REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 31 | setembro | 2012

 
 

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA

Não há dia não há manhã

Terceira versão abreviada

(Poema de Nzé de Sant'y Águ)

-Excerto completo adaptado sobre as mulheres das ilhas-

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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(….)

Não há dia

Terra

não há noite

que o teu suor em (re)construção

não me venha acariciar

o clítoris da saudade em sangue

em figuras de milho e cabra

 

(….) 

Não há manhã

Terra

não há dia

que os meus/teus braços em baía

não se curvam

ao teu/meu abraço de liberdade

assim nascida

assim crescida

em amplo amplexo

qual certeza lavrando-se

na ambiguidade dos Outubros

de novas chuvas

 

(…)

Venham

vocês das ilhas vulcânicas

 

Venham

nos lábios das notícias

 

(…)

Venham

com as mantenhas das tocatinas

e os cânticos à cachupa

 

Venham

com os salmos ao violão

e as serenatas à lua companheira

 

Venham

todos 

 

Venham

ó poentes e madrugadas

ó crepúsculos e alvoradas

ó nevoeiros e arco-íris

 

Venham

ó planaltos e ribeiras

ó achadas e fajãs

ó colinas e cutelos

ó cumeadas e ribanceiras

 

Venham

ó vegetações de secura

ó florações dos tempos todos

de escassa fartura

 

Venham

ó vales dolorosos da Cidade Velha

ó praças ruas e largos atónitos das Cidades Novas 

 

(…)

Venham

todos

 

E tragam as luzes e as sombras desses cenários

os seus choros e risos

os seus ritmos de colexa & coladeira

as suas vozes de finason & serenata

as suas ancas de morna & tabanca

as melódicas e harmoniosas pulsações da tocatina

e encham-me os olhos

com sua luz & sede

e firam-me a retina e a menina 

e a belida dos olhos

com sua luz & sede de caminhar

e inundem-me o corpo

e latejem-me a pele vária rebelde

com sua sombra & sonda

com sua sonda de esperança

 

(….) 

Tragam tudo

e a monotonia explosivamente bela

do transe na dança do torno

 

Tragam tudo

e a sensualidade exaustivamente bailarina  

nos lábios carnudos sedutores no morno olhar no velado saracoteio

das ancas no enlanguescido e desafiante modo de andar das mulheres

mulatas negras e brancas das nossas ilhas das crioulas da nossa imaginação das musas da nossa inspiração das divas dos nativos e dos forasteiros devaneios

das suas imagens embalando-se embevecidas com a crua irrupção das rochas nuas das ilhas sobre a ensolarada e dourada aridez das paisagens

e o aconchegante verde-esmeralda do mar próximo e o azul intenso e destemido do oceano mais além

das suas imagens insinuando-se contrastantes com a humilde e sincera simplicidade com a festejada iconografia de algumas das figuras

mais marcantes e amadas da nossa inconfundível

e muito estimada gastronomia musical

 

E tragam também

as toadas e as audácias todas

adivinhadas nos dias laboriosos

das mulheres lavradoras da amargura

e da desolação das lotações todas

do desamparo e do sofrimento

das rotações todas da turbulência

do árduo labor conjugado

com a impertinência dos perfis

e a insolência dos retratos elaborados

na ampla e escura paleta do desprezo e do perjúrio

ainda estigmatizando os lugares

ainda estilhaçando as fontes e as pias baptismais

ainda reféns dos nomes percutindo

infames sobre os rostos rebeldes das badias do interior

e dos míseros arrabaldes das cidades da grande ilha

ainda postando-se também sobranceiros sobre os dias curtidos

das mulheres rurais e suburbanas das outras ilhas nossas

periféricas irmãs na labuta semelhantes  na temeridade

das mulheres rústicas da ilha maior dos seus corpos hábeis

entretecidos  com os rosários com as suladas

com os lenços amarrados à cabeça

com os meninos trazidos mimados às costas

 

E tragam também

todas as utopias não formuladas

das mulheres das ilhas silenciadas

nos afectos reduzidas à insónia

da solidão levedando-se

da poeira e do tumulto das pedras

com a azáfama da luta pela sobrevivência

com a aflição da busca do pão de cada dia

com a tessitura das alfaias e dos abrigos

para os andrajos para os tecidos festivos

para as roupas natalícias inaugurais

 para os afagos desses anjos de deus

numerosos seus filhos nascidos vivos

do seu sempre bendito e fértil ventre

nesses tempos delas tíbios nestes tempos

delas trívios nesses tempos delas todavia

viris sob a ardência do sol e a inclemência

das pedras da penúria nesses tempos delas

todavia feminis na fecundação do aconchego

dos primeiros risos e dos convulsivos choros

dos recém-nascidos

 

E tragam também

os ideários todos reformulados

das mulheres das ilhas palmilhando

os dias e as noites do desespero

pulverizando as alvoradas  da desesperança

dissecando com os pés nus decifrando

com o corpo todo os poiais as ribanceiras

os cutelos as achadas os leitos secos das ribeiras

os trilhos todos das ilhas circunscritos pela nudez

circundante das soleiras das portas dos terreiros das casas

e de ilusões outras ousadas todavia vívidas das filhos-fêmeas

delas suas aprendizes nos seculares lavores da veemência

da sustentação da casa da conjugalidade e da sobrevivência

 das artes todas solfejadas à beira da frescura dos olhos da água

das nascentes dos risos e dos minadores do conhecimento

vizinhos das sombras das espinheiras e das orações dos cochichos

 preliminares da locução e da subtileza

e de sonhos outros temerários todavia caminhantes com a exuberância

dos infantes seus próceres precoces dos campos de cultivo e dos descampados do pastoreio da imaginação crescendo com as chibarras dessedentando com as cabras e os seus pelos rochosos arquipelágicos ruminando com as vacas e com a sazonalidade da sua farta placidez

