REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 34 | dezembro | 2012

 
 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

 

Entrevista a Joaquim Quelhas Mota a propósito da obra «Sobre a Lógica da Evolução e o Surgimento de O Humano»

Fotos de Ana Luísa Janeira

Foto: Ed. Guimarães    

Maria Estela Guedes. Poeta, ficcionista, cronista, dramaturga, historiadora da História Natural e da Maçonaria Florestal Carbonária. Tem umas dezenas de títulos publicados.                   

 

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Maria Estela Guedes - Joaquim Quelhas Mota, o que o levou a si, um engenheiro electrotécnico, a meter ombros a uma tarefa monumental de reflexão biológica e filosófica, que se anuncia em cinco volumes, «Sobre a Lógica da Evolução e o Surgimento de O Humano», de que saiu agora o Vol. I?

Joaquim Quelhas Mota – Em primeiro lugar, eu-próprio com as minhas próprias interrogações, a necessidade de compreender. 

Em segundo lugar, nenhum de nós se confunde com a sua formação académica, ainda menos com a sua especialização. Somos todos seres Humanos (muito diferentes de seres apenas biológicos), portanto muito mais do que aquilo que a sociedade “lucra” com cada um de nós enquanto agentes que participam em algum tipo de troca menos ou mais útil à comunidade aonde nos inserimos.

No fundo, quando diz que sou engenheiro electrotécnico, está implicitamente a delimitar-me (e confundir-me) à minha profissão, está a enclausurar-me, e simultaneamente está a dizer-me: de si, só quero o profissional – de facto, nem chega a dizer que “o Homem” não lhe interessa, já que ele foi fundido no ser-engenheiro, e, ao interessar-se pelo engenheiro, pensa que se está a interessa pelo Homem. 

Bem..., numa outra perspectiva: digo continuamente aos meus filhos que “para além da sua especialização, devem ter sempre em estudo pelo menos mais duas áreas do conhecimento”. Embora, seja verdade que frequentemente me respondam: “a competição, já nem nos deixa tempo suficiente para a nossa especialização!”. É lamentável; mas, de facto, se os robôs tivessem salários (têm-nos os seus donos), eles seriam hiper-ricos, e os seres-humanos morreriam de fome.

Felizmente, pude fazer alguma escolha. A minha atividade profissional e o momento e local em que a exerci, em Angola, não só a proporcionou como a fomentou. Eu diria que a minha atividade profissional, não para estudar especialidades (evidentemente estruturadas na “análise”), mas para estudar “sínteses”: para fazer inter-relações entre várias disciplinas, e propor decisões. De certo modo, é sempre esse o papel do gestor, ainda que infelizmente, também aqui a formação clássica se fique por um excesso de atenção à economia e finanças. Eu penso, inclusive pela minha experiência, que as Universidades deveriam incluir muito mais Filosofia na formação dos gestores. O gestor é um sintetizador e, simultaneamente, um inovador no estabelecimento de relações entre ciência-e-técnica, pessoas e sociedades. De certo modo, é um filósofo “prático”. Bem..., Platão já defendia que os estados deviam ser governados por filósofos.

Fazem-nos falta “sintetizadores” – Filósofos “de síntese”. E, quando mais especializados nos tornamos, afinal mais des-humanos nos tornamos, mais precisamos de Filósofos.

Maria Estela Guedes - A experiência angolana, em especial o facto de ter sido Secretário de Estado da Energia e Águas de José Eduardo dos Santos, teve alguma influência no seu desejo de escrever a obra?

 
Joaquim Quelhas Mota – Não. As pessoas estão inseridas em sociedades, entidades portadores de sistemas Culturais que, não só, as definem como se revelam no forma como se manifestam. Isso é muito mais importante.

A razão do meu livro terá muito mais a ver com o falhanço do sistema comunista enquanto sistema de gestão de sociedades-humanas, do que por quaisquer outros motivos (e, afinal, se alguma vez eu fui especialista”, fui-o em gestão – portanto, um não-especialista).
 

E, nem se trata do falhanço do caso de Angola, ainda que só isso já constituísse motivo de questionamento. Trata-se daquilo que pude apreciar (e debater) sobre as experiências (sócio-políticas) cubana, soviética, búlgara e húngara, em cujos países estive, e daquilo que se conhecia do que se passava em outros países.

