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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 32 | outubro | 2012
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ANTÓNIO JUSTO
ARTE ARTISTAS E OBSERVADORES
O nós também aspira a ser eu
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António Justo (Portugal). Professor de
Língua e Cultura Portuguesas, professor de Ética, delegado da
disciplina de português na Universidade de Kassel |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Resido na
cidade de Kassel, o lugar da Documenta, que é a maior Exposição Mundial
de Arte Contemporânea. Acentuo a palavra lugar, porque este, numa
perspectiva artística poderia compreender-se como o sítio (atelier) da
grávida a dar à luz, ou o sítio grávido onde se juntam as forças dum
chamamento possibilitador da obra de arte.
A
dOCUMENTA (13) tem a vantagem de convidar o observador e o/a artista a
uma pesquisa associativa e de lhe proporcionar, ao mesmo tempo, um
“Brainstorming” sobre a arte em geral, (reunindo e conectando os vários
ramos da arte com as diferentes disciplinas do conhecimento) e os mais
variados projectos de vida, num espaço que, à primeira vista, faz
lembrar a Torre de Babel. Tudo ganha aqui expressão em formas e formatos
que reflectem o Homem na sua qualidade de rei e súbdito da natureza,
numa dinâmica da ecologia biológico-cultural.
De facto,
nada é estranho ao artista que, em interacção e intra-acção com todas as
dimensões da realidade e do saber, procura elaborar o seu rascunho de
vida num contínuo diálogo de inter-relações orgânicas, mecânicas e
espirituais. O lugar de acção do artista é, naturalmente, o público,
sendo nele que se movimenta para, numa atitude de aquisição e ampliação,
reflectir e questionar valores e costumes numa perspectiva diacrónica e
sincrónica.
Um dos
objectivos do artista contemporâneo, se o equacionamos em termos de
expressão do seu tempo, seria criar um feedback de todas as disciplinas,
dado tanto espírito como matéria, (e relação intersubjectiva /objectiva)
serem plataformas diferentes da mesma realidade, como se expressa a
nível teológico, no “dogma” da Trindade: unidade do ser
(criador-criatura/obra) numa relação consubstancial (interacção
artista-obra-observador), exemplificada a nível da encarnação onde a
realidade, constante de matéria e espírito, deixa o caracter antagónico
destes dois princípios, para assumir uma relação “pessoal” de interacção
e intra-acção. Recorde-se, neste contexto, o prólogo do evangelho de
João (“No princípio era a In-formação - o Verbo”). Teorias, mitos e
dogmas sempre foram interpretados e clarificados pelas analogias da
arte. É-se artífice do real e do futuro e, com o cinzel da formação,
religião, música, cultura, arte, etc., todos modelam (cada um na sua
plataforma em espírito de complementaridade) o ser humano e a realidade
que os envolve e o forma, ao mesmo tempo.
No mesmo
lugar, na mesma obra procura-se juntar e expressar uma conexão de
experiências entre lugares, nomes e sítios sem que os dualismos
individuais, interculturais e interdisciplinares fiquem na sombra, muito
embora num processo comum de individuação que, inevitavelmente, cala as
forças da selecção, da associação e da assimilação.
Na
prática, constata-se uma falta de consciência da complementaridade, numa
apreensão e expressão da realidade, que emperra os saberes em definições
com arame farpado; saberes concorrentes que se fixam em si mesmos,
agindo contra o espírito de interdisciplinaridade, numa atitude
semelhante à da avestruz, que mete a cabeça debaixo da sua areia ao
sentir que aquilo que a define, como identidade, a questiona sob o ponto
de vista doutras perspectivas. A realidade biológica e cultural
acontece num processo de osmose das suas várias dimensões e camadas, sem
fixação na linearidade duma linha fronteiriça unidimensional (arame
farpado). A necessidade de demarcar o outro corresponde a uma
necessidade imanente de se definir a si próprio, e a uma estratégia de
autoafirmação categórica unidimensional, como se observa na disputa
entre arte, ciências naturais, ciências humanas, ideologias, política e
religião. De facto, cada disciplina, ao fixar-se na linha
fronteiriça que a define, despreza o conteúdo de que faz parte.
