Depois de Ernesto Melo e Castro, com "Do Leve à Luz" e António Barros,
com "Progestos_Obgestos", duas antologias, parte integrante da primeira
fase do ciclo "Nas Escritas PO.EX", iniciativa da Casa da Escrita de
Coimbra, é tempo de uma leitura particular à obra de Silvestre Pestana
com a mostra: "POVO NOVO - Virtual". Um percurso de obra desenvolvida
nas últimas três décadas, atividade laboratorial em muitas das
circunstâncias desenvolvida na cidade de Coimbra, mormente na comunidade
artística 'Círculo', CAPC, e no Teatro Estúdio do CITAC
(P&P-Artitude:01).
Mupi «Povo Novo»
Se o trabalho sociológico e militante de Pestana é paradigmático da sua
obra poético-performativa, é na revelação distintiva das insularidades
que o seu tempo identitário se manifesta com maior argúcia artística. E
aí, da ilha ao mar, o lumen da sua escrita visualizante convulsivamente
se revela.
A exaltação onírica das estórias do mar resultam num desafio a um outro
respeito pela água.
É a mestria de Silvestre Pestana quem nos ensina.
Como comissário convidado a formular um aconselhamento programático para
o Museu da Água, em Coimbra, no âmbito das Comemorações do III
Aniversário do Museu, e do dia Mundial da Água, na edição de 2010, zelei
por proporcionar uma contribuição inédita e sensível. Esse arquitetar do programa surgiu na contemporaneidade da tragédia
da ilha da Madeira (20 fevereiro, 2010), calamidade a que ninguém mais
pôde ficar indiferente. Foi assim, solenemente, à cultura madeirense que fui buscar o
sentido referente, e nenhuma obra representaria tão bem, e de modo tão
anímico, a evocação do momento como a peça artística "Águas Vivas" de
Silvestre.
É este, um artista cuja obra comecei por apresentar em 1977 (e pela
primeira vez em Portugal após o seu regresso do seu exílio em Estocolmo)
comissariando para a Galeria CAPC, do Círculo de Artes Plásticas da
Universidade de Coimbra, a sua obra fundamental: "POVO NOVO", peça de
1975. É este o trabalho que, com "Atómico Acto", publicado na revista
Hidra n.2, em 1969, e com "Águas Vivas" em 2001, se formulam numa arte
contemporânea de excelência os três pilares fundamentais da obra de
Pestana.
Neste arco temporal de 45 anos de produção artística deste autor,
formulei uma divulgação permanente da obra de Silvestre que, comigo, com
o Ernesto Melo e Castro, a Ana Hatherly, a Salette Tavares, o António
Aragão e toda uma "poesia experimental", vieram a dar manifesto ao (para
alguns analistas denominado) "Visualismo Português" dos anos 60 - 80. Foi nesta contextualidade, então, que publiquei em Coimbra "Águas
Vivas" de Silvestre Pestana, rosto do livro "Fronteiras da Ciência,
Desenvolvimentos Recentes - Desafios Futuros", coordenação de Rui
Fausto, Carlos Fiolhais e João Filipe Queiró, edição da Imprensa da
Universidade de Coimbra (IUC) e das Edições Gradiva; e algum tempo
depois "FÉNIX", rosto do livro "Ciência e Mito" de A. M. Amorim da
Costa, coleção Ciências e Culturas, também da IUC (após apresentação em
"Line Up Action", Coimbra, 2010).
Montagem da exposição / instalação: "Águas Vivas", 2001, Silvestre
Pestana / Galeria Alvarez / Porto / Foto: António Alves.
Resulta "Aguas Vivas", a obra escultórica deste artista madeirense,
como um arquipélago de cinco peças fabricadas em néon linear e zarcão, e
alimentada com electricidade "contínua em alta tensão", sempre numa
evocação às 'águas-vivas' oriundas daquela geografia atlântica.
Águas-vivas são animais marinhos em forma de sino, oscilando entre
2,5 cm e 2 m, cujo contacto com a pele humana provoca queimaduras.
Transparentes e luminosos, com grandes tentáculos, chegam a ter cerca de
98% de água (1).
Se a esculturalidade de "Águas Vivas" é, no seu desenho, a
transfiguração desses animais d'água, não menos é, na representação
semântica que uma nova leitura convoca, a força dos aluviões com que a
água luminosa e determinada se afirma em cascata a partir da negritude
dos altos rochedos basálticos da ilha.
Em 2010 a tragédia no arquipélago da Madeira convocou um outro
olhar, e um respeito pela água que a obra de Silvestre aqui bem ilustra
ao enunciar toda uma verticalidade, e a luz anímica de que uma população
se fez alimentar para, da sua insularidade, se erguer de novo.
