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Eis o que depois de muito pensar, oh meus amigos,
me parece mais próprio do espírito das férias, decerto predominante
nesta altura do calendário, logo a seguir ao meio do ano. Tenho para
comigo que um poeta __ tal como um padre ou um bombeiro, um polícia ou
um jornalista, isto é, profissões caracterizadas por um elevado grau de
voluntarismo __ jamais deixa de estar ao serviço: pode estar mais ou
menos activo, mais aéreo ou ruminativo, mas a predisposição para a
poesia, o caso que nos interessa,
jamais o abandona. E uma vez poeta é poeta sempre __ mesmo nos
períodos de mais prolongada abstenção, mesmo nas temporadas de mais
escassa inspiração.
Mas, sendo
embora assim as coisas, forçoso é reconhecer que o poeta não passa
incólume pela diminuição do ritmo da sociedade em que se insere. Quer
queira quer não, os editores estão de férias e não lhe pedem coisas; os
jornais e as revistas com que se relaciona remetem-no, sempre, para
Setembro __ «ah, agora só a partir de Setembro, ligue-me nessa altura»;
a maior parte dos seus amigos está a banhos... E o bardo fica
forçosamente mais livre. Livre para os seus trabalhos de Verão,
evidentemente.
Falo da minha
experiência, mas se aqui a
reporto é por me parecer que na mesma poderá haver alguma
representatividade mais alargada. A correspondência, por exemplo. Em que
outra altura do ano é que eu posso arrumar aqueles papéis, até então a
granel numa gaveta onde os vou acumulando, resolver o problema do
espaço, separar os que morreram daqueles que continuam vivos, enfim...
gerir um pouco toda aquela papelada dotada de uma tão pertinaz tendência
para se desenvolver e multiplicar?!
E não há nada a
fazer, oh meus amigos: se, há uns anos atrás, os correspondentes até à
letra D, por exemplo, cabiam todos num único dossier , há dois anos tive
de o dividir e estou a ver que não será por muito tempo que poderei
evitar a repetição de semelhante tarefa ... É sempre assim, e sempre no
mesmo sentido, sempre da esquerda para a direita. Mas é este exercício
que às vezes me permite descobrir as faltas lamentáveis em que incorro
e, por essa via, me possibilita também, não só remediá-las como evitar a
sua repetição em futuro próximo.
Semelhante é,
ainda, a reavaliação da actividade poética a que, lá de tempos a tempos,
também gosto de proceder. Faço-o, quase sempre, após a publicação de um
novo livro __ o qual, por estranho que pareça, permite ler numa óptica
completamente diversa o material existente. Há coisas que, por
repetidas, se não justificam; outras ficaram aquém de um nível
qualitativo facilmente (auto)reconhecível; não convém contemporizar com
razões sentimentais que, em outras ocasiões, impediram que alguns textos
vissem concretizado o seu natural destino: a fogueira. ( E só o não é em
sentido real porque, como digo, estamos no Verão. )
Também neste
campo sou pressionado pelo espaço que ( não ) tenho: quando o dossier
normal começa a ficar muito cheio é sinal de que tenho de tomar
medidas... Ora eu não pretendo legar à posteridade nem uma sombra do que
o mais prolífico de todos os nossos poetas lhe deixou __ e deixou-lhe,
também, uma grande carga de trabalhos... e para tantos é certo,
uma autêntica mina. ( É a famosa arca do Pessoa, claro. ) Quer
isto dizer que para uns poemas entrarem é preciso que outros,
previamente, saiam. Tenho, talvez, a ilusão de, que assim procedendo, a
qualidade média, qual garrafeira seleccionada, se vai apurando. ( Quando
morrer estará no ponto. Mas então também já a não poderia apurar mais. )
É um trabalho
muito agradável, esse, hesitando entre se rasgo já ou se deixo para mais
tarde... Às vezes há associações, misturas, relações inesperadas, um
poema de há vinte anos pode encontrar eco, ser substituído ou
integrar-se numa composição mais recente. Uma experiência mais antiga,
aparentemente fechada, depara-se, quem diria, com inusitadas
possibilidades de desenvolvimento. Enfim, porventura não deveria entrar
em tantos pormenores, mas é facto que no Verão também o poeta relaxa e
descansa um pouco... ( Há até quem diga que o próprio Homero dava as
suas cochiladas. )
É ainda no
início do Verão que ocorre uma coisa agradável, ao menos aqui em Lisboa.
Refiro-me à Feira do Livro __ e sobretudo ao seu rescaldo. Uma pessoa
chega a casa e faz o estendal das aquisições: para, de alguma forma,
fazer um juízo de como a coisa correu, qual balanço entre o sonho e a
realidade; e também para que
os outros elementos do agregado familiar se possam admirar, ou
felicitar, com o nosso génio aquisitivo.
Um ano houve em
que me dei ao luxo de comprar uma nova edição de Os Lusíadas, e nada
barata. Volume de grande formato, parecia um daqueles livros de igreja,
uma Bíblia ou um Flos Santorum,
aquilo era quase um missal da autêntica religião que é o patriotismo. (
Por pouco me não cabia na adequada prateleira, mas à tangente... coube.
) A tribo familiar a olhar-me de lado, porventura pondo em causa a minha
sanidade mental... «Mas o texto não é o mesmo?», perguntam-me os meus
filhos. E eu tenho o gosto de lhes explicar algumas coisas.