Lugares,
nomes e objectos de arte, com a ajuda do intelecto, tornam-se em
neurónios de interligação, associação e combinação que se podem revelar
em afirmação ou resistência poética, e, até mesmo, em perversão do
pensamento, ou em símbolos ao serviço de dogmas estéticos e
antiestéticos. Tudo é possível organizar de modo a servir uma obra,
mais ou menos descritiva, em que a tela é símbolo duma natureza sempre
criadora e em que até o marginal se pode revelar em fundamento de algo
maior.
A
arte/obra de arte, tal como a pele, constitui um delineamento claro de
algo a ela subjacente mas indefinível. Continuando a analogia inicial,
poderíamos definir aqui arte e artista como expressão do grito do
universo a dar à luz, à semelhança do Big Bang numa cópula universal em
contínuo processo de realização e consumação no produzir a obra. Por
outro lado, o objecto de arte e a arte observada é como que algo
reflectido num espelho mas que, no entanto, deixa antever, na sua aura,
a passagem do artista pelo Olimpo. Sem esta a arte perderia a sua
sacralidade, significado e motivação. Sem a tal passagem pelo Olimpo os
artistas perderiam a sua auréola e o seu brilho seria parco se
consagrado apenas pela criatura artesanal (povo criatura). Num acto
posterior, a importância da obra de arte vem-lhe do simbólico, o que lhe
seria bastante, não se escondessem por trás dela interesses muito
concretos, desde o comercial ao ideológico; grupos e instituições
servem-se, frequentemente, da arte para tecerem as suas metafísicas
fomentadoras de dicotomias entre um laicado e os iluminados da arte e
até mesmo entre as várias artes. Com mitos, dogmas e uma certa liturgia
também na arte se fomenta um público rebanho laico seguidor duma fé
secular definida por alguns corifeus. Este problema torna-se mais óbvio
num momento em que um objecto de arte plástica não fala por si mas
precisa de explicadores que lhe proporcionem o acesso. Para entrar no
templo exige-se agora um porteiro!...
A força
do Zeitgeist (espírito do tempo corrente) ensombra a arte. Ela é de tal
forma orientada para uma globalização, pressagiada como natural, que
cria automaticamente uma agressão contra tudo o que é maior e, como tal,
pudesse constituir obstáculo à concretização dum pretenso espírito ainda
maior, o global.
Dá-se primazia ao individual e ao orgânico desde que se deixem reduzir à
anonimidade (proletarização espiritual). O global (globalismo), porém, é
o outro lado do biótopo e dos ecossistemas biológico-culturais mas, de
momento, a desenvolver-se sem qualidade orgânica. (É sintomática, neste
contexto, a tendência fatal, dos nossos multiplicadores de cultura, para
negar a cultura ocidental e difamar os seus fundamentos, até mesmo à
custa da afirmação duma cultura hegemónica desértica e dum mercantilismo
absoluto que não reconhecem o sujeito). Também na arte se registam,
frequentemente, traços hegemónicos quando esta se arroga como única
capaz de curar os problemas do mundo. Problema de autoestima cega!
Mais que a encenação do mundo entre arte e contemplação importa o
diálogo entre mundivisões que não reduzem as imagens a meros objectos de
uso do próprio rebanho.
O estímulo
sensual, intelectual e espiritual poderia contestar fortemente uma
atitude de espírito decadente amoral e “aideal” que reduz o momento a
alegoria relativista mas se limita a questionar medrosamente a
artificialidade dum mundo globalista e relativista destruidor de
biótopos e ecossistemas culturais. Quer-se um pluralismo anónimo
(anorgânico) revelador e confirmador dum efêmero poético e político.
No limiar da realidade do dia-a-dia, alguns artistas lançam-se à
descoberta de limites onde corpos sem conteúdo, sem espírito, se tornam
metáforas duma realidade construída por invólucros vazios. Talvez
revelem, assim, consciente ou inconscientemente, o esvaziamento de
tradições e valores a sacrificar a projectos abstractos implantados por
forças artificiais criadas contra uma evolução natural orgânica, que
poderia, não obstante, ser assumida pelo pensamento (ideologia).
Que seria
da arte se não fosse a arte de falar dela! A arte também nos quer
alertar para a realidade social e para as relações de poder. Fá-lo
numa tentativa de consertar rostos de cultura da praça, através de novos
objectos de arte, mas apenas à semelhança do que se verifica nos trajes
e enfeites (joias) da mulher ao longo dos tempos. No enfeite constatamos
a diferença de figurinos que escondem atitudes próprias ou projectos de
identidades. Constata-se uma evolução e, ao mesmo tempo, uma ubiquidade
diacrónica e sincrónica que podemos também observar na constelação das
culturas/civilizações hodiernas e diferentes modos e concepções de vida
entre elas . Também no âmbito da arte falta um estudo sinótico entre
o hoje e o antigamente, uim estudo comparativo (evolutivo) entre as
culturas actuais, seus valores e sonhos para possibilitar uma verdadeira
oficina de arte virada já não só para as fenomenologias diacrónicas mas
especialmente para uma fenomenologia sincrónica. Se as víssemos como
num filme de sinótica cultural sincrónica verificaríamos o ontem ainda
no hoje presente (Afeganistão e Suíça, etc.) sem complexos de culpa nem
culpabilização do outro. Verificaríamos grande cinismo num discurso
artístico e político que, em nome dos direitos humanos critica a
barbaridades da própria cultura no passado e ao mesmo tempo aceita, os
costumes barbáricos de outras culturas contra os direitos humanos, em
nome do respeito pelas culturas e subculturas actuais. Este é um
escândalo que a arte negligencia ao fixar-se em pequenos escândalos
fomentadores da excitação pública e da própria masturbação improdutiva.
Este é o
hoje-amanhã, no seu intervalo abstraído, o eterno presente, onde se
podem ver metáforas de História vivida e a ser vivida e, deste modo,
constatar a fragilidade do Homem e das culturas numa realidade a
acontecer entre facto e ficção. Ao artista fica, muitas vezes, a tarefa
de registo de processos num papel de contador de histórias hoje modernas
e amanhã antigas. Não chega ficar-se pelas fenomenologias culturais,
falta ainda fazer-se uma análise exacta comparativa de ideologias,
culturas e religiões numa perspectiva de orto-praxia concretizadora da
realidade eu-tu-nós sob a estratégia dum pensar e agir a partir do nós.
Duma
maneira geral, os museus não passam de inventários de arte.
Como registos da memória artística, lembram, por vezes, uma viagem
artística dum povo que antes vivia da ilusão da perfeição e hoje vive da
ilusão da igualdade e da democracia. Os próprios museus são testemunho e
afirmação duma sociedade e duma propriedade adquirida e a adquirir na
medida em que, também eles, na qualidade de espaços públicos,
condicionam o acesso a eles, mediante um óbolo de entrada não acessível
a toda a população. Estes espaços públicos, antecâmaras do Olimpo, nas
mãos de estruturas institucionais, servem um pequeno grupo de
frequentadores, cimentando um estado de coisas em Estados que não
conhecem povo nem população mas para quem reservam a ilusão e o Smog.
Museus, mantidos pelo tesouro público, restringem a entrada neles àquele
que tem poder económico para pagar um suplemento (bilhete) que o torna
mais igual a si mesmo e lhe concede um estatuto identitário superior aos
outros (“povo”). A arte limita-se, por vezes, a
fomentar uma consciência política ecológica num público provindo, na
generalidade, de camadas sociais com dinheiro que já possui essa
consciência ecológica. Fala-se de liberdade, solidariedade e abertura
sem prevenir nem registar que tudo se organiza na base de limites e de
fronteiras e sob a lei da selecção da natureza. De facto, que seria da
amiba sem a membrana?!
Nas falhas
e lacunas da lógica, da vida e do direito, é gerado o progresso da
superfície: ondas concêntricas geradas na superfície da realidade
social. O exagero de performances, filmes, instalações, plásticos em
formas visuais num mundo dominado pela visualidade pode reprimir ou
condicionar outras percepções e dimensões, como se a imagem e a onda
fossem as únicas realidades do espaço.
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Cumplicidade entre criador
observador obra e acto criativo |
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Talvez,
uma maneira nova de fazer arte, pressuponha uma nova prática com
trabalhos/obras de arte realizadas em comum por grupos de pessoas das
diferentes disciplinas, como sugere Alighiero Boetti, numa tentativa de
criar uma praxis de identidade múltipla. Se queremos encenar um novo
mundo a estratégia será de colaboração e intercomunicação. Em
Fernando pessoa temos um protótipo de artista com um eu dividido e
reunido em si mesmo. Ele já se revelava com uma identidade múltipla.