depois rendida à urgência aos tempos dos funcos de vigilância dos corvos

dos tabuleiros de mancarra de açucrinha e de bolos e rebuçados caseiros 

dos recreios das escolas dos campinhos de futebol dos polivalentes

e das placas desportivas das letras do alfabeto recitando ilesos

e devidamente trajados de batas azuis celestes sobriamente

identificadas nos seus vários timbres tons e espessuras

as travessuras de lavra própria e as arrelias

e traquinices das lavras dos condiscípulos

e as muitas madrugadas convocadas

nos sons e nas canções dos trovadores

nossos populares brilhantíssimos

 e os muitos madrigais tecidos

 pelos vates nossos modernos

 estampados na atmosfera ambiente distendida

nos livros de leitura  no regozijo dos sorrisos

nossos  de discentes da geografia dos ossos

 nossos das ilhas e dos seus lendários profetas

 cultivando os marcos da inocência e outros modos

 primevos de escrutação do futuro

e das suas redundâncias e das suas discrepâncias

e das suas relutâncias e das suas protuberâncias 

com a fracturante caligrafia

 dos lexemas e dos números nossos 

 gerados no solo nosso pátrio das ilhas

 do seu deleite derramando-se sobre o borbulhante leite

 das cabras domésticas e outros nutrientes dos risos

 das mães dos seus seios sequiosos das correrias das crianças

 e dos amorosos desatinos dos seus pais-de-filho

dos seus desassossegos esconjuradores dos pesadelos

das suas crianças confraternizando-se com os pesadelos

de outras crianças confidentes das respectivas mães

e da sua condição de esposas legítimas de papel passado

nas conservatórias de registo civil e juramentos matrimoniais sacramentados pela igreja e da sua condição de mulheres amancebadas quase sempre dotadas dos transitórios pergaminhos da comunhão de cama mesa e prole

e da sua condição de mulheres recentemente comprometidas nos dissolúveis  laços da união de facto e da sua condição de mães-de-filho  quase sempre solteiras quase nunca celibatárias  e da sua condição de amantes de raparigas de amásias de concubinas de namoradas de comborças quase sempre enfileiradas nas cadeias da poligamia de facto consagrada pelos tempos

do uso do gozo e da usura ratificada e festejada pelos homens poderosos pelos homens remediados pelos homens humildes das ilhas

e da sua condição de mulheres chefes de família quase sempre amadurecidas com os liames e as desilusões da monogâmica e sucessiva poliandria do seu indelével estatuto feminino herdado da sua ascendência escrava quase sempre sujeita às vicissitudes da gravidez e da parição quase sempre subordinada

às estações da escassez e da sobrevivência quase sempre dependentes

dos caprichos dos muitos senhores do seu corpo e das cativas expressões exteriores da sua alma querida livre dos seus passos trémulos quase sempre conspurcados pelo abandono das suas vozes atemorizadas quase sempre fustigadas pelos gestos  de ignomínia

e de desprezo do silêncio das suas bocas inertes quase sempre devastadas pelas palavras da humilhação e pelas muitas outras ofensas dos seus cônjuges dos seus amantes dos seus namorados dos seus companheiros

dos seus parceiros  dos seus homens dos seus pais-de-filho

     

