O ESPELHO
A
casa rica tinha no vestíbulo
um espelho enorme, imenso, muito
antigo,
comprado há pelo menos oitenta anos.
Constantinos Kaváfis
Olho-me
no espelho da entrada. Não me reconheço. Um rio violento... Lá dentro
o meu rosto
singra desfeito em mil pedaços. Serei o inventor
de Deus e não o sei?
Pois o que é
Deus para além desta palavra monossilábica de quatro letras?
“ Deus “ , diz
alguém, “ é o silêncio perpétuo.
“ Assim, sempre que digo : "Deus!
" ergo-o
do seu
silêncio de pedra, torno -o presença da ausência:
“ Surge et ambula! “
Ó noite sem
fim! Com a cabeça cravada no espelho, povôo os abismos.
O LIVRO
Ler
um livro é povoá-lo, recriá-lo, por isso o livro, embora parecendo
acabado, encontra-se lá no fundo inacabado.
Cada leitor
que re - abre um livro ergue-o da
sua ausência e do seu vazio ( da morte) pois cada leitor é um habitante
do livro: incute-lhe o seu
hausto e recebe o hausto do livro. Cada leitura é a exumação do livro.
DA LEITURA OU A BORBOLETA
Leia, leia sempre
mais e mais,
a compreensão chegará por ela mesma.
Paul Celan
O
poema estava ali, à sua frente, como uma luz que, de tanta luz, é uma
imensa noite. O leitor aproximou-se, olhou-o, cheirou-o, apalpou o
papel, depois leu. Leu , atentamente
– como quem degusta um fruto sumarento
– uma vez, duas,
três.... Era um ritual... um ritual...
E o poema, que
até ali havia sido um corpo opaco e fechado em si mesmo, abriu as asas,
e o leitor viu como a larva se metamorfoseava: era agora uma enorme
borboleta , cintilante, planando à volta das rosas do jardim.
O leitor
deixara-se conduzir pela mão do poema. O leitor sentia-se uno com o
poema. O leitor via para além dos olhos:
o portal do poema encontrava-se aberto de par em par, sem
sentinelas hirtas. O leitor povoava agora o poema.
A borboleta
viverá até uma nova leitura. Depois morrerá para renascer em cada nova
leitura ( no povoar do poema ) : cada nova leitura é descobrir a morte e
o renascer da borboleta.
O ANJO CAÍDO
Avança
pela avenida desértica. As árvores em cinza. Carros destroçados. Os
olhos voltados
para dentro.
Lá dentro, a noite. Nas cicatrizes das mãos o suicídio do amigo mais
próximo.
À volta, a
recordação de crianças que riam e dançavam ( era primavera ). E o sol
cai a prumo
nos charcos do
sangue velho. Alimenta-se do desespero.
A BRUMA
Entre
o delírio e a lucidez, a cabeça arde-lhe por dentro. As palavras querem
libertar –se , mas não encontram a forma nem a medida, adequadas, que
lhes permitam uma segurança formal. Silêncio negro e pesado. A estas
horas, é assim que funciona o seu cérebro
– uma sinfonia de Beethoven (talvez a nona ) quebra- lhe os
neurónios. Tudo flui na inconstância do não-possível-dizer. Aflito,
corre para a casa de banho. Olha-se no espelho. O seu rosto é um
fragmento egípcio. Um
turbilhão de monstruosos céus escorre-lhe dos ouvidos. Ah! Ali , em
frente ao espelho, mergulhado no abismo das seringas, mais parece o Anjo
Negro, quando, em certas noites de verão levanta voo, envolto numa bruma
sebastianista, talvez vinda da Barragem da Aguieira, ou de Alcácer
Quibir.
O OUTONO
Outono
dourado. Sentado na varanda, bebo café e como pão com geleia de figos.
Os livros
ao lado. Uma
brisa ligeira espanta as folhas douradas. Sussurros de um outro mundo. O
azul
é imenso e os
bosques seguem as asas dos pássaros, raros. A hibernação já passeia
pelos campos. A luz amena no rosto sabe bem. Leio um poema de Miltos
Sachturis: OUTONO.
A MARGEM OU O CENTRO
Cultivo as
margens e delicio-me com o vento que passa. Os grandes centros e os
heróis nunca me interessaram. Antes os anti - heróis, raças baixas,
criaturas fabulosas e os exímios habitantes das fronteiras.
ESLÁVICO
Rapazes com as
sombras das aves tatuadas nos rostos. Este magro verão. Eslavo. De
pernas extensas. Comboios que transcendem os nós dos sentidos. E o velho
barbudo que colecciona jornais para renovar a gíria das pombas.
Delírios. O homem sem ofício. Traz uma pedra miraculosa numa das mãos.
Um nimbo de mosquitos nas abas do chapéu. A sua magnífica boca educando
o corpo do fogo. E a noite encima-se, gloriosa , nos olhos do flâneur.
Eis o caminho
aberto para as longas madrugadas! Aqui moram as clepsidras da história.
Oásis do imaginário colectivo, esta praça. Grandes crimes. Grandes
feitos. Nos pedestais as idades rodam. Por baixo, a devoção dos
sedimentos. Súbitos haustos erguem-se dos túneis obstétricos. Tarifas
com asas sumptuosas. O suor dos cavalos impregnando as esquinas. O
perfume da prodigiosa urina.
E esta noiva
com bolas de sabão engrinaldada. E o noivo com a alma gravada no gume de
uma faca. Ah! E aquele senhor rigoroso, mas subtil, que nos explica a
onomástica dos antigos instrumentos de navegação: teodolitos,
quadrantes, astrolábios, mapas – múndi... Um mármore anterior ao ódio.
E os velhos,
mas altivos eléctricos que nos levam até ao fim da noite inexplorada, no
subúrbio da cidade. Ah! E o vinho. A palavra vinho. E o pão. A palavra
pão. Tão distantes do nosso paladar verde. E o sal. Este sal milagroso.
A palavra sal. Filha de um mar do Mioceno.
Hoje habitamos
a circunferência desta língua estranha com a assunção dos gestos. Ó
grande glória! Água pesada como a claridade da morte. E, de novo , a
palavra vinho e a palavra pão e a palavra sal e à volta: uma procissão
de raparigas sonâmbulas transporta a cinza das árvores na palma das
mãos.
(Wrocław,
14 de Agosto 2011)
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