|
Difícil é falar das coisas. Melhor sempre é estar calado. Contudo como
as necessidades da vida são grandes, e viver precisa ser uma permanência
e não uma dissolução, é deixada a condição de silêncio para tentar fazer
alguma coisa. Vem-se aqui falar de dois poetas. Dois contemporâneos. Um
alagoano, o outro pernambucano. João Cabral de Melo Neto e Lêdo Ivo.
Para começar este texto, precisa-se dizer que estes dois estão
intimamente ligados desde a mais jovem idade. Não há como querer fazer
este trabalho sem recordar esta questão tão importante. Logo este
trabalho, pode-se dizer, não deixa de ser incompleto. Quanto mais nos
guardamos em nós mesmos, mais senhores de nós, então ficamos. Fazer
qualquer coisa é sempre arriscar-se e dessa forma está-se aqui para a
batalha. Passemos propriamente para o desenvolvimento da questão.
Analisar-se-á um livro de cada poeta. Os livros são “Educação Pela
Pedra” (1966) de João Cabral e “Estação Central” (1964) de Lêdo Ivo.
Esse trabalho tem um objetivo maior muito especial: quer-se colocar a
mesma altura o poeta João Cabral Melo Neto e o poeta Lêdo Ivo. Por que
essa equiparação? Ao que parece o pernambucano goza de um prestígio
muito elevado. Internacionalmente e nacionalmente é dono de uma seleta
de prêmios honrosa e, conforme comentário feito pelo atual crítico
literário do programa ‘Metrópolis” Manuel da Costa Pinto, estaria
equiparado até mesmo a Drummond.
Não pode se saber até que ponto a conclusão deste crítico é segura,
talvez até por se tratar de um crítico jovem (e também por não se
conhecer bem a obra dele), mas como a condição do mesmo é de muita
visibilidade, esta afirmação deve ser relevada e talvez até mesmo possa
ter algum aval das universidades brasileiras. Adiante fale-se agora do
poeta alagoano. Lêdo Ivo sempre teve uma rivalidade com João Cabral, se
se pode assim dizer. Pode-se lembrar, por exemplo, o fato de que seu
livro ‘Acontecimento do Soneto” (1948) foi escrito a partir de um
desafio que João Cabral lhe colocou. O poeta alagoano, vendo-se os
livros anteriores ao citado, sempre foi um poeta de pouca contenção, por
mais que se encontrem nestes mesmos alguns poemas metrificados (já com
os sonetos, por exemplo) talvez fruto inicial da querela entre o mesmo e
João Cabral. Dito isto diga-se que se o alagoano não vive a mesma glória
do pernambucano, no entanto vem colhendo algumas loas nacionais e
internacionais (recebeu até um artigo do professor Adelto Gonçalves,
doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo, sugerindo dar-se a
ele o Prêmio Nobel).
Conforme conversa tida com a professora Luzilá Gonçalves Ferreira, seu
nome parece ter alguma difusão no Sul, não se sabe, no entanto, se Sul
extremo ou Sudeste, e provavelmente em Alagoas, seu estado natal, onde
deve ter algum aproveitamento acadêmico (por sinal diga-se que da
Universidade Federal de Alagoas ganhou o título de Doutor “Honoris
Causa”). No entanto, no mesmo estado, não se possa deixar de citar a
importância de um nome que, conforme ele mesmo disse, junto com Carlos
Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, forma a maior tríade de poetas
modernos do Brasil. Trata-se de Jorge de Lima. Agora se passará para a
apreciação conjunta, e cotejo, das obras escolhidas dos dois poetas.
“Estação Central” e “Educação Pela Pedra” são livros escritos quase ao
mesmo tempo. Compreendem produções dos autores ocorridas de, no “Estação
Central”, de 1961 e 1964 e, no ‘Educação Pela Pedra”, de 1962 a 1965.
Parece muito conveniente esta lembrança das datas porque mostra uma
aproximação cronológica de produção dos mesmos. No mais adentre-se à
obra de cada autor. O que se vai fazer é analisar cada um dos livros e
em seguida cotejá-los.