Nele podemos certamente verificar a tendência dum nós que também
aspira ser eu. Em cada pessoa, como em cada grupo ou cultura
esconde-se um processo de camadas culturais e físicas, à semelhança das
camadas geológicas formadas ao longo de milénios e que se necessita
consciencializar para ser colocada em interacção consciente. No grupo
(nós) inclui-se o contraditório e dele surge a ipseidade e a alteridade
numa relação de complementaridade de espiral ascendente a caminho do “
Omega” de Teilhard de Chardin. Seria óbvia a consciência dum
propósito comum de evoluir sem se fixar nas formas criativas em moda nem
nas cadeias de ideologias vigentes. Uma consciência pluridimensional é
consciente de que os vários conhecimentos (ciências e práticas)
continuam limitados aos seus próprios trilhos sem reconhecer ainda que o
progresso e toda a perfeição (evolução) e futuro se processa em espiral
num subir sem aniquilar, tudo reunindo em si, à imagem da criança que
junta em si também a presença genética e cultural de seus pais e
antepassados. Na criança, em cada um de nós, caminha a vida toda. Cada
um é um resumo do universo segundo o próprio espelho. O empenho na
realização dum futuro já presente implica o cruzamento dos vários ramos
da ciência e da experiência numa fusão paciente de fé nostálgica e
futurista. Todos somos processo e cruzamentos de processos.
Embora
peregrinos citadinos, trazemos a província em nós. Esta continua a ser o
terreno onde lançamos os alicerces da nossa casa. Na monocultura não
prosperam as borboletas nem o artista. No nosso sítio pluridimensional,
na nossa alma, encontram-se não só as imagens das paisagens que
observamos do nosso ser, mas também as paisagens reais, o próprio campo,
a que não falta o sol dum espírito iluminador e criador. O mundo é
mais que as imagens ou a percepção que temos dele; ele é cidade e é
campo, é matéria e é espírito, é facto e é fantasia, com entremeios de
muros feitos de pedra, de ideias, de posições e de cultura, onde a luta
pelo espaço e pela identidade parece fazer do muro o essencial. Na
feitura do muro, e na necessidade da sua destruição e reconstrução
revela-se a consciência profunda duma realidade muralhada estar chamada
a transcender os próprios muros, podendo estes, em certos ramos da
existência, ser reduzidos a símbolos, tal como acontece à sublimação da
guerra no jogo de futebol. (A destruição dos próprios muros, porém, não
se pode dar numa dinâmica de afirmação dos muros dos outros!)
Cada
pessoa, cada obra, rua, catedral pode ser usada para um alargamento da
consciência individual e colectiva; cada facto, cada objecto e ideia
pode ser imbuído de poesia e tornar-se obra artística reveladora e
concretizadora dum diálogo de metafísica e física que se interpenetram e
completam, sem que o cunho individual do artista predomine. Para isso
urge unir respeitosamente o saber científico ao sentir artístico e à
sabedoria religiosa e verificar que o que dá consistência aos muros
ideológicos e partidários é o interesse, a focagem numa parte da
realidade. Também a identidade do mar se faz na interacção da identidade
das gotas! Naturalmente, também o aleatório precisa do seu lugar ao lado
do determinado.
O suceder
da arte pode comparar-se a um estendal de imagens ventiladas pelo nosso
pensamento e em que o estendal é a nossa alma/consciência individual e
colectiva numa revelação diacrónica. O efémero e o factual recebem a sua
consistência num jogo irónico entre real e abstracto, entre o sujeito e
o objecto. Na obra fica o movimento duma vontade intencional mais ou
menos consciente, num jogo de formas e gestos simbólicos, por vezes
absurdos, de restauração e recuperação de vida e da reflexão sobre ela.
O medo de
perder o legado do passado e o cuidado pelo futuro tornam-se presentes
em obras envolvidas em processos de construção, desconstrução,
reconstrução numa tarefa e intenção de possibilitar novas formas de
leitura, duma realidade que só o é no acontecer. A arte regista uma
contínua tentativa de simplificar a realidade antagónica equacionando-a,
para isso, em verdades que a tornam acessível e destroem ao mesmo tempo.
As obras artísticas, com a sua aura, testemunham a permeabilidade das
fronteiras entre realidade e ficção. A arte origina-se no olhar do
observador possibilitando, no seu consciente, a criação de mundos e
dimensões que transcendem o dia-a-dia, numa procura doutras paisagens e
doutros saberes.