A exploração texto-ambiental deste artista de origem concretista,
revela-nos ainda uma revisitação a uma condição letrista, mas, aqui
também eléctrica - eléctrico/letrista -, ou seja: de uma contaminação
(e)le(c)tricizante.
A luz anímica revelada por estas 'Medusas sem véu' enunciam uma
letra: A (Anímica, multiplicada ao fazer-se sustentar na solidez grupal
de vários pernos, carácter que, na sua luminosa reflexão, logo resulta
em forma de letra: V (de Vitória), ilustrando assim o vigoroso devir da
reabilitação.
O Museu da Água, com a arte de "Águas Vivas", ergueu gesto
solidário à causa madeirense e abriu assim, em manifesto, um novo
caminho de reflexão sobre o respeito e zelo que a água obriga e a todo o
momento nos merece.
Mas não nos podemos fazer ausentar, nunca, de uma análise sobre a
obra "Águas Vivas", ignorando a dimensão autobiográfica que a peça
concerne. Ela formula uma visitação onírica à infância do autor na
moldura da sua própria insularidade.
É comum a todos quantos nados neste arquipélago, ou todos os que
encontraram neste lugar co-habitação vulgar com as águas-vivas, fazer
recordar estes animais que tanto preenchem as nostálgicas estórias de
qualquer nadador desta ilha. Estas medusas urticantes foram, convulsivamente, ainda personagens
de narrativas fantasiantes do imaginário especulativo, e até mesmo
educacional, na relação de muitos pais ao zelarem pela orientação dos
seus filhos. Nenhum madeirense ignora estes celenterados. Nem tão pouco apagou da
memória os momentos "castigadores" gerados por estas 'urtigas do mar' ao
terem agido perante insubordinados gestos do ir para o mar
indevidamente, na subida das marés, e que Silvestre tão alegremente nos
revela. O autor assume este mundo de revisitação constante da sua geografia
cultural e mórfica. Originária.
No seu percurso de obra o arquipélago assume regressos constantes
como sucede em "Ilhas Desertas" - trabalho apresentado no Porto e
Coimbra nos anos oitenta.
A insularidade é um referente que ganha dimensão iconográfica
constante em toda a sua obra. Actividade que re-inventa novas dimensões
de ilha. Experienciadas. Quer na dimensão ideológica que o autor assume
na memória (do anarco-comunismo colhido ao Living Theatre de Julien
Beck, ao mundo das transcendências múltiplas do mundo zen, e até aos
avatares que hoje pululam a 'second life'), quer ainda no cadastro da
emigração, essa vivenciada num exílio politicamente comprometido. Essa
feita como uma tentativa de anulação do regime que o país, este, então
estava amargamente obrigado. É também aqui que a obra de Silvestre ganha uma dimensão
sociologicamente carregada.
É uma poesia comprometida. Como sucede com a dominante da melhor
"poesia experimental portuguesa". Irreverentemente comprometida nas suas
convulsivas transfigurações. Do objecto ao texto. Logo de uma singular
condição de arte sem poeiras. Verticalmente anímica e luminosa.
Iluminante.
António Barros, Coimbra, 2013
(1) Águas-vivas são os animais-marinhos, os celenterados. "Águas
Vivas", titulação a que o autor retira o hífen entre as duas palavras
(águas e vivas), enuncia a transfiguração do real; a obra de arte em si,
e aqui apresentada.
SILVESTRE PESTANA (n.1949, Funchal, Portugal)
A sua obra, com autores como Ana Hatherly, António Aragão, Salette
Tavares, Ernesto Melo e Castro, António Barros, Liberto Cruz, Fernando
Aguiar e Alberto Pimenta, integra o Visualismo Português entre 1964 e
1980, movimentação artística que hoje inscreve um domínio particular na
coleção do Museu de Arte Contemporânea da Fundação Serralves.
Foi em Hidra 2 - Colectânea da Poesia Concreta que, com 'Atómico
Acto', o artista em 1969 vem a revelar-se na Poesia Experimental
surgindo a integrar, já no ano seguinte, a Antologia da Poesia Concreta
em Portugal com trabalhos editados a partir do seu exílio na Suécia.
Master in Arts - Art and Design Education pela De Montford
University, Leicester, England, estudou Comunicação e Televisão e
diplomou-se no EMS de Música Electrónica em Estocolmo onde frequentou o
Filkigen Studio, tendo apresentado "Acrilic Kunst" na Galeria K, Gamgla
Stan-Stockholm.
Com Seme Lutfi dirigiu seminários sobre Poesia Experimental
Portuguesa no London Poetry Center, sendo o pioneiro da
Computer-Generated em Portugal ao ter criado em 1982 os "Computer Poems"
para Spectrum.
