repetições lhe conferem ritmo, força e caráter litúrgico:
Ritual dos 4 ventos & dos 4 gaviões
para
Marco Antonio de Ossain
Eu trago os guardiães
dos Circuitos
Celestes
Livro dos Mortos do antigo Egito
Ali onde o gavião do
Norte resplandece
sua sombra
Ali onde a aventura
conserva os cascos
do vodu da aurora
Ali onde o arco-íris
da linguagem está
carregado de vinho subterrâneo
Ali onde os orixás
dançam na velocidade
de puros vegetais
Revoada de pedras do
rio
Olhos no circuito da
Ursa Maior
na investida louca
Olhos de metabolismo
floral
Almofadas de floresta
Focinho silencioso da
suçuarana com
passos de sabotagem
Carne rica de Exu nas
couraças da noite
Gavião-preto do oeste
na tempestade sagrada
Incendiando seu
crânio no frenesi das açucenas
Bate o tambor
no ritmo dos sonhos espantosos
no ritmo dos naufrágios
no ritmo dos adolescentes
à porta dos hospícios
no ritmo do rebanho de atabaques
Bate o tambor
no ritmo das oferendas sepulcrais
no ritmo da levitação alquímica
no ritmo da paranóia de Júpiter
Caciques orgiásticos
do tambor
com meu
Skate-gavião
Tambor na virada do
século Ganimedes
Iemanjá com seus
cabelos de espuma
Claudio Willer
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