O desafio
contínuo de diálogo entre material e forma é possibilitado pela
impossibilidade de obter uma síntese entre forma e matéria que
transcenda o objecto que as enterra. Isto motiva todo o artista a
procurar um arquétipo que se revele possível como aspiração no acto de
dar à luz. A forma, como momento de in-formar, cativa o artista no
processo criador que dá continuidade à criação e é subcutâneo à criatura
do artista. Consequentemente mais que uma arte própria dum tempo há
apenas uma expressão, um estilo artístico do tempo. Tal como no prólogo
de João, o verbo cria tornando-se carne, num contínuo gerar
gerando-se, e em que matéria e forma são momentos do acto de in-formar.
O espaço de tensão entre o real e o exotérico, entre o acto de criar e o
objecto criado, possibilita uma dialética intelectual já presente no
acto criador. O acto de criar é luz sendo a obra a sombra dela e ao
mesmo tempo, a força reminiscente de voltar/realizar luz. A obra de
arte, se não reduzida a sombra petrificada, é sombra a apontar para a
luz. Daí também a necessidade do artista ter de criar um “lugar” que
possibilite a confusão do considerado real para assim proporcionar novos
espaços, plataformas, diagramas e novas criações. Deste modo
viabilizam-se diferentes mecanismos de percepção e criação de realidade.
A arte torna-se no lugar do erótico em que a provisoriedade das formas
dá lugar a novas dimensões para lá do tempo e do espaço possibilitando
sentimentos e experiências que se contrapõem às emoções criadas pelo
mundo do poder e da dominação.
Importa
submergir na arte sem nos fixarmos no artista, na sua necessidade de
identificação, nem na interpretação. (Estas revelariam apenas parte da
nossa identidade!). As obras, como composições de textos, imagens,
formas, materiais e estruturas possibilitam novos lugares e estadias que
se podem tornar nossos espaços e até alargar as nossas perspectivas no
sentido duma orto-praxia tanto linear como alinear.
Vive-se na
dimensão das metáforas entre símbolos religiosos, científicos,
artísticos e o poder político. A futilidade do esforço para chegar a uma
verdade, que se perde nos contextos, fomenta uma realidade de meias
verdades, em vez de apontar para o processo eterno de procura/realização
da verdade/realidade. Também no coração da Documenta - no Museu
Fredericianum – se configuram formas e sombras metafísicas apoiadas num
estoque de ideias da ciência e alegorias da religião. Nele encontra-se
uma sala, sem nada, onde o visitante é confrontado com o vazio e o
silêncio. Este espaço de reflexão criativa estimula os visitantes a
questionar, indirectamente, uma sociedade linear stressante. É mais que
óbvia a necessidade de criar lugar do silêncio não só na igreja e na
arte mas a nível individual, institucional e social.
A
indústria da arte comercializada encontra-se ao serviço do capitalismo
cognitivo que se
distancia da natureza em nichos dum abstrato alérgico à vida
orgânica (Arte de conceito, Concept Art ) e em serviço da visualidade ,
muitas vezes direccionada para utopias negativas negadoras do Homem.
Serve-se um macro-sistema de sistemas anónimos e alienantes! Numa época
em que o mercado e os meios de comunicação social tudo instrumentalizam.
Também a arte precisa de críticos como o artista Francesco Matarrese que
nega o objecto artístico resultante dum trabalho abstrato (Um momento de
reflexão!).
No
entanto, também uma tela vazia viabiliza um destinatário e traz uma
mensagem encoberta a um mundo inundado por imagens mudas em que um saber
de altos voos já não consegue aterrar. Os fenómenos e os interesses
cruzam-se nas fronteiras e o artista é o trapezista que dança
nelas. Os limites tornam-se lugares que salientam as contradições da
condição humana. No tapete do ser, em que nos movimentamos, nada há
certo, tudo é provável; também o tapete em que andamos faz parte de nós
e do movimento que somos. Se a filosofia se limita à pergunta de como
é possível o real e se fica pelos condicionalismos e possibilidades
desse real, não sai do comboio do pensamento que se move em trilhos e
potencialidades delimitadoras do próprio pensamento. Então também a
filosofia é uma arte porque reconduz e orienta a capacidade para um
determinado momento do real. Por outro lado, também a ciência só pode
descrever o provável, como descobriu a física quântica; cem anos depois,
ainda se continua a acreditar no Weltbild (imagem do mundo ou
mundivisão) determinista do séc. XIX que pensava que o mundo funcionava
segundo regras exactas mensuráveis.