Seguir-se-á,
normalmente num fim de semana seguinte, a magna tarefa de arrumação
desses livros. Sim, porque esse conjunto, o das obras que aguardam
leitura, é também uma secção da biblioteca com sérios problemas de
espaço. No entanto, reconheçamo-lo, um tanto
sui generis: ao passo que as
outras secções todas crescem, com maior ou menor rapidez, esta tem
tendência para ir diminuindo ao longo do ano. É nessa fase que
descobrimos os livros que, repetidamente, de novo adquirimos __ por
termos esquecido que já os tínhamos comprado em certames anteriores...
mas ainda os não havíamos lido.
A Feira do
Livro, manda a verdade que se diga, já não tem o fascínio de outros
tempos. Por um lado não tem mais novidades, e estas nem nas livrarias
resistem muito, tamanho é o ritmo de publicação de novos títulos que
caracteriza o nosso tempo! Pelo contrário a impressão que prevalece é a
repetição de vários livros, sempre os mais badalados, em muitos e vários
pavilhões... Nem sequer o aspecto económico é particularmente atraente:
ao longo de todo o ano abundam na cidade os saldos, os salões, as
promoções e quejandas realizações! Tenho para comigo que este modelo de
Feira do Livro, à semelhança, por forçado exemplo, da revista à
portuguesa no Parque Mayer, está condenado pela evolução do tempo e da
sociedade. Ou encontra outro paradigma, como agora se diz, ou
inevitavelmente morre, é tudo uma questão de tempo.
Mas enquanto o
pau vai e vem folgam as costas, é sabedoria do povo, e enquanto ela
existir eu não deixarei de a visitar. Fundamentalmente motivam-me duas
realidades: pesquisar nos saldos, de livros a um euro, dois euros, pague
dois e leve três, coisas assim __ e é por isso que gosto de o fazer no
último dia, o do encerramento, quando os feirantes não querem voltar a
carregar o material para casa e baixam ainda mais os preços... Por essa
razão, talvez, ou também, é nas bancas dos alfarrabistas que
progressivamente vou perdendo a maior parte do meu tempo. E depois,
porque não dizê-lo?, para encontrar outras pessoas. Há mais malucos como
eu e, sem combinarmos nada, sempre se encontra um ou outro, se conversa,
se sabem novidades.
Um pouco
derivada de todas estas tarefas é a própria organização da livraria__
aqui com a «agravante» de que nada se deita fora, e como tal é muito
mais premente a questão do espaço. Uma regra geral, e quase única:
poesia super omnia. Colecções
vêm da cave e para lá regressam, improviso sítios para livros aguardando
leitura, mas tudo é um pouco provisório, e quase inútil: ano após ano os
poetas expulsam outros géneros; já retirei os vates estrangeiros e estou
a ver que os livros colectivos não resistirão muito mais tempo. E, mesmo
assim, eu já não vejo muitos espaços em branco para aquela estantaria
poder respirar. ( É essencial essa respiração, oh meus amigos, entre
outras coisas os livros também precisam de se espreguiçar de vez em
quando... Bem o tenho observado, sobretudo de noite. ) Podem crer que é
essa a única perspectiva porque, às vezes, penso como seria bom que os
meus filhos saíssem de casa: ocupar-lhes-ia
o mobiliário logo a seguir, ah isso é tão certo como dois e dois
serem quatro.
É ainda o Verão
a altura ideal para fazer determinadas leituras. Durante a maior parte
do ano há muitas coisas que temos de conhecer por quase obrigação: são
os nossos amigos que nos oferecem os seus livros e nós temos de lhes
dizer qualquer coisa; são intervenções públicas que temos de fazer; são
as nossas próprias colaborações; há aqueles que falaram de nós e a quem
temos de agradecer... e retribuir.
Completamente
diferente, com uma muito maior dose de liberdade e gosto pessoal, é o
leque dos nossos ócios e erudições pessoais: no ano passado foi a Ilíada
__ sob o pretexto da nova tradução do Frederico Lourenço __ e este ano
será o Fausto (do qual tenho duas edições e há que comparar). Se o
tempo ajudar talvez me abalance a reler o D. Quixote, não preciso de
qualquer motivação específica para tal, mas do próximo ano decerto que
não passará, assim nos não falte o Verão.
E com tudo
isto, oh meus amigos, é este um tempo de pensar o futuro, de ver o que a
seguir poderemos fazer... Não é tempo perdido, não. O poeta, como disse,
não é imune ao ritmo mais geral da sociedade __ e, de alguma forma, o
adequa ao próprio equilíbrio. Eu férias nem sei o que são __ e só desta
forma me interessa este tempo de repouso e pousio... Quem vai ao mar
prepara-se em terra, e eu tenho para comigo que para produzir no Inverno
é preciso repousar no Verão. Eis, pois, como eu gosto do Verão __ destes
trabalhos de Verão, quero eu dizer. Experimentem e verão.
Cristino Cortes
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Cristino Cortes nasceu em Fiães (1953),
uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia,
reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu,
quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou
10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do
Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância,
em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e
Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão
aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido
em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda
edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por
ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em
2008, por ter sido o último.
Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo
de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais
e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros.
Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias.
Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem
tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas
ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio,
tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram
apresentações públicas em diversos locais do País. Está representado em
várias antologias e livros colectivos. A sua obra tem sido objecto de
alguma atenção crítica destacando-se, em forma de livro, José Fernando
Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia.
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