|
Em tempo compreensivelmente pouco virado para os
ventos do espírito, porque se receia pela matéria naquilo que ela tem de
mais premente: alimentação, teto, saúde, vejamos do que falam as escolas
religiosas ou esotéricas quando falam de espírito e quando, algumas, o
separam, no discurso e na prática, do corpo.
Espírito é, segundo o dicionário, a parte imaterial do ser humano,
que identifica com a alma.
Etimologicamente vem do latim “spiritus” que
significa sopro, exalação, sopro vital, espírito e alma. Está ligado ao
vocábulo latino “spirare” que significa respirar.
Espiritualidade é, ainda segundo o dicionário, a qualidade daquilo
que é espiritual; característica ou qualidade do que tem, ou revela,
intensa actividade religiosa ou mística; religiosidade: misticismo;
elevação; transcendência; sublimidade.
O antónimo é: carnalidade, materialidade,
mundaneidade, o que é partilhado por muitas pessoas, independentemente
de estarem dentro ou fora das escolas iniciáticas, como a maçonaria,
numa clara herança da tradição maniqueísta e teísta; pelo seu lado, a
concepção panteísta da existência vê Deus em tudo.
Ora, apesar de o tema escolhido ser a
espiritualidade, ou talvez por isso mesmo, não poderemos tratar o
conceito sem falarmos do corpo, porque se colocamos a elevação, a
transcendência e a sublimidade de um lado, e do outro, opondo-se-lhe, a
carnalidade e a mundaneidade, mais um pequeno passo e estamos a situar o
corpo, o mundo e a matéria do lado do eixo do mal, à boa tradição
maniqueísta. Uma espécie de
talibanismo. Ou conservadorismo, na “melhor” tradição americana. Os
duas culturas “inimigas” têm muito mais em comum do que querem
acreditar. A velha questão da sombra e projeção…
Parece-me estar subjacente a esta temática (ou
corre-se pelo menos o risco de as associar), uma visão teísta da
maçonaria, no sentido de que Deus, ou o espírito, estaria para lá da
matéria, dela ausente. O que é uma coisa muito perigosa, porque conduz
facilmente a algum tipo de fundamentalismo.
A visão teísta usa apenas uma parte do imenso
poliedro com que se pode olhar as coisas. A panteísta usa todas as
partes. E aí está incluída a carne, a matéria e o mundo. E também a
alma, o espírito e o sopro.
Por isso, eu faria a leitura interpretativa deste
tema traduzindo-o assim:
“O sopro e a respiração nas escolas do espírito”.
Porque no sopro temos tudo, sem separação. Temos o pneuma, o pulmão, e
temos o espírito, a respiração. O corpo e a alma. Enquanto estiver neste
mundo, cristão ou não cristão, católico ou não, maçon ou não maçon,
penso que nenhum deles, a não ser que esteja gravemente doente da alma,
gostaria de se sentir como um espírito desencarnado.
Com o surgimento do positivismo no século XIX e a
sociedade de consumo no século XX, acompanhados de uma filosofia, uma
estética, uma economia e uma ética predominantemente materialistas,
gerou-se um desequilíbrio para o “lado” da matéria. A reacção foi, a
partir de uma certa altura e, como era de esperar, o desequilíbrio no
outro sentido.
Compete também aos cristãos (perdoem-me as outras
religiões, o facto de não as citar não significa que as minimize, mas
adotei provisoriamente como meu espaço de referência, a tradição
ocidental), e compete igualmente aos maçons reequilibrar a balança,
reabilitar a matéria, acabando com a dolorosa separação espírito/corpo.
Até porque símbolos não faltam para esse trabalho, em qualquer tipo de
templo, cristão, maçónico ou rosa-cruz: o cheiro do azeite, das velas
ardidas e dos incensos, os sabores experimentados, as texturas, que vão
da madeira das portas que nos dão entrada, à pedra polida pelos passos
dos séculos, passando pela granulosa consistência da terra à entrada,
passando pela rugosa, nodosa madeira, ao calor do fogo na vela que
seguramos na mão ou que contemplamos no altar, a textura dos panos, dos
variados tecidos, no corpo, nas mãos, a suavidade da pele das mãos dos
irmãos do caminho da fé, a temperatura das que estão frias, das que
estão tépidas e das mãos quentes, a opulência simbólica dos dourados que
se revelam perante o nosso olhar, e os ruídos dos batentes, e os sons
mântricos das fórmulas que, a toda a hora proferimos, o constrangimento
ou a libertação dos gestos simbólicos. Assim como na vida. Não tenho
dúvida que à espiritualidade é pelo corpo que chegamos. Ou não chegamos.
Ponho a tónica no processo, vejo o ritual, seja ele
qual for, como um trabalho de mercúrio, ou de ponte para algo. Os seus
instrumentos são religiosos no sentido em que procuram ligar a matéria
ao espírito e vice-versa. Religiosidade ou espiritualidade no sentido de
reconciliação do que estava separado. A partir da base que habitamos,
que é o corpo.