Com Lutfi fundou o Anima que com Filipe Crawford, Eugénia Melo e
Castro e Rui Frati criou um "Teatro Acção de Textos Visuais", estes,
poeticamente desenhados como as 12 Pautas Poético-Gráficas para Anar
Band de Jorge Lima Barreto e Rui Reininho, e as vídeo-performing arts
para Multi/Ecos no Simposium Projectos & Progestos na Universidade de
Coimbra; no Centre National d'Art et Culture George Pompidou; na DO(C)KS
de Paris com Julien Blaine e nos Rencontres Internationales de Poésie
Contemporaine, Cogolin, com António Barros, e com Aldo Brizzi e Joaquim
Castro Caldas no ACARTE-Fundação Calouste Gulbenkian.
Com José Ernesto de Sousa inscreveu a Alternativa Zero, onde convocou o
Living Theatre de Julian Beck e Judite Malina, grupo com quem privou nos
anos setenta em Londres.
Nas narrativas do video apresentou-se com Helena Almeida, Leonel Moura e
Julião Sarmento para o Portuguese Video-Art na Gallery of New Concepts,
University of Iowa, USA, obras integrantes da representação portuguesa
para a XIV Bienal de S. Paulo, assim como no 4th Tokyo Video Festival no
Japão.
Foi co-organizador, com Fernando Aguiar, de Poemografias-Perspectivas da
Poesia Visual Portuguesa para as Edições Ulmeiro e fundador, com António
Dantas, da Bienal Internacional What is Watt?
Em [+ de 20] representou a arte portuguesa em Porto Cidade Capital
Europeia da Cultura, 2001 e, com "Águas Vivas", foi laureado com o
Grande Prémio XIII Bienal Internacional Arte de Cerveira, obra editada
pela Imprensa da Universidade de Coimbra e Gradiva, como rosto da
antologia Fronteiras da Ciência com direcção de Rui Fausto, Carlos
Fiolhais e João Filipe Queiró, obra apresentada ainda em 2010 no Museu
da Água, em Coimbra.
Silvestre Pestana hoje assume-se como Cyber Artist mas, na verdade,
é a sua obra simbólica "Povo Novo" que continua distintiva do devir de
uma nova condição social nos anos setenta sinalizando iniciativas
paradigmáticas como foram: Anos 70, Atravessar Fronteiras no Centro de
Arte Moderna - Fundação Calouste Gulbenkian; POVO na Fundação EDP em
Lisboa; Corpo Comum, Centro Cultural Vila Flor e agora em Coimbra, na
Casa da Escrita, no ciclo Nas Escritas PO.EX.
António Barros • Nasceu em 1953 -
Funchal, Ilha da Madeira.
Estudos: Facultat de Belles Arts, Universitat
de Barcelona; Universidade de Coimbra. Vive e trabalha em Coimbra.
Em "Artistas Portugueses na Colecção da Fundação de Serralves", é o
director do Museu, João Fernandes, quem enuncia: "António Barros é dos
nomes relevantes do contexto da poesia experimental e das artes
performativas em Portugal. A obra de António Barros objectualiza e
espacializa o texto, explorando novas polissemias originadas pelo
cruzamento da textualidade com uma visualidade iconoclasta e
irreverente".
De sensibilidade fluxista, a sua obra convoca não só uma arte de
situação debordiana, como ainda a Escultura Social de Joseph Beuys,
tendo também trabalhado com Wolf Vostell no Vostell Fluxus Zug, Das
Mobile Museum Kunst Akademie em Leverkusen.
Se as suas artitudes convocam o situacionismo de Guy Debord ao visitar a
poésie directe francesa, Lawrence Ferlinghetti, pioneiro do Movimento da
Beat Generation para a poesia - quando destaca a obra performativa
"Revolução" em Cogolin, 1986 -, e Julien Blaine - ao publicar "Tradição"
e "Escravos" na revista Doc(k)s -, são quem primeiro internacionaliza a
arte de António Barros.
Esta última atitude em objecto-texto, é a que em 1984 um júri -
integrando Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira,
Urbano Tavares Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, Maria Velho da
Costa e Manuel Alegre -, destacou no Concurso Nacional de Poesia 10 Anos
do 25 de Abril, resultando este texto num elemento identitário do seu
percurso "visualista" - onde o objecto e a palavra sinergicamente se
insinuam.
A resiliência com que sinaliza os seus gestos de escrita [progestos],
leva-o ainda à territorialidade do objecto escultural, vindo a criar, e
para além dos seus múltiplos environments como "Algias, NostAlgias" e "Amant
Alterna Camenae", o Prémio de Estudos Fílmicos Universidade de Coimbra,
com que foram laureados Alain Resnais, Manoel Oliveira e João Bénard da
Costa.