E tragam também

toda a desmesura

das intermináveis estações da solidão

das mulheres viúvas em vida

dos seus maridos e companheiros embarcadiços

todavia sempre trajadas

com as cores garridas

das suas peculiares indumentárias

de mulheres de emigrantes

aguardando a reforma esperando a velhice sopesando

os semblantes todos dos dilemas matrimoniais superando

a asfixiante potência e dos desafios e desaforos extra-conjugais

conjecturando sobre tantas outras imponderabilidades amorosas

dos seus homens embarcados nas Américas na Europa

nas terras continentais da Mãe-África no lato Mundo

do derredor das escoriações da dor e dos afectos

irremediavelmente adiados desses seres

imprescindíveis  imprescritíveis e viris

delapidados na distância acabados em nada

nos longínquos horizontes do além-ilha

todavia permanecidos viçosos e soberbos

todavia conservados varonis e formosos

todavia petrificados como bons pais de família 

nas lágrimas da saudade

das suas esposas envelhecidas

com as meninências dos filhos

com as minudências da edificação

dos urbanos alicerces das futuras

moradias familiares com as inaugurações

das coberturas em betão das quatro águas

de telhas importadas dos azulejos e dos jardins

das casas novas com as celebrações e as festividades

da chegada ao inóspito fundo das ribeiras natais

das primeiras carrinhas de passageiros e mercadorias

vindas do estrangeiro para o baptismo com os nomes deles

desde há muito acalentados com outros nomes nossos telúricos

desde há muito conhecidos e reconhecidos com o regozijo

e os festejos sobrecarregados das colheitas das hortas

recém-adquiridas com dinheiro ganho de riba de água do mar

da terra-longe

acompanhadas como aguerridas mães-coragem

dirigidas como solitárias mães-de-filho

orientadas como solícitas chefes-de-família

mas também com os partos não acontecidos

com os prantos morosos espantados

com o manancial de águas jorradas

por mor da muita e intransponível lonjura dos transactos tempos

do antigamente dos incertos e precários tempos de agora

sobrevividos pelos seus companheiros de uma vida pouco inteira

dessas criaturas nossas das ilhas

e das suas famílias precocemente órfãs

providas dos nutrientes  da sua pequena realeza guarnecidas

dos ingredientes todos da sua ostensiva nobreza aldeã

sorvidos no trabalho árduo da terra-longe de dia de noite

no sono agitado do além-mar à chuva ao sol ao frio

e ao vento com geada neve insultos e calafrios

com solidão e amargura sob todas as tempestades

açoitando essas criaturas nossas das ilhas

do seu inesgotável imaginário transpirando temperança

exalando bem-estar destilando orgulho e vanglória

infundindo-se auto-estima injectando autoconfiança

a si e aos parentes e afilhados orgulhosos

nos retratos sépia dependurados

solenes e engravatados nas salas

de estar e nos salões de visita

dessas criaturas nossas das ilhas

exiladas do torrão natal e doméstico reverenciado

do reconforto e da segurança dos seus lares da cumplicidade

do seu chão de terra batida das suas paredes de pedra e barro

das suas coberturas de palha da antiga precariedade

do seu parco reboco

dessas criaturas nossas das ilhas

afastadas dos trabalhos das hortas das regas nas periódicas madrugadas

que lhes couberam em sorte da magreza dos pastos crestados sob os céus

de pouca ou nenhuma chuva dos (con)fiáveis latidos dos cães-de-guarda

das várias ressonâncias exalando da fome e da fartura das alimárias

dos alaridos das aves de capoeira esgaravatando livres nos campos

esparsos no seu escasso verde todavia solidários das diversas entoações

dos cantos dos pássaros da germinação dos coqueirais e dos bananais

das florações dos milheirais e dos cafezais e das plantações de cana-sacarina do extasiante odor da calda para as fornalhas dos cantos e desafios

das almanjarras dos terreiros do trapiche e dos alambiques

dos bois e dos touros saudosos

dessas criaturas nossas das ilhas

retiradas das empenas das casas rurais desterradas das esquinas

dos quarteirões suburbanos das suas estórias das suas confidências

das suas intrigas dos efeitos relaxantes e apaziguadores dos seus crepúsculos adormecendo docemente solares sobre as suas peles anteriores

de soberbos símios humanos                                      

 

E tragam também

todas as exculpações das mulheres abandonadas das ilhas

e os seus enleios digeridos e reprovados nos comentários dos sarcásticos  transeuntes do quotidiano nas habituais prédicas e homilias dos padres católicos nos sermões e hinos dominicais dos pastores protestantes nas prelecções morais dos sacerdotes de todas as seitas e credos religiosos

das ilhas e nas suas ameaças com o eterno fogo dos infernos contra os prevaricadores contra a lei de deus nos ditos apocalípticos dos adventistas

do sétimo dia e dos desvairados profetas do fim eminente deste e de outros mundos

e as suas âncoras estilhaçadas entre os móveis vistosos enviados das ricas terras da emigração e os seus brincos colares e braceletes de ouro e os seus prateados anéis e os seus outros reluzentes sinais exteriores

de conforto e bem-estar e as suas cartas de longe seladas com os carimbos das estações postais dos bairros marginais das grandes cidades ocidentais e peri-ocidentais mil vezes relidas na intimidade dos quartos conjugais na roda de parentes vizinhos e amigos na atroz salinidade

dos maus pressentimentos

e os seus sentimentos espartilhados entre os deveres de recato e pudor

as obrigações de fidelidade aos bem-amados e saudosos maridos embarcados e as solicitações e as fraquezas da carne assídua e infalivelmente assediada por familiares próximos compadres padrinhos

de casamento padres confessores guias e orientadores espirituais procuradores mandatados com plenos poderes gestores de negócios municiados de especiais faculdades de transigir intransigir e alienar 

e outros cúmplices do silêncio e outros garantes da discrição nos proibidos tráfegos da concupiscência e da paixão carnal e outros (re)construtores dos inamovíveis alicerces do sacramento do matrimónio e outros artífices

dos indispensáveis redutos da integridade da família da moral e dos bons costumes e outros artesãos dos inexoráveis fluxos das remessas

dos emigrantes e outros artífices e outros partícipes da platónica troca

de fluídos amorosos com as suas mulheres

quedadas em terra firme doméstica

 

E tragam também

todas as apuradas e todas as presumíveis culpas

das mulheres adúlteras das ilhas

e as suas viciosas visões e as suas impudicas alucinações pejadas

de fantasias sexuais e de outras obscenas recordações da noite de núpcias inaugural do (des)floramento e da (re)floração das suas sequiosas ânsias do primevo atiçamento dos ventres seus fogosos depois libidinosos em outras muitas núpcias vividas na clandestinidade de enxovais alheios atormentados pelo prazer e pelo remorso

e os seus frágeis enredos desdobrando-se pela implacável rotina

dos hábitos adquiridos na satisfação dos desejos intrusos interditos

sob os véus dos polidos e frugais gestos do pesar sob as cambraias e as cortinas  dos muitos artifícios da saudade sob as câmaras escuras do indizível arrependimento e as suas cãibras e os seus oníricos tremores resguardando-se sob os meticulosos lavores da sustentação dos pilares

da casa do lar e do património do rigoroso cumprimento da tábua

dos mandamentos conjugais do vigoroso preenchimento do calendário dos deveres próprios de esposas honestas

e fidelíssimas

e os seus inconfessados enlevos amiúde devassados pelos poderes ocultos

da intriga e da inveja e os seus escultóricos e almejados relevos amiúde devorados e corroídos pelas munições engatilhadas nas irrenunciáveis obrigações da honra e da desonra e as suas catarses engolidas

pela assassina devastação da vingança e do desengano dos depositários

dos sagrados sacramentos do casamento dos fulminados

pelos conspurcados paramentos do amor traído chorado

amaldiçoado e para sempre enterrado

 