Fale-se primeiramente de ‘Estação Central” que foi lançado antes, em
seguida se falará de ‘Educação Pela Pedra”. “Estação Central” é um livro
dividido em três partes: ‘A Cartilha”, “América” e “Chegamento do
Varão”. O livro é de remate bem diversificado. Encontrar-se-á no mesmo a
produção mais variada. Uma grande variedade de metros, poemas em prosa,
versos livres... e muitas outras coisas que se poderiam citar, conforme
se faça uma avaliação mais detalhada do livro.
O que se pode dizer é que Lêdo Ivo é um escritor. É um homem de grande
cultura literária. Seus textos, e não só os seus poemas, são carregados
do pecúlio cultural que ele conquistou. Como já se referiram a ele
vários autores, ele é um homem inteligente. Pode-se recordar Guimarães
Rosa que, não se fará a citação do texto imaculadamente, dizia que ele
devia pôr em sua casa uma placa escrito ‘Vende-se inteligência”.
Outro comentário importante é o do crítico literário paulista Sérgio
Milliet que ao analisar um dos seus livros de poesia, onde este mesmo já
vinha analisando toda obra do autor e percebendo que gradualmente
ocorria uma pluralização de suas possibilidades poéticas, disse o
crítico que o alagoano era, mais do que qualquer coisa, múltiplo. E
acredita-se que numa tentativa de simplificar o todo numa parte da obra
do autor, o livro escolhido para análise talvez satisfaça isso. Por
leituras mais recentes e de obras mais atuais do poeta sabe-se que ele
acrescentou outras estéticas em sua obra, mas de qualquer forma pela
variabilidade de possibilidades poéticas contidas neste livro, não se
pode deixar de atestar sua condição de múltiplo. Seguindo, deve-se dizer
que esta multiplicidade é realmente muito rica. As possibilidades de
produção dele são realmente intermináveis. Como se está analisando
apenas um livro, discorre-se apenas sobre ele e assim podem-se destacar
as mais variadas estéticas. Um poema, por exemplo, como ‘A Terra é
redonda”. Este poema é de uma força vocabular, ao que parece,
impressionante. Além disso pode-se dizer que Lêdo Ivo é um
poeta-filólogo. Em corroboração a isso se diga que o autor alagoano é um
exímio conhecedor da língua portuguesa a ponto de se indispor com os
mais simplórios erros que possam ser cometidos nela e isso está
documentado em entrevista que deu ao jornalista Geneton Moraes Neto.
Para continuação desta redação faz-se necessária a recordação de um
desenvolvimento teórico sobre poesia desenvolvido pelo autor destas
linhas. Esse desenvolvimento está presente na sua monografia para
conclusão do curso de bacharelado em ciências sociais na Universidade
Federal de Pernambuco (2004). Nesta monografia se discorre sobre um
pensamento constante sobre o acontecimento poético, a ponto do autor, em
suas perquirições, ter chegado a algumas conclusões que até o momento
lhe parecem satisfatórias. Neste trabalho estão determinados três níveis
do acontecimento poético. Os três níveis são: primeiro, o descritivo e
psicológico, que é o mais fraco; segundo, o metafórico que é o
intermediário; e por último, o místico-mitológico-religioso que é o mais
esbanjatório.
Estas conclusões estão intimamente ligadas aos quatro anos
universitários feitos por quem escreve estas linhas e que são
decorrências de seu contato com a poesia, a exegese literária, a
filosofia e a religiões orientais e ocidentais. São conclusões muito
abrangentes, pois conforme se tem uma visão a mais ampla possível do
acontecimento da vida, onde a poesia tem um lugar muito especial,
inevitavelmente a tentativa de teorização da mesma é muito delimitadora.
Não se pode deixar de recordar a sentença de Goethe tão conveniente:
“Cinza é toda teoria, mas verde é a cor da árvore da vida”. Foram
recordados todos estes níveis poéticos como forma de tentar situar os
poemas de Lêdo Ivo dentro deles. A mesma coisa será feita por ocasião
das considerações que posteriormente serão feitas em torno da poesia de
João Cabral de Melo Neto.