Também pode ter sido, porque Angola foi um palco de amplo debate do pensamento de esquerda durante vários anos. Nesse período, havia em Angola centenas de intelectuais estrangeiros de muitas variantes políticas de esquerda, como brasileiros, chilenos, dinamarqueses, suecos, uruguaios, holandeses, portugueses, etc., que trouxeram não só exemplos de possíveis esquerdas, mas principalmente trouxeram uma atitude crítica face a essas possibilidades – o que, aliás, veio reforçar algo que, pela própria história dos políticos angolanos, já existia de forma evidente no seu seio.

“Porque falhamos?” eis a primeira pergunta. Mas, logo de seguida teve de se alargar para uma outra mais abrangente: “porque falham muitos dos países ditos socialistas?”. E, à medida que a minha investigação se alargava, para uma outra ainda mais universal: “porque falham muitas (ditas) democracias?” Por exemplo, diga-se que Portugal, enquanto país democrático e socialista (ditos), constituiu para mim uma das primeiras desagradáveis surpresas logo que comecei a estudar as atuais democracias ocidentais – infelizmente, a situação de “hoje” vem mostrar resultados que há muito já tinha previsto por similitude com realidade políticas e sociais que já conhecia.

Ainda quanto à motivação do livro, a esta pergunta acrescentar-se-á  uma outra, possivelmente a mais pertinente de todas: “como é que pessoas que durante anos colocaram as suas próprias vidas em risco pela defesa de ideais de Humanidade, nomeadamente de solidariedade humana; que inclusive terão visto morrer até muitos dos seus melhores amigos nessa luta; são “hoje” capazes de sacrificar aqueles por quem lutaram?

Para um gestor de sistemas sociais (globais), essas questões são Fundamentais. Procurar as suas respostas através da ciência, parece ser o caminho adequado.

Respondendo à sua pergunta: o surgimento do livro está apenas ligado à procura das respostas a essas interrogações.  

Maria Estela Guedes - O intelectual que conheci mais semelhante, nos propósitos, a si, foi o Prof. G.F. Sacarrão, com várias obras de reflexão filosófica sobre temas da Biologia, e em especial da Sociobiologia, que lhe mereceu bastantes críticas. Mas o Prof. Sacarrão era biólogo, com tese em embriologia dos cefalópodos, o que lhe dava aptidões para entender, por exemplo, a investigação tão altamente especializada nas questões da célula de Lynn Margulis, que estão na origem da Teoria de Gaia. O Joaquim Quelhas Mota é um engenheiro. Não sentiu medo de enveredar por terrenos tão estranhos aos da sua formação de base? Quais foram as suas maiores dificuldades?

Joaquim Quelhas Mota – Bem..., eu comecei por interrogar-me. Sempre se tratou de uma questão pessoal: eu perante mim mesmo. As minhas questões inquietavam-me. Para mim próprio, eu tinha de continuar a busca. Afinal, tinha falhado – assim auto-avaliava a minha participação social. E, interrogar-me e estudar, foi o que sempre fiz. Nunca pensei escrever um livro. Transformar as minhas reflexões num livro, foi coisa muito, muito recente – possivelmente, como alguns amigos me têm dito, como a Professora Ana Luísa, talvez tenha publicado demasiado cedo. Todavia, como tem sido um trabalho solitário, eu precisava urgentemente de “ser criticado”, só a crítica poderia ajudar a corrigir-me – e eu preciso dessa ajuda. Afinal, essa é uma vantagem das Ideias (Hipóteses): podem ser alteradas ou mortas, sem que o seu autor tenha de sofrer o mesmo destino. 

Por outro lado, note-se que nunca me coloquei num plano académico, nem me interessava para o que pretendia, ainda que agora precise dos académicos para me criticarem, e simultaneamente nunca me coloquei a mim-mesmo perante ter de descobrir coisas verdadeiramente novas, como a ciência o faz. O meu trabalho é muito mais de síntese, portanto sobre aquilo que já se conhece; e, nessa síntese, é procurar ver a inter-relação que, acontecendo entre diversas áreas do conhecimento, poderá dar respostas às interrogações previamente formuladas.