E tragam também

todos os disfarces todas as máscaras todas as artimanhas todas

as astúcias todas as simulações e dissimulações todo o viperino arsenal todas as bíblicas predestinações

da Eva e da Serpente inoculadas

nas mulheres adúlteras das ilhas

nos seus revisitados paraísos nos seus teatros de sombras nas suas lições apedrejadas pela mão colérica dos candidatos a vítimas futuras dos males do amor nas suas asserções rejeitadas pela má-lingua das comborças  suas rivais nas suas ilações enjeitadas pelas maldições e excomunhões

das beatas suas vizinhas nas suas não ditas penitências nas suas não penitenciadas confissões nas suas não confessadas premonições nas suas secretas asseverações nos seus dissimulados desdéns nos seus íntimos segredos causticados pelos estritos ditames puritanos

da moral patriarcal dominante

 

E tragam também

a lata ousadia

das mulheres dos tempos de outrora

emboscadas entre os recessos do dia-a-dia

e as altas penedias de Ribeirão Manuel e da Serra Malagueta

a sua temeridade e a sua sonante valentia

percutindo contra as sombras insalubres do latifúndio

assolando e sitiando as achadas as encostas e as ribeiras

da ilha toda da ilha de Santiago

ondulando com os esguios corpos dos mamoeiros

dos Engenhos de Sedeguma e de Jaracunda

os seus novembrinos prenúncios

os seus imponderados prelúdios

da festa e do júbilo futuros setembrinos

compostos na vasta e esverdeada planura

de Achada Falcão e Achada Além

e as anciãs marcas das suas purgueiras

expurgando o medo e o temor do mando

purgando o alto preço da coragem e das suas cantigas de  esperança trauteadas com o sibilar das pedras repetidas com a prontidão dos maxins afagados nas suladas marchando com os pés nus informes todavia conformes com a macieza da terra bufa e a dureza das pedras dos calcorreados caminhos amotinados contra as temerosas hostes policiais e os impiedosos cascos da cavalaria da repressão claudicados defronte de Bombolon de Melo e de outros lendários nomes de Ana da Veiga e da sua imaginária cavalaria de amazonas recolectoras de nozes silvestres e de outras aguerridas folhas da pertinácia e do destemor para as lavagens da dor e da penúria para a combustão das candeias incendiárias das noites insones para o expurgo das sombras amofinadas da espoliação e da covardia para a escrutação dos tempos vindouros nossos dos tempos novos antecipados virtuosos nomeando-se pelos nomes da terra tais Naia Nair Nhara Munana Muntura Donana Tanha Maninha Manaia Mana Júlia Fidjinha Noca Xandinha Canda Dada Tutuxa Tutuca Luluxa Mento Bonga Fuca Teteia Zita Bia Dina Guta Tuna Tina Mita Luna Tujinha Dóia Jova Veninha Sábu Fonga Fatiti Nha Cumá Nha Ana Procópi Salibana Nha Tututa Nha Guida Mendi Nha Bibinha  Cabral Nha Násia Gómi Nha Mita Prera Nha Manina Bórji Nha Balila di Tira-Xapéu

 

E tragam também

os outros tempos todos

passados e presentes das ilhas 

renascidos do tenaz bolor  dos odores podres

das reminiscências dos tempos fétidos de outrora

do patriarcalismo colonial-escravocrata do patriarcalismo

mercantil-agrário do patriarcalismo clerical colonial-fascista

das suas sequelas querelas e mazelas

do seu húmus sedimentado

no quotidiano e anónimo patriarcalismo

das gentes simples e humildes das ilhas

dos seus resquícios  persistindo imperceptíveis

nos lugares cativos da saga libertadora no patriarcalismo heróico

da oratória emancipatória dos antigos combatentes da liberdade da pátria e do verbo insano e dos gestos inflamados dos puritanos militantes

da proclamada moral revolucionária dos tempos de antanho da sua sanha autoritária da sua saga persecutória castradora dos tempos novos

da reversão dos tempos de outrora desses infaustos tempos intactos rancorosos desses antigos tempos deles eriçados paternalistas sobre

os perfis leais das suas cúmplices e correligionárias políticas

desses antigos tempos deles camaradas depois conluiados

dirigistas machistas ou silenciosamente indiferentes sobre os ombros (im)pacientes das suas companheiras de vida e de luta

das sementes da sua subversão condimentando-se e multiplicando-se

às portas das escolas nos ginásios e corredores dos liceus nas filas dos hospitais nos átrios das repartições públicas nas células políticas nos debates parlamentares nos seminários sobre a promoção da mulher

e a sua escassa visibilidade entre a nomenclatura do partido e do estado nas crónicas jornalísticas e nos poemas panfletários de louvação da emancipação da mulher nos grupos cénicos das associações comunitárias nos grupos corais das igrejas e das organizações de massas

nas consultas de planeamento familiar e protecção materno-infantil

nas palavras e nos actos disseminadores dos benefícios da pílula

e de outros contraceptivos nas arengas contra o aborto clandestino

e as obscurantistas e retrógradas pregações de padres catequistas

 e irmãs de caridade sobre o alegado valor sagrado da vida intra-uterina

e a sua hipócrita ignorância das atribulações da gravidez indesejada

da maternidade precoce e da paternidade irresponsável

na quotidiana demanda

dos horizontes submersos 

na metade sonegada dos céus

todavia reiteradamente indagada

 à beira dos chafarizes e dos fontenários

na cata da lenha para o lume de todos os dias

cozinhados com a têmpera da (ir)resignação

entre as três pedras do antigo destino das ilhas

da sobrevivência das suas gentes dos seus casebres

de pedra solta das suas enxadas laboriosas dos irrequietos  arcos

de ferro das brincadeiras dos seus meninos

na rocega da palha para as alimárias na apanha

clandestina das areias das praias moribundas

na debulha do milho e do feijão no padecimento com a sede

dos trabalhadores das faimo nas morosas esperas das embarcações

perdidas ou demoradas nas fainas de pesca nas vigílias das suas precárias e clandestinas habitações disseminadas cinzentas nas ribeiras atafulhadas de lixo espalhadas desoladoras obre as encostas abandonadas das urbes nas periódicas dores

de parto na parição do que virá a ser

 

E tragam também

as trancas das portas as lâminas cortantes os punhais

afiados as pedras afiladas as palavras efervescentes s águas ferventes

os óleos incandescentes os tempos escaldados inumados

dos muitos meandros da vergonha  e da humilhação

a ardência não mais latente e resignada da impaciência

dos traumas dos hematomas das  cicatrizes dos gestos feridos 

e de outros sinais de alarme dos corpos sofridos das madonas das ilhas

os ódios calados a raiva contida as candentes reticências as lágrimas explosivas as palavras refiladas ebulindo inflamadas e outros pronunciados gritos das almas doridas das mulheres das ilhas

 

E tragam também

a elegância das vestes impolutas

das mulheres juristas e parajuristas

sobraçando os manuais feministas da predicação

e do combate soletrando os panegíricos da resiliência

em função do género desfiando os articulados todos

dos códigos de boa e produtiva conduta em tempo

 (des)velados e fundamentados na consistência

da resistência cívica e moral politicamente correcta

(obviamente que também baseada no género)

 

E tragam também

a luminosidade das vestes afirmativas

das outras mulheres cientes e senhoras de si

elaborando os projectos de lei do divórcio

da revogação das discriminação dos filhos nascidos

fora do casamento da interrupção voluntária da gravidez

da igualdade entre homens e mulheres nas esferas familiar e privada

da paridade dos géneros no acesso a cargos políticos e a funções públicas

na dotação da palavra oportuna e fulminante da palavra devastadora

nos comícios nos seminários nas sessões de esclarecimento

nos ateliers nos workshops nos brainstormings

 

E tragam também

a neutralidade das cores solenes

das vestes  inconfundíveis

das mulheres magistradas

e a severidade das sentenças punitivas dos agentes 

dos delitos de violência doméstica e maus-tratos contra

as respectivas companheiras e seus rebentos e dependentes

e a severidade das sanções aplicadas aos autores dos crimes

de rapto de moças virgens para os reprováveis fins do concubinato

de sedução de estupro de abuso sexual de jovens de assédio sexual

de  violação de agressão sexual contra mulheres maduras e idosas

e a severidade dos castigos aplicados aos agentes de outras infracções perpetradas contra a autodeterminação sexual das raparigas

e das mulheres das ilhas e contra outos bens jurídicos tutelados

 pela Constituição e pela Lei e situados na esfera de liberdade

de irrenunciável autodeterminação  da mulher emancipada

 

E tragam de novo

a imparcialidade das cores solenes

das vestes monocromáticas

das mulheres magistradas

levantando os cadáveres registando a comiseração sua

e a extensão das feridas e a superveniência da dor e da revolta

autuando os infractores do principio das igualdade entre machos e fêmeas no trabalho no salário nas mordomias nos débitos e créditos da carne  lavrando os despachos redigindo  as sentenças refundindo e aprimorando os acórdãos de outorga das casas de morada da família e dos afectos

dos filhos menores às mulheres separadas às mulheres divorciadas às mulheres desunidas de facto coligindo  os completos fundamentos e as concretas estipulações do montante das pensões e as exactas cláusulas da obrigação de prestação de alimentos aos pais-de-filho renitentes todavia sempre reincidentes na litigância de má-fé  nas ameaças e nas pugnas extra-judiciais na reivindicação de iguais afectos e de outros estranhos privilégios e de outras  esquisitas regalias e de outros idênticos direitos

de progenitura reconhecidos e outorgados às suas mães-de-filhoE tragam também

a rústica simplicidade  

das roupas tradicionais

das mulheres profetisas nos tons herdados e nos improvisos

da finason e da curcutisan 

das mulheres afinadeiras das turbações

da história e dos ecos azuis do mar

derramados sobre as fissuras das montanhas

ciosos e cientes das trágicas peripécias e do conturbado destino

da multissecular penitência das criaturas das ilhas

ecoando na txabeta e nas muitas e indecifráveis

 reminiscências musicais do batuco

e das suas mulheres cantadeiras da sambuna do rabolo e do rafodjo

e das suas mulheres dançadeiras do torno da mazurca da contradança

do colá sanjon do lundum do talaia-baxu da coladeira da morna

do funaná repicado da gaita e dos ferrinhos

e de outras não inventariadas e de outras não musicadas

e de outras não identificadas e de outras não pronunciadas

e de outras não registadas e de outras não conferenciadas 

cantigas de angariação dos ânimos e dos alentos

 da alma nua e desabrigada

dessas mulheres nossas das ilhas

amiúde interpeladas

com a prole toda e inteira

pelas cartas de chamada

dos seus homens

ausentes na Terra-Longe

impacientes na dispersão da diáspora

carentes delas em estado de necessidade do feminino aconchego delas

em estado de precisão da comprovada resiliência  delas

das suas legítimas mulheres

nas precárias barracas dos bairros degradados nos modestos compartimentos dos bairros periféricos de realojamento de imigrantes nos prédios de apartamentos de há muito sonhados de há muito sopesados no seu perfilo de cimento e de solidão nas vivendas hipotecadas à usura e à ganância dos bancos nos lares desconsolados  aguardando os imprevisíveis desfechos

da burocracia e do reagrupamento familiar

dos desfeitos e refeitos laços de afecto dos imigrantes

e das suas mulheres

amiúde desafiadas pelo chamamento dos baixos salários das fábricas

dos parcos ganhos das feiras dos precários lugares de venda dos produtos

feitos à moda da terra natal à porta das estações de comboio no bulício dos bairros periféricos de gentes de cor e dos seus periclitantes preçários foragidos dos fiscais da câmara municipal dos polícias de segurança pública dos vigilantes dos caminhos de ferro e de outros agentes da lei e da ordem vigentes nunca indiferentes às denúncias dos comerciantes estabelecidos na praça às delações dos vendedores ambulantes seus concorrentes e dos gestos e silêncios comprometidos dos tremores

dos suores frios  dos ardores

do claro e escuro dessas mulheres sempre atarefadas

com as necessidades de limpeza dos escritórios das escolas

dos centros comerciais das torres de apartamentos dos condomínios suburbanos dos lares de idosos das quintas afidalgadas das casas dos solteiros da classe média das moradias burguesas das buliçosas alamedas das grandes urbes das diurnas ruas e vias das pacatas cidades-dormitórios

 

E tragam também

a cativante simplicidade

das roupas informais das mulheres poetisas 

das roupas alternativas das mulheres poetusas

das roupas impetuosas das mulheres prosadoras de ficção

das roupas tempestuosas das mulheres letristas cronistas e jornalistas

das roupas presunçosas das mulheres académicas

das roupas deslumbradas de cores sempre berrantes

das mulheres pintoras das mulheres escultoras das mulheres

ceramistas das mulheres compositoras e intérpretes musicais

das mulheres artistas das mulheres artesãs da cor

do ritmo das muitas prazerosas melodias da vida

das mulheres poetas artífices das muitas redundâncias

da paixão das inesgotáveis atribulações e arritmias do dia-a-dia

 

E tragam também

o bom gosto dos trajes

e a lisura dos gestos estudados

das mulheres professoras primárias

das mulheres professoras liceais

das mulheres docentes universitárias

das outras mulheres todas progenitoras da luz

também elas genesíacas

 também elas nascituras

com o nascimento  dos mundos novos divisados

divisando-se nos olhos abertos nos rostos

saciados nas fantasias rejubilando insones

nas perplexas pupilas dos seus pupilos

 

E tragam também

a higiénica compostura

dos trajes e dos gestos cuidados

das mulheres enfermeiras das mulheres

médicas  das mulheres parteiras

das outras mulheres todas

também elas genitoras

também elas parturientes

do corpo e do espírito lavrando-se

maduros renascendo sempre recompostos

das criaturas das nossas ilhas

 

E tragam também

a virtuosa simplicidade dos trajes

e dos gestos articulados eficientes e profissionais

das mulheres engenheiras das mulheres arquitectas das mulheres economistas das mulheres sociólogas e psicólogas sociais das mulheres agrónomas das mulheres silvicultoras das mulheres assistentes sociais

das mulheres monitoras das creches e dos jardins de infância

das mulheres planificadoras da congruência e da funcionalidade

das paisagens dos orçamentos e dos afectos caseiros

do tempestivo estancamento do seu desuso da exclamativa indagação

da sua usura delineando-se sobre os corpos sôfregos das povoações

deleitando-se na domesticidade dos lares nas ardentes delícias

do prazer buscado e saciado

 

E tragam também

a elegância do vestuário formal

e dos gestos convincentes

das mulheres gestoras das mulheres empresárias

das mulheres dirigentes da administração pública

ungidas pelos tempos revoltos de agora cingidas

pela apreensão e pelo bom senso

na crisma e no manuseio

da complexidade e da simplicidade

das contas - correntes do estado-nação

e dos pequenos dramas familiares

de todos os dias

 

E tragam também

a soberba dos gestos convencidos

e dos trajes vistosos discretos neutros camaleónicos

das mulheres governantes das mulheres autarcas

das mulheres deputadas das mulheres comissárias

e conselheiras políticas das mulheres dirigentes

associativas e líderes comunitárias das mulheres

estrelas da comunicação social

deslumbradas com os arco-íris estampados

sobre os seus rostos absortos rememorativos

da saudade de elas meninas nos jogos das escondidas

dos seus corpos curiosos transbordantes de mistério

das suas primeiras e avassaladoras paixões amorosas

de elas flores juvenis ardendo com as primeiras iluminações

das suas maçãs devoradas com a festa e a sofreguidão

que antecedem a ressaca e pressagiam os infernos

e os arruinados paraísos de depois

 

E tragam também

o brilho e a argúcia dos seus argumentos

a comovida subtileza dos seus raciocínios

exumados do secular  confinamento

das suas antepassadas latifundiárias

das suas antecessoras pequeno e grã-burguesas

no delineamento dos cuidados para um radioso presente

dos filhos varões aos arranjos de um futuro garantido e confortável

para as filhas casadoiras aos afazeres do ordenamento

do sossego da paz e da estabilidade da instituição familiar

 à governação das domiciliárias mordomias das suas casas

senhoriais e das suas serventuárias e das serventuárias

dos desejos todos dos senhores delas do seu corpo

dos seus nocturnos tempos de descanso

dos seus diuturnos tempos de trabalho

dos seus diurnos tempos de exaustão

dos seus tempos todos de servidão

e de violada formosura

 

E tragam também

a convicta firmeza dos seus propósitos

os seus rudimentos desenterrados da secular condição

das mulheres suas predecesssoras das mulheres suas contemporâneas

nas ilhas  os seus fundamentos rebuscados no persistente estatuto

das mulheres comuns das ilhas nas suas anódinas jornadas

de mães esposas e trabalhadoras delimitando-se nos tráfegos

domésticos do fogão da lavandaria dos cuidados dos filhos

e nas suas outras rotineiras jornadas de escravas e fadas do lar

a um só e lotado tempo dilatando-se à lavoura dos dias agrestes

dos campos a um só e pesado tempo alargando-se à lavoura

dos horários e da arbitrária cronometria dos tempos das cidades

e das suas suburbes a um só e (des)lavado tempo expandindo-se

na lavra dos maduros tempos da satisfação dos desejos  seus

e dos parceiros dos seus (des)compassados tempos de recreio

de estrito cumprimento das consignas bíblicas dos preceitos legais

dos mandamentos costumeiros para a reprodução da espécie

e do clã para a desejável perpetuação da humanidade

e dos apelidos familiares tempestivamente reconhecidos e perfilhados

 

E tragam também

os trajes vários e diversos

e os gestos decididos

das mulheres (re)fundidas com os tempos plúmbeos

dos campos ressequidos das mulheres temperadas

nos tempos insossos dos bairros miseráveis 

das mulheres chefes- de-família

das mulheres mães- de- filho das mulheres

anónimas das nossas ilhas e diásporas

das mulheres desde sempre apalavradas

com a rude simplicidade dos enigmas do destino

das mulheres desde sempre ateando-se

no pranto  e na resignação atadas à  dureza

da busca diária do sustento dos filhos

 

E tragam também

os gestos desalentados

e os trajes puídos das mulheres

desempregadas das mulheres sub-empregadas

das mulheres definhando nas faimo nos seus desvendados

 códigos de frentes de alta intensidade de mão-de-obra

e de muita penúria de esperança das mulherres sobre-exploradas

entre as quatro paredes do dia- a- dia familiar das mulheres

sobre-alimentadas na servidão do serviço doméstico

diariamente desposado nas casas das famílias

abastadas e remediadas das nossas ilhas

das mulheres multiplicando-se na exaustão

do serviço domiciliário diariamente expendido

nas moradias das famílias burguesas

das terras alheias das nossas diásporas

 

E tragam também

os gestos e os trajes esquecidos

das mulheres das tardes (des)afogadas no tédio

das mulheres dos bairros nobres apanhadas pela solidão

e por outras crises existenciais das mulheres dos bairros chiques

armadilhadas pelo spleen e por outras insolúveis altercações

com a  rotina da vida de todos os dias das mais que (in)certas previsões dos horóscopos das cartas das bolas de cristal das mãos estendidas

para os augúrios para os presságios para os prognósticos para as sinas lidas das cartomantes das quiromantes das tarólogas das teólogas das predestinações da sorte e do azar das alongadas precisões dos abalizados diagnósticos e relatórios dos psicanalistas

das graves recomendações dos curandeiros dos exorcismos dos padres confessores e outros peritos da magia branca das obscuras recomendações e instruções  das bruxas da terra dos cordeiros

e de outros mestres da magia negra nossa sincrética

consultados de emergência

e deles dos professorais curandeiros vindos da Costa de África

e das suas enigmáticas encomendações e providências

procuradas com clandestina solicitude  

 

E tragam também

os gestos tímidos e os trajes famintos

das mulheres ainda moças supostamente virgens

exaurindo-se intactas nas ânsias

e nos sonhos  intocados

sob a causticante e imberbe vigília

dos húmidos e lascivos lençóis

 

E tragam também

os traços e os cortes ainda indecisos

dos trajes e dos gestos prematuros

semeando-se sementes prementes no coito

eclodindo enrubescidas na cópula púrpura

das mulheres estudantes e afagos universitários

 

E tragam também

os gestos maliciosos

e os trajes gastos todavia ainda provocantes

das mulheres inquilinas das esquinas solitárias

das mulheres com residência fixa nos becos amaldiçoados

das mulheres moradoras de bares esconsos das mulheres com domicílio conhecido nos bairros de má fama das mulheres com poiso certo nas rixas e nas altercações com chulos rufias polícias delegados de saúde pública clientes pouco abonados parceiros ocasionais de dúbia generosidade das mulheres oradoras nas proficientes interlocuções com as muitas sombras  de outros  fantasmas das ruelas imundas inundadas de nocturnicidade e de outros reconhecíveis lugares de predilecção das mulheres meninas de vida das mulheres mocratas das mulheres putecas das mulheres putéfias das mulheres prostiputas das mulheres prostitutas das mulheres serviçais do sexo outrora disputadas borboletas do riso e do vício depois escanzeladas depois roídas pela miséria e  pelo desmanzelo das mulheres herdeiras de Olívia Varela das mulheres testamenteiras de Xica Doida e de outras antigas princesas das noites murchas das urbes e sub-urbes das nossas  ilhas e diásporas

 

E tragam também

os gestos e os trajes bem costurados

no preçário da sedução e da volúpia

e os caríssimos e luxuriantes acessórios

das mulheres residentes das boîtes das discotecas dos motéis

das pensões dos bares e dos átrios dos hotéis de muitas estrelas

das mulheres acompanhantes de turistas de  homens de negócios

de gestores públicos de políticos de artistas conferencistas e congressistas de traficantes de  assassinos por encomenda e de outros endinheirados e de outros gentios e de outros gentis e de outros manhosos  visitantes

das ilhas

e das suas mulheres ainda quatorzinhas e das suas mulheres marcadas como pixinguinhas e das suas mulheres menininhas de boa vida e das suas mulheres pitangas maduras e das suas mulheres maduras e das suas mulheres sumarentas e das suas mulheres saborosas e das suas mulheres aromáticas e das suas mulheres pecaminosas e das suas mulheres fogueiras e lareiras e das suas mulheres incandescentes nos braseiros

da libido e da luxúria ínsita

na tropical luminosidade das ilhas

e das suas mulheres cúmplices da boémia e da náusea e das suas nunca nauseabundas circunscrições e das suas mulheres de pose pouco moribunda e das suas mulheres de postura pouco furibunda e das suas mulheres de reputação pouco pudibunda e das suas mulheres de aparência assaz meditabunda  velando os trejeitos lascivos

desses singulares repositórios femininos

do desejo e da beleza delas das suas mulheres ardentes

que vêm igualmente atormentando os espíritos e os corpos

tanto dos homens rurais recatados e precavidos como também

dos espavoridos homens das pequenas médias e grandes urbes

das nossas ilhas e diásporas

e espoletando a sua imaginação e as suas muitas morosas paixões

de criaturas másculas quer dizer maiúsculas

na ostentação da sua palavrosa masculinidade

 

E tragam também

todos os demais gestos e trajes

os vulgares os tímidos os desinibidos os possessivos

os comuns os estranhos os inauditos os lésbicos

os generosos os escaldantes os frementes os reluzentes

os tremeluzentes os dormentes os relutantes os concomitantes  

os consabidos os consumistas os consumados

das mulheres mercadoras do prazer e da luxúria

e os seus assumidos acessórios cosmopolitas

de mulheres sucessoras legítimas da Preta Fernanda

também chamando-se também escrevendo-se Fernanda

do Vale também olvidando-se também rememorando-se

no anónimo chamamento islenho de Andreza do Nascimento

das rítmicas ondulações da sua lascívia oitocentista

as suas síncopes e acrobacias as suas escreventes devassas

perorações e devassidões sufragando  todas as imprevisibilidades 

da servidão doméstica  escalando com os pés nus e terrosos com os pés doridos e disformes com os pés rebeldes os pedestais e as pétreas sombras das estátuas por esculpir

galgando  as escadarias dos restaurantes dos palacetes das mansardas

dos salões burgueses dos teatros de ópera dos espectáculos de revista das casas de prazer das suas ancas de batuque e pilão do sôfrego ritmo do seu espírito inquieto vagueando tempestuoso atravessando escrupuloso as arenas do toureio  e da presunção os ringues dos torneios sexuais e dos confrontos da arrogância os botequins dos duelos gastronómicos os entardeceres dos desafios da maledicência as barreiras dos preconceitos classistas racistas das perenes pré-disposições sexistas machistas dos antiquíssimos pré-juízos eurocêntricos reinóis metropolitanos

ainda vigentes acamados

nas delícias do prazer

dos nossos contemporâneos estrangeiros

ainda vigiando acordados

na insónia do exigível remorso

dos nossos conterrâneos ilhéus….

(...)

 

 

Lisboa, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2012

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA

 
 

 

Revista InComunidade (Porto)

 

 

 

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA (CABO VERDE).
Jurista, poeta, ensaísta, analista e comentador radiofónico. Nasceu no sítio de Pombal, Concelho de Santa Catarina, ilha de Santiago, Cabo Verde (1960). Reside actualmente em Lisboa. Licenciado em Direito pela Universidade Karl Marx, de Leipzig, e pós-graduado em Ciências Jurídicas e em Ciências Políticas e Internacionais pela Faculdade de Direito de Lisboa. Desempenhou as funções de técnico superior em vários departamentos governamentais e de Director do Gabinete de Assuntos Jurídicos e Legislação da Secretaria-Geral do Governo. Associado a diversas iniciativas culturais em Cabo Verde, como o Movimento Pró-Cultura (1986), o suplemento cultural Voz di Letra do jornal Voz di Povo (1986-1987) e a revista Pré-Textos; director da revista Fragmentos (1987-1998); co-fundador da Spleen-Edições (1993) e dirigente da Associação de Escritores Cabo-Verdianos (1989-1992/1998). Participação regular em colóquios, em diversos países, como Senegal, Cuba, Bélgica, Brasil, Angola, Portugal, Holanda, Suíça, Moçambique; colaboração assídua em jornais e revistas literárias e jurídicas, com destaque para Fragmentos, Pré-Textos, Direito e Cidadania, Lusografias, A Semana, Liberal-Caboverde. Representado em diferentes antologias poéticas estrangeiras. Organizou Mirabilis – de Veias ao Sol (Antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e O Ano Mágico de 2006 – Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas (2008).
Publicou: À Sombra do Sol, I e II, (1990); Assomada Nocturna (1993), Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005); Orfandade e Funcionalização Político-Ideológica nos Discursos Identitários Cabo-Verdianos (2007), e Praianas (Revisitações do Tempo e da Cidade) (2009). Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).

 

 

© Maria Estela Guedes
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