REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 33 | novembro | 2012

 
 

 

 

 

 

 

RISOLETA PINTO PEDRO

Religião, Maçonaria

e espiritualidade

                             
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Em tempo compreensivelmente pouco virado para os ventos do espírito, porque se receia pela matéria naquilo que ela tem de mais premente: alimentação, teto, saúde, vejamos do que falam as escolas religiosas ou esotéricas quando falam de espírito e quando, algumas, o separam, no discurso e na prática, do corpo.

Espírito é, segundo o dicionário, a parte imaterial do ser humano, que identifica com a alma.

Etimologicamente vem do latim “spiritus” que significa sopro, exalação, sopro vital, espírito e alma. Está ligado ao vocábulo latino “spirare” que significa respirar.

Espiritualidade é, ainda segundo o dicionário, a qualidade daquilo que é espiritual; característica ou qualidade do que tem, ou revela, intensa actividade religiosa ou mística; religiosidade: misticismo; elevação; transcendência; sublimidade.

O antónimo é: carnalidade, materialidade, mundaneidade, o que é partilhado por muitas pessoas, independentemente de estarem dentro ou fora das escolas iniciáticas, como a maçonaria, numa clara herança da tradição maniqueísta e teísta; pelo seu lado, a concepção panteísta da existência vê Deus em tudo.

Ora, apesar de o tema escolhido ser a espiritualidade, ou talvez por isso mesmo, não poderemos tratar o conceito sem falarmos do corpo, porque se colocamos a elevação, a transcendência e a sublimidade de um lado, e do outro, opondo-se-lhe, a carnalidade e a mundaneidade, mais um pequeno passo e estamos a situar o corpo, o mundo e a matéria do lado do eixo do mal, à boa tradição maniqueísta. Uma espécie de talibanismo. Ou conservadorismo, na “melhor” tradição americana. Os duas culturas “inimigas” têm muito mais em comum do que querem acreditar. A velha questão da sombra e projeção…

Parece-me estar subjacente a esta temática (ou corre-se pelo menos o risco de as associar), uma visão teísta da maçonaria, no sentido de que Deus, ou o espírito, estaria para lá da matéria, dela ausente. O que é uma coisa muito perigosa, porque conduz facilmente a algum tipo de fundamentalismo.

A visão teísta usa apenas uma parte do imenso poliedro com que se pode olhar as coisas. A panteísta usa todas as partes. E aí está incluída a carne, a matéria e o mundo. E também a alma, o espírito e o sopro.

Por isso, eu faria a leitura interpretativa deste tema traduzindo-o assim:

“O sopro e a respiração nas escolas do espírito”. Porque no sopro temos tudo, sem separação. Temos o pneuma, o pulmão, e temos o espírito, a respiração. O corpo e a alma. Enquanto estiver neste mundo, cristão ou não cristão, católico ou não, maçon ou não maçon, penso que nenhum deles, a não ser que esteja gravemente doente da alma,  gostaria de se sentir como um espírito desencarnado.

Com o surgimento do positivismo no século XIX e a sociedade de consumo no século XX, acompanhados de uma filosofia, uma estética, uma economia e uma ética predominantemente materialistas, gerou-se um desequilíbrio para o “lado” da matéria. A reacção foi, a partir de uma certa altura e, como era de esperar, o desequilíbrio no outro sentido.

Compete também aos cristãos (perdoem-me as outras religiões, o facto de não as citar não significa que as minimize, mas adotei provisoriamente como meu espaço de referência, a tradição ocidental), e compete igualmente aos maçons reequilibrar a balança, reabilitar a matéria, acabando com a dolorosa separação espírito/corpo. Até porque símbolos não faltam para esse trabalho, em qualquer tipo de templo, cristão, maçónico ou rosa-cruz: o cheiro do azeite, das velas ardidas e dos incensos, os sabores experimentados, as texturas, que vão da madeira das portas que nos dão entrada, à pedra polida pelos passos dos séculos, passando pela granulosa consistência da terra à entrada, passando pela rugosa, nodosa madeira, ao calor do fogo na vela que seguramos na mão ou que contemplamos no altar, a textura dos panos, dos variados tecidos, no corpo, nas mãos, a suavidade da pele das mãos dos irmãos do caminho da fé, a temperatura das que estão frias, das que estão tépidas e das mãos quentes, a opulência simbólica dos dourados que se revelam perante o nosso olhar, e os ruídos dos batentes, e os sons mântricos das fórmulas que, a toda a hora proferimos, o constrangimento ou a libertação dos gestos simbólicos. Assim como na vida. Não tenho dúvida que à espiritualidade é pelo corpo que chegamos. Ou não chegamos.

Ponho a tónica no processo, vejo o ritual, seja ele qual for, como um trabalho de mercúrio, ou de ponte para algo. Os seus instrumentos são religiosos no sentido em que procuram ligar a matéria ao espírito e vice-versa. Religiosidade ou espiritualidade no sentido de reconciliação do que estava separado. A partir da base que habitamos, que é o corpo.

Por mais que me esforce, não conheço, neste mundo, fora ou dentro dos templos, nada mais espiritual do que a matéria.

E é o equívoco da crença ao contrário, que foi sendo depositada nas nossas mentes, que levou a que muitos pretensos espiritualistas tivessem virado as costas ao mundo, deixando o terreno aberto àqueles que não perdem uma oportunidade ou uma distração para se aproveitarem e criarem o cenário de “fartar vilanagem” que ao longo dos tempos fomos permitindo e hoje tão visível se encontra aos nossos olhos surpreendentemente espantados. Porque fomos cúmplices. Ao desprezarmos a nobreza do dinheiro e do negócio, ao esquecermos as necessidades do corpo como templo, ao amordaçarmos a sua eloquente linguagem num pseudo-hedonismo que se alheou da dor e do sintoma e o escondeu sob camadas de drogas e anestésicos de todo o tipo, dos antidepressivos às “drogas do prazer”, fomos ficando cada vez mais longe de nós mesmos e do mundo. Não suportamos nenhuma dor do corpo nem da alma, temos aspirinas para tudo, o alívio ao alcance de uma pílula, evitamos as lágrimas que lavam, tememos a vida e escondemos a morte, dessacralizamos o sexo, receamos o tempo e repuxamos a pele, matámos a nossa curiosidade e alegria e não toleramos às crianças que mostrem a nossa própria traição, sorrimos quando não queremos, escondemo-nos para chorar, deixámos de cantar, de andar e até de nos zangarmos. Fingimos que estamos contentes, que meditamos, que rezamos e já não corremos atrás do elétrico. Parece mal.

Temos os nossos rituais em dias marcados, comédias quando é preciso esquecer ainda qualquer teimosa ou insidiosa dor, respiramos apenas para não morrer, a 10% da capacidade que tínhamos de o fazer quando éramos bebés, estamos sempre em modo de defesa ou ataque e nem sentimos o chão que pisamos. Zangamo-nos com a meteorologia, irrita-nos a chuva, ou o calor ou o vento, qualquer coisa que nos tire do estado morno e amorfo, deixámos de saber como se sente o nosso corpo, que cada vez precisa mais de gritar para se fazer ouvir. O grito do corpo é a dor e cala-se com um comprimido. Mas começa sempre com uma tensão no pescoço, uma coisa ligeira, até que… ou uma pressão sobre os olhos, uma coisa impercetível, até que… ou uma opressão sobre o peito, uma coisa quase inexistente, até que…

Fazemos grandes discursos e reflexões sobre a exploração e a pobreza, mas está ali um desgraçado que só queria comer qualquer coisa e não lhe damos nada, porque dá muito trabalho abrir a mala, carteira e ver se há trocos, ou nem sequer o vemos, vamos demasiado concentrados na reflexão sobre a criação de um sistema para erradicar a pobreza, esbarramos nela e não a vemos, é demasiado concreta, aquela pobreza, tem cheiro, não é “bela”. Dizemos que gostamos muito de nós, que temos “uma autoestima elevada”, mas há quanto tempo não nos abraçamos, não nos olhamos ao espelho reconhecendo o menino, a menina eterna ali, detrás do olhar, onde está o amor no coração a latejar por essa criança-eu? E quantas vezes deixei de ir dormir quando o corpo mo pedia, por ter trabalho para fazer? E a pele, há quanto tempo não sente as minhas mãos massajando, distribuindo creme, pressionando uma tensão, amorosamente? Desde quando deixámos de nos proporcionar o luxo de cozinharmos um prato para nós mesmos, com a seriedade alegre e grave de um alquimista consciente do poder de tudo o que passar pelo seu athanor? A partir de quando a água nos passou a correr pela pele sentindo-a nós com a mesma indiferença de uma estátua? Desde quando a terra (o prazer nas mãos), a água (chapinhar nas poças…), o ar (o vento nos cabelos) e o fogo (saltar as fogueiras) deixaram de ser uma alegria nas nossas vidas? E dizemo-nos espirituais? De costas voltadas para o que de mais sagrado existe, a natureza, os elementos? Acendemos velas nos templos e…?

As escolas iniciáticas dizem que se deve equilibrar o trabalho e o recreio, num pressuposto de respeito pelo corpo, o ser integral. E têm razão.

Mas frequentar uma escola iniciática pode ser tão alienante como ir à missa ao domingo e vice-versa, se a busca do espírito não seguir o generoso, eloquente e sempre disponível caminho do corpo. A Matéria, esse grande Mestre da espiritualidade.

 

Risoleta C. Pinto Pedro

outubro, 2012

   
 

  Risoleta C Pinto Pedro (Elvas, Portugal)
Publicou até hoje: A Criança Suspensa, Prémio Ferreira de Castro, O Corpo e a Tela, Hugin, O Aniversário, Prémio Revelação APE/IPBL 1994, Difel, O Arquitecto, Hugin, Venite In Silentio, Unicepe, Porto, 2004, O Sol do Tarot de Sintra, Indícios de Oiro, 2009, Adelaide Cabete e a Palavra encontrada, Padrões Culturais, 2010, entre outros. Foi também premiada na poesia pela SLP, tem escrito teatro, canções, libretos de ópera, cantata, musical, texto para bandas desenhadas. Fez crónica (“Quarta-Crescente”) para a Antena 2. Continua a publicar crónicas em periódicos generalistas,
literários e de artes plásticas.
http://aluzdascasas.blogspot.com
risoletacpintopedro@gmail.com
 

 

 

 

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