Fontes de
inspiração criam
estruturas narrativas, pinturas da história com restos dum futuro
enterrado numa realidade feita de desmoronamento e reconstrução.
Ah! Na
vida aqui ao lado, vive, lado a lado, na arrecadação da realidade, a
vida a arder num processo de materialização e de desmaterialização. Num
ser de objectos transformados pelas chamas do pensamento, a dor dá à luz
novos seres num mudar contínuo de formas e visões. De facto, a
diferença entre o papel higiénico e a nota de banco, está na tinta, o
resto é uma questão de crédito. O nosso destino é dar forma ao
formado em diferentes dimensões na partilha do acto de in-formar. Somos
sonâmbulos no combate à noite da vida em procura da luz; quem não
resigna procura, no relevo que dá à existência, deixar a silhueta da sua
conotação, na sequência dum acto submisso de dar continuidade à vida no
seguimento dum chamamento que se expressa na própria vocação.
Uma
história, de perda da herança (recordação) e dos valores humanos, virada
para um saudosismo arcaico que realça as forças bravias nela submersas,
como se o brilho da cultura ocidental fosse algo extraterrestre que
justifique toda a agressão dos guetos ou dos apóstolos do relativismo,
expressa e conduz a um estado de abdicação. Consequentemente, um certo
culto do exótico revela-se, contraditoriamente, contra o próprio
ruralismo. Os espíritos dos aborígenes insurgem-se nesse culto contra a
própria evolução. Às sombras da cultura ocidental são contrapostos os
soalheiros doutras culturas e subculturas como se o mundo das culturas
fosse unidimensional, como se, a cada cultura, não estivessem
subjacentes a mesmas forças e leis naturais/culturais com uma
representação teatral correspondente à própria vontade de se autoafirmar
no tempo propício ou de se negar. A vigência duma ética de recordação
negativa justificadora dum criticismo discriminador é sintoma de
decadência. Arte, tal como as civilizações, precisa dos seus lugares
altos na companhia dos seus templos. Sem intervir contra estranhos, a
arte ocidental precisa de se reunir para se creditar e não abdicar dos
valores que a tornaram um luzeiro universal!
Obras e
culturas são colocadas em conexões ilegítimas como se um determinado
quadro fosse responsável pelas tintas que se encontram enquadradas em
circunstâncias doutros lugares e tempos.
(Responsabilizam-se os outros
para se desobrigar a si mesmo ou para se colocar no pedestal da moral.)
Os espíritos dos mortos continuam a perseguir-nos como se a morte não
fosse vida também. Critica-se o passado e a diferença, não para se ser
mas apenas para subsistir. Na escolha dos factos e das obras que o
artista apresenta, ele procura revelar-se nelas e ao mesmo tempo
redescobrir-se na reacção do observador (público). Instituições e
Exposições como a Documentas, Bienais e que mais, dão valor e
significado às obras e artistas que confirmam as próprias posições e
configurações da sua mundivisão. Só é pena que o seu espírito crítico
não se reconheça como mero momento da própria necessidade de
identificação e auto-afirmação, muitas vezes à custa do resto. A sua
realização é importante, também porque constitui uma possibilidade de
autoanálise e questionação possibilitadora de delineações mais
alargadas. Os fenómenos cruzam-se nas
fronteiras e o artista é o trapezista que dança nelas.
A arte,
entre outras encenações, é mais uma visão do real, num cenário de fundo
indefinido e aberto. Também a realidade é imagem fenomenal doutras
dimensões. Tudo imagens da imagem dum real num palco de imagens formado
também por nós. A vida é símbolo e vive dele num mítico acontecer que
continuamente recria a sensação de chegar a um real que a própria
experiência cria. No abstrair da abstracção talvez se chegue á imagem
dum real para lá da percepção e do dizível, na sarça-ardente do “sou o
que sou” no tornar-me.
António
da Cunha Duarte Justo
www.antonio-justo.eu
antoniocunhajusto@gmail.com
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Revista InComunidade (Porto) |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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