REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 33 | novembro | 2012

 
 

 

 

 

PEDRO SEVYLLA DE JUANA

De homens e centauros

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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                                                                               Aos  meus netos Judith, Óscar e Sergio,
infantes que já distinguem os centauros dos homens
.  

Se ignora o caráter da cópula, assim como o tempo que necessitou para frutificar. Mas um frio domingo do mês de março correspondente ao ano 2011, prodígio do novo milénio, no lugar do globo chamado Villazalama, terra de abundantes pastos situada entre Valdepero e Husillos, começaram à nascer cavalos com tronco humano, braços e cabeça de homem ou, visto de outro modo, homens com lombo, rabo e patas de cavalo. A combinação genética tinha logrado uma espécie nova: os centauros, realidade superadora da fantasia humana que os criou, aqueles filhos de Ixión e da nuvem Néfele, Hera fingida. Sua presença deu pé à perguntas carentes de resposta lógica. Animais ou pessoas: a dúvida inundou as ruas, chegou nas escrivaninhas das universidades, aos claustros de professores; e dali ao intelecto dos filósofos. As leis vigentes resultaram inúteis para regular a convivência do novo e o velho; mero papel molhado e tinta atenuada. Desde os púlpitos os belicosos sacerdotes lançaram anátemas que se ouviam nos cenáculos dos governantes. Os parlamentos trataram o assunto em sessões esgotantes, e acabaram aprovando a elaboração do pão de cevada e a venda de alfafa nas quitandas. Apareceram no mercado gabãos-xairel antes inimagináveis, e os negócios de construção e equipamento enriqueceram aos ousados.

O homem seguiu o caminho aberto, e seu natural abusivo quis confinar aos quadrúpedes racionais. Não pôde. Asas brotaram aos de maior alçada, aos mais ágeis. Não eram grande coisa; dois apêndices lombares emplumados que lhes permitiam elevar-se pelo ares e desaparecer. Aos seis meses se demonstraram transitórios; ainda assim, durante o meio ano que durava a metamorfose, os centauros se expandiam formando novas colónias. De modo que a espécie recém-nascida se distribuiu pelos quatro pontos cardeais povoando a terra. Os monstros nasciam domados e nada acrescentou o homem nesse sentido. A cabeça humana regia seus atos de besta, humanando as consequências; e a nobreza da besta parecia neutralizar os sentimentos egoístas do homem. De maneira que os novos indivíduos exibiam condutas íntegras acrescentadas a extraordinárias faculdades. Temores e acusações iam perdendo intensidade, até que a rotina quis retornar ao seu. Púlpitos, tribunas e outros palanques reticentes acabaram tolerando aos mestiços. Se adaptaram os usos e as ferramentas às necessidades anatómicas dos híbridos, e em pouco tempo aos novos seres lhes resultou desnecessário demonstrar uma superioridade evidente. Foram penetrando nas formações castrenses, na representação social e na judicatura. Em breve ocuparam postos de relevo nas empresas e nos ministérios; e ajudando os uns aos outros, até os pior dotados alcançaram bom acomodo.

Transcorridos cinquenta anos, os centauros dominavam as variadas pirâmides do poder, e puderam abandonar a dissimulação herdada das pessoas. A raça humana, afastada dos centros de decisão, se viu confinada no ambiente dos trabalhos manuais repetitivos, levando a cabo tarefas sujas ou tediosas.

Pelos meus conhecimentos da antiga cultura, eu fui um dos destinados a apurar os velhos livros impressos sobre papel, única fonte de sabedoria permitida às pessoas, a quem nos está vedado o ingente acervo electrónico. Devia censurar qualquer assomo, por subtil que fora, dos chamados valores humanistas. Antigos impressores, também forçados, editavam novos livros imitando a estampa dos velhos. Os leitores humanos iam abandonando as reivindicações de espécie.

Eu conduzia uma conspiração calada, e para servir aos propósitos rebeldes, todos os livros corrigidos por mim escondem estas linhas em extensos parágrafos insubstanciais.

Os centauros, receosos e inteligentes, descobriram meu ardil. As leis castigam com a morte aos traidores; amanhã dar-me-ão coices em círculo.

 

PSdeJ

 

  Pedro Sevylla de Juana (España) nasceu em plena agricultura de secano, lá onde se juntam A Terra de Campos e O Cerrato, Valdepero, província de Palencia em Espanha; e a economia dos recursos à espera de tempos piores ajustou o seu comportamento. Com a intenção de entender os mistérios da existência, aprendeu a ler  aos três anos e chegou aos livros aos onze. Para explicar as suas razões, aos doze iniciou-se na escritura. cumpriu já os sessenta e cinco, e está tão longe do que quis ser, que pode o ver inteiro. No entanto, transita a etapa de maior liberdade e ousadia; obrigam-lhe muito poucas responsabilidades e sujeita temores e esperanças. Viveu em Palencia, Valladolid, Barcelona e Madrid; passando temporadas em Genebra, Estoril, Tánger, Paris e Ámsterdão. Publicitário, conferenciante, tradutor, articulista, poeta, ensayista e narrador; publicou vinte livros e colabora com diversas revistas da Europa e América, tanto em língua espanhola como portuguesa. Trabalhos seus integram seis antologías internacionais. Reside em El Escorial, dedicado por inteiro às suas paixões mais arraigadas: viver, ler e escrever. www.sevylla.com
 

 

 

 

© Maria Estela Guedes
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