Por mais que me esforce, não conheço, neste mundo,
fora ou dentro dos templos, nada mais espiritual do que a matéria.
E é o equívoco da crença ao contrário, que foi
sendo depositada nas nossas mentes, que levou a que muitos pretensos
espiritualistas tivessem virado as costas ao mundo, deixando o terreno
aberto àqueles que não perdem uma oportunidade ou uma distração para se
aproveitarem e criarem o cenário de “fartar vilanagem” que ao longo dos
tempos fomos permitindo e hoje tão visível se encontra aos nossos olhos
surpreendentemente espantados. Porque fomos cúmplices. Ao desprezarmos a
nobreza do dinheiro e do negócio, ao esquecermos as necessidades do
corpo como templo, ao amordaçarmos a sua eloquente linguagem num
pseudo-hedonismo que se alheou da dor e do sintoma e o escondeu sob
camadas de drogas e anestésicos de todo o tipo, dos antidepressivos às
“drogas do prazer”, fomos ficando cada vez mais longe de nós mesmos e do
mundo. Não suportamos nenhuma dor do corpo nem da alma, temos aspirinas
para tudo, o alívio ao alcance de uma pílula, evitamos as lágrimas que
lavam, tememos a vida e escondemos a morte, dessacralizamos o sexo,
receamos o tempo e repuxamos a pele, matámos a nossa curiosidade e
alegria e não toleramos às crianças que mostrem a nossa própria traição,
sorrimos quando não queremos, escondemo-nos para chorar, deixámos de
cantar, de andar e até de nos zangarmos. Fingimos que estamos contentes,
que meditamos, que rezamos e já não corremos atrás do elétrico. Parece
mal.
Temos os nossos rituais em dias marcados, comédias
quando é preciso esquecer ainda qualquer teimosa ou insidiosa dor,
respiramos apenas para não morrer, a 10% da capacidade que tínhamos de o
fazer quando éramos bebés, estamos sempre em modo de defesa ou ataque e
nem sentimos o chão que pisamos. Zangamo-nos com a meteorologia,
irrita-nos a chuva, ou o calor ou o vento, qualquer coisa que nos tire
do estado morno e amorfo, deixámos de saber como se sente o nosso corpo,
que cada vez precisa mais de gritar para se fazer ouvir. O grito do
corpo é a dor e cala-se com um comprimido. Mas começa sempre com uma
tensão no pescoço, uma coisa ligeira, até que… ou uma pressão sobre os
olhos, uma coisa impercetível, até que… ou uma opressão sobre o peito,
uma coisa quase inexistente, até que…
Fazemos grandes discursos e reflexões sobre a
exploração e a pobreza, mas está ali um desgraçado que só queria comer
qualquer coisa e não lhe damos nada, porque dá muito trabalho abrir a
mala, carteira e ver se há trocos, ou nem sequer o vemos, vamos
demasiado concentrados na reflexão sobre a criação de um sistema para
erradicar a pobreza, esbarramos nela e não a vemos, é demasiado
concreta, aquela pobreza, tem cheiro, não é “bela”. Dizemos que gostamos
muito de nós, que temos “uma autoestima elevada”, mas há quanto tempo
não nos abraçamos, não nos olhamos ao espelho reconhecendo o menino, a
menina eterna ali, detrás do olhar, onde está o amor no coração a
latejar por essa criança-eu? E quantas vezes deixei de ir dormir quando
o corpo mo pedia, por ter trabalho para fazer? E a pele, há quanto tempo
não sente as minhas mãos massajando, distribuindo creme, pressionando
uma tensão, amorosamente? Desde quando deixámos de nos proporcionar o
luxo de cozinharmos um prato para nós mesmos, com a seriedade alegre e
grave de um alquimista consciente do poder de tudo o que passar pelo seu
athanor? A partir de quando a água nos passou a correr pela pele sentindo-a
nós com a mesma indiferença de uma estátua? Desde quando a terra (o
prazer nas mãos), a água (chapinhar nas poças…), o ar (o vento nos
cabelos) e o fogo (saltar as fogueiras) deixaram de ser uma alegria nas
nossas vidas? E dizemo-nos espirituais? De costas voltadas para o que de
mais sagrado existe, a natureza, os elementos? Acendemos velas nos
templos e…?
As escolas iniciáticas dizem que se deve equilibrar
o trabalho e o recreio, num pressuposto de respeito pelo corpo, o ser
integral. E têm razão.
Mas frequentar uma escola iniciática pode ser tão
alienante como ir à missa ao domingo e vice-versa, se a busca do
espírito não seguir o generoso, eloquente e sempre disponível caminho do
corpo. A Matéria, esse grande Mestre da espiritualidade.
Risoleta C. Pinto Pedro
outubro, 2012
|