REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 32 | outubro | 2012

 
 

 

 

 

 

 

 

RAIMUNDO DE MORAES


O amor que ousou dizer seu nome

 

RAIMUNDO DE MORAES (Brasil). Poeta, jornalista e editor do Portal Interpoética. raimundodemoraes@interpoetica.com

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Mais de um século separa a epígrafe original escrita por Oscar Wilde – o amor que não ousa dizer seu nome – e a corrente entrevista que ora se faz oportuna aqui no Interpoética. Escrever sobre Paulo Azevedo Chaves é lançar um anzol a um passado de idílios – meus – e a um passado de bon vivant e discreta estrela das letras pernambucanas – o meu querido entrevistado.   Escrever sobre Paulo é resgatar um pouco do muito que ele fez pela cultura do nosso Estado, da sua irreverência incomodando a sociedade machista, da sua sempre afiada percepção da relação homem versus poder. O conheci ainda na minha adolescência, quando a coluna Poliedro era uma referência no jornalismo cultural do Recife. A coluna era sempre ilustrada por nus masculinos de Michelangelo, Praxíteles, obras de artistas locais. O que causava um certo frisson entre os mais pudicos. Sem sombra de dúvidas esta entrevista não é apenas uma homenagem a um amigo, mas também é uma homenagem à sensibilidade, à fraternidade, à liberdade de poder traçar os seus próprios caminhos. Leiam e se deliciem com as histórias do PAC – o enfant terrible da Usina Catende.

 
   
 

Paulo: as suas primeiras lembranças de infância.

"Satisfações! Eu vos procuro.
 Sois belas como as auroras de verão."

Estes versos de Les Nourritures Terrestres (Os Alimentos Terrestres), de André Gide, parecem ter norteado minha vida desde a infância. Gide era um homem sensual e parece ter usado o termo "satisfações" com referência aos sentidos mais do que ao espírito. O Imoralista, Se o grão não morre, o próprio Alimentos Terrestres, o caudaloso Journal evidenciam esse aspecto de sua personalidade.

A libido homo-erótica marcou minha vida desde a infância. Os jogos eróticos com meus primos (quase todos eram aficionados do homo-erotismo) foram uma constante ao longo de minha infância e puberdade. Esses jogos eram sobretudo de punhetinha a dois, metidas na coxinha em posição frontal, esfregação de rola com rola, nunca indo além desses jogos prazerosos e inocentes.


Mas nem tudo era sacanagem na minha infância e puberdade. Pertencendo a uma família de usineiros, ia sempre para uma fazenda perto de Água Preta ou para a usina nas férias. Ou então me divertia na casa à beira-mar, em Boa Viagem, pertencente à família. Sempre adorei o mar e sol - banho de mar era (e ainda é) um de meus prazeres preferidos.

No Colégio Oswaldo Cruz, na Boa Vista, era inevitavelmente um dos primeiros colocados tanto no primeiro grau como no segundo (estudei ali até o 2° Clássico, quando fui morar em São Paulo). No OC tinha um colega de sala, Marco Aurélio, que era sempre o primeiro da classe. Ele era mona como eu e se tornou um de meus melhores amigos. Marco tinha uma queda por outro colega da turma (e vice-versa) a quem sempre ajudava nos estudos e nas provas. Graças à ajuda do "gênio" Marco Aurélio, o seu protegido era sempre o segundo da classe nos exames de fim de ano. Eu ficava relegado a um mísero terceiro lugar. Que humilhação!.


Mas a busca de "satisfações" não impedia que eu fosse um leitor ávido. Meu pai tinha uma grande biblioteca onde eu me abastecia para leituras as mais variadas. Li os poemas de Manuel Bandeira ainda menino e também alguns livros de Gide no original, a partir da adolescência. Baudelaire foi um dos meus primeiros "alumbramentos".

Assim decorreu minha vida, desde a tenra "idade da inocência". No carnaval, Amaro, o copeiro de meu avô materno, se vestia de mulher e eu certa vez me fantasiei de Carmem Miranda e fiz alguns trejeitos à maneira da "Pequena Notável" a pedido de meu avô, que ria muito com essas frescuras domésticas. Aliás, Amaro às vezes me bolinava no quarto de serviço onde morava. Ainda lembro o roçar de seus pentelhos ásperos – ele era um negro forte – em minha bunda lisa de menino. Com tanto homo-erotismo à minha volta, como poderia ter sido hetero na vida?