De qualquer modo, os riscos são enormes. Nomeadamente, o facto de não ser um especialista, mas pretender manusear conceitos especializados, torna possível interpretações erradas desses conceitos e, como tal, inferências igualmente incorretas. Daí, a necessidade que sinto em ser criticado por especialistas; só a crítica, pelos especialistas, me pode ajudar. 

Em conclusão: eu não trabalhei “em profundidade”, eu trabalhei “em superfície”. Daí que tal trabalho não se possa comparar propriamente a um trabalho de especialista. Será muito mais um trabalho de não-especialista. Não se trata de um trabalho de ciência, quanto muito poderá dar pistas para trabalhos académicos. Tratar-se-á muito mais de um trabalho especulativo fundamentado de molde a proporcionar debate.

Maria Estela Guedes - Os seus leitores já notaram, e outros vão notar, que o seu não academismo é tão forte que assume contornos provocatórios. Vou saltar sobre as questões bibliográficas e interpelá-lo apenas no que respeita à escrita, já que sou escritora: como justifica a sua linguagem? Tem consciência de que criou um discurso próprio, quase um idiolecto, ao maiuscular palavras, ao separar ou unir elementos de composição verbal, como se vê logo no título, quando decompõe a preposição e artigo «do» em «de O Humano»?

Joaquim Quelhas Mota – Tal linguagem facilita ou dificulta a comunicação? Se facilita a comunicação, atingi os meus objectivos; errei, se nada acrescenta ou, mesmo, se a dificulta.

Bem..., muita da minha reflexão foi resultado de um longo “partir pedra”; mas, à medida que se foi formando um puzzle (conceptual), passou a ser esse puzzle a comandar o processo, inclusive o processo de investigação – como se me coubesse a mim ir simplesmente à procura da peça (no mundo empírico) daquilo que o puzzle me dizia que deveria estar aí (para ser colocado no puzzle). Assim, e em certo sentido, cada peça encontrada, parecia confirmar o puzzle. Todavia, rapidamente me vi envolvido por conceitos que só não me eram estranhos porque emergiam do próprio puzzle – como se ele-próprio os definisse. Não se tornou, pois, fácil traduzir esses conceitos.

Assim, no exemplo acima dado “do Humano” face ao “de O Humano”, o “O” associa-se ao “Humano” como que completando-o na sua definição (do seu próprio conceito). Poderia ter escrito “do”, mas nessa forma não explicitaria essa intenção  - por outro lado, ao escrever em alternativa “de o” também não impedi a comunicação correta. Porque então não o fazer? Porque há uma norma? Não me parece que seja razão suficiente – ainda que, pela própria forma, possa ser criticado!  

Maria Estela Guedes - Em resultado da concepção desta obra, obteve, como diz, uma cosmovisão. Pode adiantar-nos uma síntese do que pensa sobre o nosso futuro como a espécie mais predadora de Gaia, a Terra? 

Joaquim Quelhas Mota – Uma cosmovisão não passa de uma perspectiva sob a qual se vê-e-interpreta as coisas: o Universo e a nós-próprios. Não passa de um microscópio (ou telescópio) – é preciso apontá-lo, para aí aonde a interrogação se situa. Cabe-nos: ter vontade de o fazer, escolhê-lo como ferramenta e apontá-lo, para ver. Mas, como é evidente, nunca se vê sem uma cosmovisão que anteceda esse ver.

Ora, segundo a minha opinião, a nossa clássica cosmovisão: o Transformismo (pelo menos, no mundo ocidental), não nos deixa ver parte da Realidade que somos e na qual somos: a Realidade “em evolução” - descoberta pela Biologia, e interpretada por uma Teoria que a descreve, ainda que apenas para o mundo biológico.

Quanto à mãe Gaia, a única coisa que poderia dizer é que, admitindo-se que há uma Realidade “em evolução”, portanto uma Realidade que integra em si-mesma o aleatório-e-indeterminado, há que ter muito cuidado com o experimentalismo (determinístico) com que os seres-humanos se vêm a manipular a Realidade, como se a dominassem (a si-mesma) e nas suas consequências – afinal, como se estivessem na posse da Verdade (de cuja atitude a História está cheia de exemplos). De facto, nem nada garante que o ser-humano perdure; mas, ter consciência das suas limitações, ajuda-lo-á a ser suficientemente modesto para, não só, se interrogar (pelo menos, das asneiras que comete) e procurar respostas a essas interrogações, como também que se torne mais cauteloso na introdução das suas inovações (modismos), já que elas trazem sempre consequências imprevisíveis, e como tal potencialmente perigosas.