Admitida esta teoria como pode se situar dentro dela a poesia de Lêdo
Ivo? No livro que foi escolhido apresenta-se uma poesia que basicamente
está entre o primeiro e o segundo níveis. Como exemplo do segundo nível
poético, diga-se que um poema como “O Rato do Campo e o Rato da Cidade”
é uma fábula e sendo uma fábula é uma alegoria e sendo assim trabalha
com tropos, figurações da realidade cotidiana. Num poema como “Outono em
Washington” tem-se o que se pode chamar de paralelismo. Trata-se de um
belo poema sobre a fusão da urbanidade e da natureza na
contemporaneidade. É forte a lembrança dos animais e que, na obra como
um todo, de Lêdo Ivo se faz muito presente.
Tem um pouco da observação do comportamento humano também e que estão
apresentados em sua quinta estrofe que é aqui citada: “uma tempestade de
corn-flakes/ cai sobre as moças em flor que vão/ aos psiquiatras
perguntar como / lidar com as máquinas do amor.” Outro aspecto que deve
ser considerado é da relação do poeta com Deus, a especulação sobre o
divino nele é muito forte e está presente mesmo em obras mais recentes.
Citem-se dois exemplos. A última estrofe de “Aos Corretores de
Filadélfia” (“A América pôs a minha vida no seguro./ Mas quem me
segurará contra a eternidade?/ Não quero ser imortal./ Que minha alma
cremada não alcance os anjos.”) e a última estrofe de “Em San Francisco
da Califórnia” (“Como então não me sentir eterno/ se toda a baía
fervilhava/ de pássaros e águas”). O livro também possui poemas
narrativos como “As Velhinhas de Chicago”. Além disso, lembre-se a seção
“Chegamento do Varão” que simplesmente por ser uma louvação a seu filho,
por si só deve ser considerada. Como ilustração recorde-se o poema “O
montepio” que não pode ser ignorado. O livro é predominantemente feito
na forma impessoal, por mais que algumas vezes o autor faça poemas em
primeira pessoa. Admitindo talvez que se possa fazer uma análise mais
longa e detalhada, no entanto basicamente é o que temos no livro
“Estação Central” de Lêdo Ivo.
Passando agora à obra do poeta João Cabral de Melo Neto, pode-se dizer
inicialmente que, no livro escolhido, prepondera o hendecassílabo. No
entanto deve-se dizer que a característica mais significativa de João
Cabral é que seu trabalho de eclosão poética é muito maquinado, é muito
cerebralizado. Não é de mais lembrar que, segundo confissão feita por
Lêdo Ivo, a criação de João Cabral era muito angustiante, por sinal até
lhe causava muita dor de cabeça.
Diferentemente da criação em Lêdo Ivo que é feita com muita alegria, é
mais espontânea. Todavia não se deixe de enfatizar que, ao dizer
espontânea, não se está querendo dizer que é pueril, pois, como é
preciso saber, conhecida a biografia do poeta, não há como deixar de
admitir sua condição de culto desde a mais primeva idade. Por isso se
seus textos são de rápida execução, não obstante são fartos de
conhecimento literário. Falando um pouco do livro de João Cabral
denota-se que a característica principal é o que se poderia chamar de
uma metáfora curta. É uma metáfora que não é uma analogia, por exemplo.
Não é algo discorrido, é mais uma manufatura, um artesanato.
Na verdade o que ele faz é uma espécie de circunlóquio, onde forçada a
escrita, vai-se chegando a uma centelha poética. Mas, de qualquer forma,
deixa-se a impressão que é tudo feito a muito custo. Só para citar
alguns exemplos, há de se encontrar metáforas curtas como luz-balão,
livro-cisterna ou jornal-rio. Elas são um remate de uma insistente
manufatura e talvez daí é que ele possa ser considerado um bom poeta. No
mais, esta é a característica contínua do livro. É difícil não deixar de
sentir em João Cabral que seu acontecimento poético é uma prospecção, é
como se ele tivesse joeirando o trigo, acredita-se.
Conforme depoimento do mesmo em documentário exibido pela TV Cultura, já
há muito tempo, e que infelizmente não se recorda o nome, seu objetivo
sempre foi fazer uma poesia que não fosse, e aqui se parafraseará sua
analogia, um carro percorrendo uma pista lisa, mas sim uma um pista
talvez esburacada ou mesmo cheia de obstáculos. Enfim a poesia do
pernambucano é mais uma construção do que uma criação, não é uma
epifania, não é até mesmo uma inspiração. Nos livros produzidos mais
próximos da sua morte, infelizmente menos conhecidos por quem aqui
escreve, não se pode dizer que o autor continuou o que o caracterizou
até o livro “Educação pela Pedra”, mas, até em conversa tida com o poeta
Lêdo Ivo, este mesmo confirmou que a tendência a uma unilateralidade
estética, o que o alagoano chamou de algo obsessivo, parece mesmo ser a
tona principal da sua produção.