 
 
 

E os "anos dourados" da vida de playboy?

Meu mentor literário, de boêmia e putaria foi o escritor paraibano Edilberto Coutinho, já falecido. Um contista da melhor estirpe, hoje tão esquecido. Aqui no Recife, o Bar Savoy era o nosso point. Edilbelto tinha uma personalidade exuberante, vivia cercado de belos rapazes que conquistava no papo, já que não era nem bonito nem rico. Ed conquistava e eu, de carona, usufruía. Ele era fissurado em futebol e jogadores de futebol, tendo mesmo escrito um livro de contos excelente sobre o assunto - Maracanã, Adeus. Conhecia muitos jogadores famosos, inclusive alguns da Seleção Brasileira. Tinha fotos ao lado do capitão Bellini, com quem teve um namorico. Foi nesse período que comecei a namorar uma amiga de minha irmã, embora estivesse mesmo apaixonado pelo namorado dela, um rapaz muito bonito e que fazia muito sucesso com as garotas naquela época. Tive um tórrido romance com ele e acho que minha irmã acabou desconfiando, porque logo acabou o namoro. Pelo fato de ser muito conhecido no meio social provinciano daqui, me sentia muito tolhido em minha liberdade e fui terminar o segundo grau no Colégio Rio Branco, em São Paulo. Isso foi em 52, ou 53, se bem me lembro.

 
 

E sua passagem pela França?

Quando concluí o curso de Direito fui para o norte da França, onde fiz um curso de aperfeiçoamento na Universidade de Nancy. Fiquei lá um ano e antes de voltar para o Brasil resolvi passar seis meses de vagabundagem em Paris. Morava num quartinho da Rive Gauche, parte boêmia da cidade-luz. Nunca me interessei por conhecer de perto a Torre Eiffel ou o Arco do Triunfo. Minha vida decorria nos cafés e bistrôs do Boulevard St. Germain e em Saint Michel... Bebia muito vinho e comia muito queijo camembert. Lembro-me inclusive do Café du Flore, freqüentado por Jean-Paul Sartre, Simone Signoret, Simone de Beauvoir e outros vips da vida literária e artística francesa. Encontrei por lá Edilberto Coutinho, que conhecia bem Paris. Ele foi o meu guia em museus, livrarias, teatros.

Como surgiu a coluna Poliedro, que tanto sucesso fez no Diario de Pernambuco nos anos 70 e 80?

No final dos anos 50, fui com meus pais e irmã para o Texas, onde meu pai se operou de câncer. Depois que a familia voltou para Pernambuco, passei uns dias em Los Angeles e Nova Orleans , seis meses em Nova York, curtindo particularmente o Greenwich Village. Fiquei hospedado num grande hotel chamado New Yorker e à noite saía para freqüentar os bares de artistas e gays, especialmente o feérico e animado Lenny's Hide Away. Ao regressar dos States, comprei um apartamento de dois quartos no Leblon, no Rio de Janeiro. Nessa época conheci Carlos Varella, um jovem gaúcho moreno e fogoso com que tive um caso até que um dia, ao bater na porta de seu apartamento na Av. Nossa Senhora de Copacabana, um jovem - e sexy - fazendeiro de Goiás abriu a porta. Carlinhos me apresentou a ele e me disse que estavam morando juntos. Esse fora não impediu que eu me tornasse amigo dos dois.

No início dos anos 70, meu pai, diretor-presidente do Diario de Pernambuco, conseguiu um espaço para minha colaboração no Caderno Viver, dirigido pela jornalista Leda Rivas. O Poliedro começou com dimensões bem reduzidas e à medida que a receptividade do público aumentava suas dimensões cresciam. Naquela época não havia internet e eu mandava o texto e as ilustrações pelo Correio. Havia seções fixas, como Versos Escolhidos, Versos Traduzidos, Liliputianas (notícias curtinhas) e Close-up (o perfil literário de algum poeta). Comecei a receber muitas colaborações de poetas pernambucanos, sobretudo jovens. Publicava o que me agradava e considerava de boa qualidade. Também publicava textos de poetas brasileiros e estrangeiros tirados de livros e publicações literárias. Textos de Dirceu Quitanilha, Olga Savary, Maria de Lourdes Hortas, da irreverente Leila Miccolis e vários outros poetas saíam freqüentemente na coluna. Daqui de Pernambuco também recebia boas colaborações  de Tereza Tenório (de quem me tornei muito amigo), Lucila Nogueira, Raimundo de Moraes (também muito querido, sempre), Cida Pedrosa (antes de ficar famosa por sua poesia e pelo Interpoética). Com a morte de meu pai, em 1977, voltei definitivamente ao Recife. Vendi o pequeno apartamento no Leblon e comprei um de quatro quartos e suíte na rua Barão de São Borja, na Boa Vista. Morava no 24° andar, onde era vizinho do estilista Marcílio Campos, gordo e muito feminino. Estava com 41 anos. O que me lembra esta quadra de Omar Khayyam:
 
