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Quando faço as minhas leituras, gosto sempre de alternar um livro em
prosa com um livro em versos. Na tarde da última sexta-feira, eu havia
concluído a leitura de um romance policial. Satisfeito pela dose de boa
prosa, meu cérebro pedia, então, uma leitura poética. Visitei, na minha
estante, a prateleira que se destina à morada dos vates. E, lá, entre
vários títulos à espera da minha leitura (essa é uma angústia de todo
leitor: nunca se extingue a lista de espera. Só cresce!), deparo-me com
o livro de poemas De olhos
entreabertos da escritora cearense Aíla Sampaio, recentemente
adquirido na ocasião do lançamento. Ele olhou para mim, eu olhei para
ele. Outros livros se ofereciam... Mas senti, nem sei por que, que
aquele era o momento de ler Aíla. Pedi desculpas às obras que não foram
escolhidas e mergulhei, de olhos bem abertos, nos “olhos entreabertos”
de Aíla. Tomei o cuidado de não ler, antes, nenhuma apreciação crítica.
Queria sentir a obra sem estar impregnada por outras opiniões. Assim o
fiz. Para descrever a sensação do primeiro contato, recorro a uma
expressão que sei ser lugar comum, mesmo assim, uso-a aqui, porque se
torna oportuna: li de um fôlego só! E quase fiquei sem fôlego de tanto
prazer poético!
A satisfação foi tanta que resolvi registrar por escrito as minhas
impressões sobre o livro que muito me encantou. E começo por dizer que o
tema do livro de Aíla é o maior e mais universal de todos: o amor. Além
de maior e mais universal é ainda o mais explorado, o que torna a tarefa
de cantá-lo ainda mais difícil. Mas, apesar dos milhões de poemas sobre
o amor, Aíla nos oferta mais uma prova das finitas possibilidades de uso
da palavra poética, num exemplo de inesgotabilidade temática e
semântica.
Os poemas de Aíla não se apresentam ao acaso, eles estão ordenados em
cinco blocos que nos contam uma história de amor. Uma história que
começa, desenvolve-se e se conclui como se fosse um romance em prosa,
mas com capítulos revestidos com as vestes mágicas das metáforas. O mais
interessante é que qualquer o leitor, com o mínimo de experiência de
vida, provavelmente, irá se identificar com o eu lírico que fala nos
versos. Ora a identificação virá pela alegria, ora pela tristeza, ora
pelo começo, ora pelo final, ora pela presença, ora pela ausência, mas
virá sempre. Quem não tem uma
história de amor para lembrar? Os
versos nos levam para além de uma história de amor, porque a autora,
enquanto nos conta e canta o amor, oferece-nos uma densa e profunda
reflexão existencial em torno do tema. É o
Amor-Eros, com todas as suas
pulsações e cores, a nos fazer feliz. E o
Amor-Tânatos com todos os seus cortes e dores a nos fazer sangrar. O
que os versos revelam já está plantado em nós, já foi vivido por nós,
mas talvez não tenha sido verbalizado com tanta beleza e originalidade,
dizendo aquilo que gostaríamos de dizer e, principalmente,
como gostaríamos de dizer. E
diz com palavras revestidas de encanto. A beleza dos poemas está
exatamente nisso: no como dizer.
Aíla diz por meio de uma profusão de imagens que nos surpreendem a cada
momento, provocando em nós o estranhamento estético próprio do contato
com o Belo.
Li o livro em dois momentos. A princípio, uma leitura rápida, “comendo”
com sofreguidão cada linha, consumindo, ávida, cada poema. Depois,
voltei e reli, desta vez, calmamente, saboreando, analisando, decifrando
metáforas e visualizando as cores, ouvindo os sons, entregando-me ao
curso e ao ritmo dos versos. E segui, fazendo descobertas. Descobertas
que comentarei aqui sem a preocupação acadêmica de aplicar um aporte
teórico a esta leitura, mas apenas vivenciar o prazer de partilhar a
percepção da beleza poética.
Para exemplificar parte do que percebi nos poemas, cito aqui um elemento
que aparece, com certa insistência, na poética da autora: o pássaro; ele
ora aparece explicitamente, ora apenas em forma de sugestão.
Considerando o conteúdo dos textos e o curso da história de amor que
eles nos revelam, torna-se coerente dizer que a recorrência dessa imagem
não acontece por acaso. O pássaro pode sugerir a materialização da ideia
de liberdade, pela qual o eu lírico tanto espera. Há um desejo
explícito, uma necessidade de libertação; há a declarada confissão do
anseio por alçar voo para libertar-se das amarras de um amor que foi
felicidade, mas se tornou grilhão. E é exatamente isso que o final da
história contada nos revela: libertação. São muitas as passagens em que
este pássaro-de-palavras surge. E quando ele pousa, a beleza se espraia
sobre o papel:
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Como se pode ver, por meio desta amostra, há quinze momentos em que o
pássaro presentifica-se no dizer da poetisa. Ora o pássaro é metáfora do
feminino, ora do masculino, num processo de zoomorfização em que as
asas, que propiciam o voo, são os elementos mais marcantes. E há sempre
a sede de voo. Há sempre a ideia da libertação. O ser que fala nos
versos quer
“saber viver sem abismo/ e aprender a voar sem asas.”
Juntando-se a essa metáfora da libertação simbolicamente presente na
figura do pássaro, outra imagem chamou-me a atenção: o trem, possível
metáfora da partida que antecede a esperada libertação. Em muitos
poemas, o trem e seus vagões aparecem, parecendo confirmar essa ideia da
partida, da tragédia anunciada e racionalmente aceita: “”a vida é um
vagão de um trem...”; “sigo como um vagão...”; “quando te vi, partiram
todos os trens...”; “fiquei para sempre na estação vazia...”; “e a
certeza de que és tu/ o mesmo homem que me acenou/ de um daqueles
vagões.”; “Em vão te asseguro alheio/ à escassez do porto/ e te vejo
vagões afora/ - anônimo passageiro.”; “pouco importa o voo proibido,/ os
vagões fora dos trilhos.”; “trens, aviões, quedas d´água...”. Trens
partindo, pássaros voando. Relações que se findam, pessoas se
libertando. É assim que percebo o canto temático maior na poética de
Aíla.
De olhos entreabertos
lembra-nos a pujança dos versos de saudade de Florbela Espanca, as
cartas pulsantes de Sóror Mariana Alcoforado ou, ainda, as declarações
ficcionais de
Flória Emília
a Santo Agostinho, no Vita Brevis.
De olhos entreabertos é o
cantar de todas as mulheres que amaram imensamente e souberam dizer bem
ou bendizer este amor. Há muito ainda a saborear na obra: os momentos
intertextuais, a metalinguagem, o uso da figuração etc. Contudo, deixo a
outros este prazer ou a mim mesma em possíveis futuros escritos. Para
finalizar, destaco ainda o momento áureo em que a autora conclui a obra
com um verdadeiro ‘fecho de ouro’, quando dialoga com o
Coríntios, num momento de rara
beleza intertextual. E, nesse acorde derradeiro, o mais encantador é ver
que, nem mesmo toda a dor existencial provocada pela vivência amorosa
fez a voz lírica calar-se ou maldizer o amor. E assim se finda o livro
com o texto Como na Carta de Paulo:
“o amor ficou, como profetizava a Carta, porque o amor jamais acaba;
aniquila profecias, cessa as línguas, faz desaparecer a ciência, mas não
acaba. Assim foi, assim será”.
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