Por exemplo, alguém acredita que Hitler, ou Stalin ou Salazar odiavam tanto os seus povos que os quiseram conduzir à miserável situação a que os levaram? Alguém acredita que as elites políticas do pós 25 de Abril odiavam tanto os portugueses e Portugal, que os quiseram destruir? - como hoje está claramente o manifesto na situação que Portugal e os portugueses vivem. Como puderam eles tomar as decisões que tomaram? E, como puderam ser apoiados?

De certo modo, é a isto que o livro procura responder, nomeadamente quando propõe uma epistemologia que integre aquele tipo-de-Realidade: a Realidade “em evolução”. O facto de me localizar perto da Biologia, de que Gaia é sua manifestação, é apenas porque foi aqui que ela foi descoberta pela primeira vez e foi aqui que, também, surgiu uma Teoria tendo em vista a interpretá-la. A Física e a Matemática só muito recentemente se dedicam ao seu estudo – pelas questões do acaso e da complexidade. Penso que em mais nenhuma área do conhecimento a Realidade “em evolução” mereceu um tratamento tão sistemático – com exceção eventualmente da Filosofia, da qual saliento Popper, que em certo sentido a integrou na sua epistemologia (cosmovisão).

Maria Estela Guedes - Para terminar, e voltando-nos agora para domínios mais restritos: como vê a nossa situação atual, em Portugal? Que futuro nos espera?

Joaquim Quelhas Mota – Infelizmente não tenho uma visão positiva do que se passa. “Errou-se”. Afinal, aqui há também que fazer a pergunta: “como foi possível ter-se lutado para se atingir um objectivo, e acabou-se por ir parar precisamente ao lado oposto?” Enquanto não se responder a esta questão, ou pelo menos fazer uma aproximação à sua resposta, vai continuar em Portugal a haver um experimentalismo  sustentado em “eu tenho a Verdade”.

 
Como primeiro passo para a resolução da Crise com que Portugal se debate, gostaria de já ter ouvido das elites políticas do pós-25 de Abril a pergunta “porque falhamos?”. Culpar o atual Governo pelo que está a fazer (ou culpar a troika pelo que impôs), independentemente de haver ou não objecções às suas medidas, é culpar “os outros” – é, no fundo, não querer ver. Colocar o pergunta “Porque falhamos?”, é o primeiro passo! Se essa pergunta tivesse sido colocada há cerca de 80 anos, talvez não se tivesse repetido esta situação. Ou seja, acabo por não augurar nada de bom. A dívida que Salazar herdou (de um sistema também dito democrático e, ainda por cima, também dito liberal) bloqueou o país durante 40 anos; quanto tempo irá agora esta dívida bloqueá-lo?
 

Claro que hoje há outras soluções – como, por exemplo, o país ser comprado (algo que não acontecia no tempo de Salazar). Infelizmente, parece ser esse o caminho que já está a ser seguir, e pela mão dos próprios portugueses, tal a situação de enclausuramento em que o meteram. E, simultaneamente, os próprios portugueses têm-se visto na necessidade (biológica) de terem de abandonar a sua terra: ou o fazem, ou morrem (mesmo que de morte lenta). Mais grave do que isto, seria praticamente impossível – “o falhanço” foi gravíssimo. Que outros países tenham seguido caminhos similares, não é solução (nem satisfação) para os portugueses e Portugal. Portugal esto dos portugueses e de Portugal. s silimares, nada reo que isto, ebate.mde "ente ao lado oposto?"u iplinar, com vista ná de facto a atravessar um período muito difícil da sua História: o da sua sobrevivência enquanto entidade (e Identidade) Cultural.

   
 
JOAQUIM QUELHAS MOTA

Sobre a Lógica da Evolução e

o Surgimento de O Humano

Vol. I

Portugal, Imagens & Letras, 2012

(pdf)
   
 

 

Jornal InComunidade (Porto)

 

 

© Maria Estela Guedes
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