I
Assassinado aos 43 anos de idade por um desafeto, que lhe conquistara a
mulher e haveria de assassinar seu filho – sempre em legítima defesa,
diga-se de passagem –, Euclides da Cunha (1866-1909) ainda deveria dar
outras páginas memoráveis à Literatura de expressão portuguesa, não
tivesse tido um fim tão inglório e prematuro. Mas, seja como for, o que
deixou foi suficiente para alçá-lo ao panteão de nossos escritores mais
memoráveis, ao lado de José de Alencar (1829-1877), Machado de Assis
(1939-1908), Lima Barreto (1881-1922), Graciliano Ramos (1892-1953),
Guimarães Rosa (1908-1967) e Jorge Amado (1912-2001).
Ao contrário destes, porém, Euclides da Cunha não escreveu ficção, ainda
que só da pena de um magistral ficcionista poderiam sair as imagens que
construiu em Os sertões da epopéia da guerra de Canudos,
confronto entre as forças do Exército brasileiro e integrantes de um
movimento popular de fundo sócio-religioso liderado por Antônio
Conselheiro nos anos de 1896-1897 no interior do Estado da Bahia, no
Nordeste, uma região historicamente caracterizada por latifúndios
improdutivos, secas cíclicas e desemprego crônico, que à época passava
por uma grave crise econômica e social.
Não é um episódio de que se possa orgulhar o Exército brasileiro, que,
mais uma vez, de 1964 a 1985, seria usado para massacrar o seu próprio
povo, em defesa dos interesses dos poderosos, em vez de defender o
território nacional contra o inimigo externo, como lhe compete
constitucionalmente.
Entender o gênio euclidiano é a que se propõe o crítico Fábio Lucas no
ensaio “Euclides da Cunha, escritor e pensador da nacionalidade: a fase
amazônica”, capítulo II do livro Peregrinações amazônicas – História,
Mitologia, Literatura, primeiro volume da coleção À Margem da
História, de ensaios e estudos, que a editora LetraSelvagem, de
Taubaté-SP, acaba de colocar no mercado. Poucos críticos terão analisado
tão bem o caráter e a obra de um homem excepcional, “cuja face mais
extraordinária – razão de sua notável importância nos quadros de nossa
formação – parece-nos encontrar-se no seu poder de expressão”.
Diz Fábio Lucas que nenhum outro aspecto da vida e da obra de Euclides
da Cunha é mais importante que o de escritor. Para ele, foi graças ao
seu estilo de escrever que o escritor pôde suplantar as limitações
enganosas da ciência de seu tempo. “O temperamento, neste caso, superou
a educação”, diz o crítico, com acerto. Para ele, apesar de firmemente
seduzido pelo pensamento racista e de predomínio do meio sobre o homem,
Euclides da Cunha nunca se deixou levar por ideias feitas e prontas.
Se a princípio e a distância se deixou levar pelas insinuações das
classes abastadas de que o grupo de Antônio Conselheiro não passava de
um braço da Monarquia em conluio com potências estrangeiras, no cenário
da luta logo constatou que os filhos da mestiçagem, que a ciência dizia
que eram a causa da degeneração e amesquinhamento do povo brasileiro,
eram apenas vítimas de um sistema de produção latifundiário e patriarcal
que ainda hoje vigora em boa parte do território brasileiro, a ponto de
a pretensa esquerda que assumiu o poder pelas urnas em 2002 ter se
mancomunado com alguns dos “vice-reis” do Norte – cujas famílias dominam
alguns Estados brasileiros – a pretexto de preservar a governabilidade.
De fato, observa Fábio Lucas que Euclides da Cunha não tentou conduzir
os acontecimentos para colocá-los de acordo com ideias preestabelecidas;
antes, deixou-se levar por eles. “Pode-se observar até que, à medida que
envelhecia, ia perdendo o apreço pela ciência em que tão confiadamente
acreditou e mais se agarrava à dialética dos fatos. A certa altura, já
admitia que a verdade fosse móvel”, diz.
II
Mas onde entra a Amazônia na vida e na obra de Euclides da Cunha? Fábio
Lucas mostra: já escritor famoso, em 1904, o autor de Os sertões
foi convidado pelo ministro Rio Branco, das Relações Exteriores, para
chefiar a comissão brasileira que, com a comissão peruana, iria definir
as fronteiras do Alto do Rio Purus. Na difícil viagem que empreendeu, o
escritor tomou notas para escrever uma obra a que desde logo atribuíra o
título O paraíso perdido, que considerava o seu “segundo livro
vingador”.
Na região amazônica, Euclides da Cunha encontraria a mesma pobreza que o
deixara compungido no sertão da Bahia. Pior ainda: atraídos pelo
comércio da borracha, extraída do látex da seringueira, contrabandistas,
aventureiros e atravessadores infestavam a região. “Havia companhias de
transportes que aliciavam milhares de famílias cearenses, fugidas da
seca e da fome, para trabalharem nos seringais, mediante um regime de
subordinação em nada diferenciado daquela do período da escravatura”,
conta Lucas, citando Euclides da Cunha: “(...) O seringueiro
trabalhando cada vez mais para ser escravo”.
Da viagem, como se sabe, Euclides da Cunha retornaria para uma vida
conjugal tumultuada que acabaria por provocar o desatino que lhe tiraria
a vida. Nunca escreveria Um paraíso perdido, que seria organizado
por Leandro Tocantins com “ensaios, estudos e pronunciamentos sobre a
Amazônia” que o escritor deixaria dispersos.