No entanto não se deixe de lembrar sua poesia mais participativa ou
engajada que com a outra comporiam o que ele chamou de “Duas Águas”,
título de uma das suas reuniões de poemas. A partir deste comentário,
por mais que o livro não seja analisado aqui, dá-se vazão a lembrar o
poema dramático em João Cabral, que está bem ilustrado com o seu auto
“Morte e Vida Severina”. Para não deixar de comparar, por mais que
também, não se esteja falando deste livro aqui, Lêdo Ivo também tem um
poema dramático que é “Calabar”. Forma de apresentar característica
poética importante e que está presente nos dois. De resto há
intransigência por uma poesia impessoal e que, talvez, ilustre a
dedicatória do livro. Dedicada a Manuel Bandeira, poeta mais
confessional, e se referindo ao seu livro como antilira.
Por fim como foi dito inicialmente a pretensão maior era situar os dois
autores à mesma altura, inclusive por questões de biografia, pois os
mesmos têm uma vida muito em comum, até mesmo na idade. No entanto o
alagoano Lêdo Ivo tem hoje 88 anos. João Cabral faleceu em 1999. Quer-se
crer que a compatibilização dos dois é conveniente e por mais que não se
tenha analisado a obra toda dos dois, tem-se a impressão que, pelo
acúmulo de leituras que o autor destas linhas tem da obra de cada um, a
equiparação lhe soa válida. É verdade que muita coisa ficou de fora,
afinal são poetas com obras de várias décadas e é impossível falar de
tudo por mais que se queira. Enfim foi uma tentativa de um autor ainda
jovem e que por sentir esta menorização do poeta Lêdo Ivo frente ao seu
contemporâneo João Cabral de Melo Neto, realizou este texto com o
substrato cultural que ele desenvolveu até hoje.
Como já se dizia no começo deste texto é muito arriscado falar das
coisas, é sempre estar em diálogo com o erro ou com a falta, mas como
continuar vivendo parece ser uma coisa imperiosa, tenta-se aqui fazer
algo satisfatório. Era possível fazer uma avaliação mais alongada, mas
ao que parece, em linhas gerais, o que se pretendia falar de cada autor,
foi, em essência, apresentado.
P.S.: Nestes tempos atuais, onde vai ficando cada vez mais difícil
mensurar ou dizer o que são as coisas, uma impressão não se pode deixar
de ser citada. Ao ler o último poema do livro ‘Educação pela pedra”,
“Para a Feira do Livro”, sua segunda parte suscitou uma idéia. Parece
que poesia, pelo menos para o dia de hoje, é aquilo que realmente lhe
toca. Logo mesmo a coisa mais prosaica pode ser poética. Na última parte
do poema citado ocorre um paradoxo que não passou em branco. Cite-se a
parte: “Silencioso: quer fechado ou aberto/ inclusive o que grita
dentro; anônimo:/ só expõe o lombo, posto na estante,/ que apaga em
pardo todos os lombos;/ modesto: só se abre se alguém o abre,/ e tanto o
oposto do quadro na parede,/ aberto a vida toda, quanto da música,/ viva
apenas enquanto voam suas redes./ Mas apesar disso e apesar de paciente/
(deixa-se ler onde queiram), severo:/ exige que lhe extraiam, o
interroguem;/ e jamais exala: fechado, mesmo aberto. Essa impressão
também ocorreu da leitura do livro de Lêdo Ivo, mas foi mais forte neste
poema. É verdade que é de pouca significação, pois, afinal de contas, os
poemas mais metafóricos ou fabulatórios continuam ainda a ser os maiores
poemas. E isso evoca uma observação de Mário de Andrade, contida em um
dos ‘Diários Críticos” de Sérgio Milliet: a poesia pode estar em tudo,
na retórica, na eloqüência... Por mais que o educado em Genebra tenha
aceitado a sentença com hesitação.
|