              "Das ciências todas o saber semeou,
              da vasta seara com ardor cuidou.
              Mas a colheita não foi mais do que isto:
              Como Água vim, e como Vento vou".

   
 

Você desempenhou também a função de crítico de arte e divulgador de vários artistas plásticos da região...

A divulgação de artistas plásticos se deu principalmente na Artes e Artistas, coluna que comecei a assinar (concomitantemente com o Poliedro) quando voltei definitivamente ao Recife, depois de ficar cerca de 20 anos no Rio. Essa coluna fez com que eu conhecesse e passasse a admirar muitos artistas locais, como José Barbosa, Aprigio, Montez Magno, Luciano Pinheiro, Guita Charifker. Visitava ateliês e recebi presentes de vários artistas, como Jairo Arcoverde, cuja pintura certa vez denominei de "solar" por seu colorido intenso e formas geometrizadas. Meu prestígio aumentou e o assédio também.  Aqui era procurado por artistas e também tomava a iniciativa de visitar seus ateliês em busca de matérias para a coluna. Também percorria as galerias de arte locais, tendo me tornado amigo de marchands como Ranulpho, Nara Roessler, Beth Araruna e sobretudo do dono da Galeria Lautréamont (em Olinda), um uruguaio simpático "casado" com um rapaz também muito legal chamado Valdi. Eles moravam na própria galeria, na Cidade Velha. Foi através deles que conheci muitos artistas jovens de valor, como Aprígio e Frederico, Luciano Pinheiro, José Barbosa, Cavani Rosas (desenhista), Jim (desenhista), José de Barros (gravador), Pedro Índio (escultor que usava sobretudo a pedra como matéria-prima) e vários outros. Cipriano Carballo, dono da Lautréamont, tinha um gosto apurado em termos de artes plásticas e lançou muita gente de valor em sua simpática galeria olindense, localizada no Alto da Sé.

 

 

 

Você também manteve uma galeria de arte em sua casa...

Os artistas com quem eu tinha mais contato e intimidade deixavam às vezes trabalhos para venda em consignação ali, mas não me lembro de ter efetuado vendas naquela galeria improvisada. Mesmo assim expus pinturas de Anete Cunha, desenhos do jovem Timóteo, pinturas de Jairo Arcoverde (que vim a conhecer no acervo da Lautréamont), pinturas de Roberto Portela (sua criatividade se restringia ao trabalho como artista gráfico, sobretudo nos desenhos a bico-de-pena) litogravuras de Josael de Oliveira e os desenhos em bico-de-pena bem articulados graficamente e plenos de movimento e detalhes de Francisco Neves. Expunha ali trabalhos de amigos e conhecidos, sem critérios rígidos em relação à qualidade.

   
 

Fale um pouco do espaço cultural da Casa Azul, tão revolucionário em suas ousadias morais e estéticas.

Quando minha mãe morreu, no início dos anos 90, fui morar na mansão familiar da Rua Amélia 304, nos Aflitos. A casa era conhecida como "Casa Azul" simplesmente porque era pintada de azul. Nessa época, resolvi transformar o imóvel num ateliê permanente (na parte dos fundos) usando outros espaços para encenações teatrais e recitais de poesia. Ali, nas noites em que havia algum evento colocava uma escultura em madeira de Pedro Índio, de uns 40cm de altura, bem na entrada do jardim visível a quem passasse na calçada. Ela representa um homem se masturbando, o pau grande e grosso seguro por uma das mãos. (Ainda tenho essa escultura na sala da casa onde resido hoje). As apresentações teatrais contavam com a participação de alguns diretores conhecidos, como José Manoel, e atores jovens como Márcio de Morais e Pedro Dias. Às vezes encenava espetáculos eróticos, com os atores inteiramente nus. No balcão do bar, logo na entrada da casa, nas noites festivas, ficava Carlos (um michê bem dotado com quem eu transava na época). Ele servia bebidas (e bebia) vestindo apenas uma capa negra sobre o corpo branco e musculoso. No rosto usava uma extraordinária meia-máscara com um chifre vermelho saindo da testa. Obra de um artesão famoso de Olinda, Moser. Ainda hoje não entendo como não fui denunciado à Polícia e a casa não foi apedrejada pelos vizinhos...  Em 93 ou 94, coincidindo com minha demissão do Diario (os jornais na época estavam diminuindo os espaços destinados às artes visuais e à literatura), a Casa Azul foi vendida e mais um ciclo se fechou em minha vida.

 
 

Como recebeu o duplo choque em 93-94 da venda da Casa Azul e a demissão do DP?

Quando ainda morava na Casa Azul lancei dois livros de poesia, ambos editados no período 1991-1992.  Você participou de um deles, NUS, ao lado de Lucila Nogueira, Tereza Tenório, Marco Polo Guimarães, Orismar Rodrigues e eu próprio. O livro tinha alguns poemas meus e traduções feitas por mim. O outro foi Os Ritos da Perversão, com poemas meus. Os dois livros tiveram programaçãovisual de Roberto Portela, um ás do bico-de-pena, porém apenas sofrível como fotógrafo. A página idealizada por Portela para Os Ritos é belíssima e polêmica. Um ato sodômico entre dois homens de pé, apoiados numa poltrona. Dos cinco ou seis livros que lancei ao longo de minha vida, Os Ritos é o que mais me satisfaz tanto pelos poemas como pela qualidade dos desenhos que os ilustram, de autoria de vários artistas pernambucanos novos e consagrados. Merece referência especial o bico-de-pena de Cavani Rosas, o grande mestre do desenho pernambucano nas últimas décadas do século passado.

Respondendo à sua pergunta: a venda da Casa Azul e a demissão do DP foram naturalmente um choque para mim. Entrei em depressão e me afastei do circuito de artes plásticas, além de ter abandonado as leituras. O mais penoso foi a debandada dos artistas, atores e escritores  que sumiram como num passe de mágica de minha vida. Meu pai tinha um amigo antiquário e muito culto, Luiz da Veiga e Seixas, que dizia sempre do alto de sua sabedoria: "Caiu, pau nele!".

   
 

E após ser demitido pelo Diario, como ficou sua vida?

O fato é que prossegui minha vida de adolescente cinquentão, cercado de uns poucos "amigos" em minha nova casa em Afogados, que era confortável, com um amplo jardim e muros altos, e que logo batizei de Shangri-Lah. Fiquei algum tempo ali e depois a vendi e comprei um miniduplex  na Praça do Trabalho, no mesmo bairro. Eu batizei o novo lar de Chez PAC, PAC sendo as iniciais de meu nome. Depois de uns dois anos, vendi o duplex e comprei uma casa simples em Jardim São Paulo. A casa era freqüentada por rapazes da vizinhança, muito legais por sinal. Sexo ali era abundante e barato. Quando vivia nessa indolência toda surgiu a oportunidade de trabalhar numa empresa local como tradutor. Aceitei o convite e agora moro numa casa aprazível, com dois quartos e uma suíte, localizada em Engenho Velho, Jaboatão, e que batizei de Casa Branca.

 
 

Alguma atividade jornalística ou literária recente?

No início do milênio colaborei na seção Opinião do Jornal do Commercio, escrevendo um artigo semanalmente naquele espaço. Mas como havia muita censura moral e conteudística por parte do editor Ivanildo Sampaio, logo pedi meu afastamento.

Hoje já não tenho a vida norteada pelo lema gideano "Satisfações! Eu vos procuro". A promiscuidade ficou para trás. Literatura e artes plásticas  idem. Na reta final de minha existência, já próximo à linha de chegada, virei um típico burguês, nada mais aspirando da vida além de conforto material e segurança. Ou seja, virei um velho chato e medíocre que passa o restante de seus dias neste planeta conturbado Esperando Godot, como o título da peça famosa de Samuel Beckett.

 

 

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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