III
Com olhar seletivo, Fábio Lucas estabelece um roteiro seguro para quem
quiser conhecer não só a Amazônia de Euclides da Cunha como a de outros
grandes escritores, poetas, ficcionistas, historiadores, sociólogos e
filósofos, como João de Jesus Paes Loureiro, Olga Savary, Thiago de
Mello, Jorge Tufic, Astrid Cabral, Aníbal Beça, Age de Carvalho, Márcio
Souza, o português Ferreira de Castro, Abguar Bastos, Inglez de Suza,
Dalcídio Jurandir, Benedicto Monteiro, Leandro Tocantins, José
Veríssimo, Arthur Cezar Ferreira Reis, Benedito Nunes, Nicodemos Sena e
outros tantos nomes representativos que passam pelas páginas deste
livro, desde já, imprescindível para quem ousar decifrar o enigma
amazônico.
Fábio Lucas enriquece o painel das “letras amazônicas”, ao incluir em
seu livro também as obras de Ferreira Gullar e Nauro Machado, grandes
poetas do Maranhão. É possível que o desatento leitor faça a objeção
segundo a qual o Maranhão não faz parte da Amazônia, embora situado numa
zona de transição entre o Norte e o Nordeste brasileiros. Mas é preciso
lembrar que, além de fortes vínculos geográficos com a Amazônia, há
vínculos históricos: em 1751, o Estado do Maranhão passou a intitular-se
Estado do Grão-Pará e Maranhão e sua capital foi transferida de São Luís
para Belém, o que durou até 1772, quando aconteceu uma nova divisão em
dois Estados: o Estado do Maranhão e Piauí, com sede em São Luís, e o
Estado do Grão-Pará e Rio Negro, com sede em Belém. Tudo isso justifica
o roteiro que Fabio Lucas traçou.
Peregrinações amazônicas constitui, portanto, uma viagem mais
sentimental do que geográfica, através de vasta produção literária com
temática “amazônica” ou na Amazônia ambientada. O resultado é uma
análise dos melhores livros que já foram escritos sobre a Amazônia ou
ambientados na realidade amazônica. O segundo volume desta coleção, À
Margem da História, cujo título é em homenagem a Euclides da Cunha,
será um livro de mais de 800 páginas, Escritores Brasileiros do
Século XX, da crítica, escritora e professora titular da
Universidade de São Paulo (USP) Nelly Novaes Coelho.
IV
Fábio Lucas (1931) nasceu em Esmeraldas-MG e é professor, ensaísta,
tradutor, crítico e teórico da literatura. Lecionou em seis
universidades norte-americanas, cinco brasileiras e uma portuguesa.
Dirigiu o Instituto Nacional do Livro em Brasília bem como a Faculdade
Paulistana de Ciências e Letras. Autor de mais de 50 obras de crítica e
ciências sociais, é considerado um dos mais importantes críticos e
conferencistas internacionais de literatura brasileira.
Em 1953, graduou-se em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais
e, em 1963, concluiu doutorado em Direito Público em Economia e História
das Doutrinas Econômicas pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
(Fafich) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nessa
universidade, tornou-se professor de Teoria da Renda e Repartição da
Renda Social na Faculdade de Ciências Econômicas. Nos primeiros tempos
da ditadura militar (1964-1985), sofreu perseguições políticas: foi
obrigado a deixar a disciplina que lecionava, o que o levou a partir
para o exterior.
Em sua extensa produção, destacam-se Poesia e prosa no Brasil:
Clarice, Gonzaga, Machado e Murilo Mendes (1976), Vanguarda,
História e ideologia da literatura (1985), Fontes literárias
portuguesas (1991), Do barroco ao moderno (1989),
Mineiranças (1991), Cartas a Mário de Andrade (1993),
Jorge de Lima e Ferreira Gullar, o longe e o perto (1995), Luzes
e Trevas, Minas Gerais no século XVIII (1998), Murilo Mendes,
poeta e prosador (2001), Literatura e comunicação na era da
eletrônica (2001), Expressões da identidade brasileira
(2002), O poeta e a mídia: Carlos Drummond de Andrade e João Cabral
de Melo Neto (2009), O poliedro da crítica (2009), O
centro e a periferia de Machado de Assis (2010) e Ficções de
Guimarães Rosa (2011). Na ficção, escreveu o romance A mais bela
história do mundo (São Paulo: Global, 4ª ed. 2012).
Ganhou vários prêmios de crítica literária e foi presidente, por cinco
mandatos, da União Brasileira de Escritores (UBE). Como vice-presidente
da Associação Brasileira de Direitos Repográficos (ABDR), destacou-se
pelo combate à pirataria e à fraude do direito autoral. Foi ainda membro
do Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) de 1989 a 1991.
Recentemente, presidiu a comissão de escritores que redigiu o Manifesto
dos Escritores Brasileiros, que resultou das discussões do Congresso
Brasileiro de Escritores, realizado em novembro de 2011, em Ribeirão
Preto-SP.
Este articulista orgulha-se de ter tido o professor Fábio Lucas como
integrante da banca que aprovou sua tese de doutorado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São
Paulo (USP), em 1997, sobre o poeta Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810),
Gonzaga: um Poeta do Iluminismo (vida e época), ao lado dos
professores Massaud Moisés (orientador), Lênia Márcia Medeiros Mongelli
e Francisco Maciel Silveira e do embaixador, poeta e ensaísta Alberto da
Costa e Silva, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras.