REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 31 | setembro | 2012

 
 

 

 

 

 

JORGE VELHOTE

O mercado dos pássaros

 

                                                                   Para Ruy Duarte de Carvalho 
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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De vez em quando as palavras dos mortos e os pensamentos
dos vivos (se é que uns estariam vivos e os outros mortos) coincidem
.
Julio Cortázar

   
 

1.

A fronteira pára no seu exílio ou comunhão enquanto os mortos

desterram as palavras pelos seus prantos antigos.

Conspiram ao que urge vir para que naveguem

fecundas nas asas nocturnas dos anjos ou

no tropel da respiração. E aí ficam

na sua eternidade ou combustão em tarefa a pulso

recolhida. Nelas se deduzem as substâncias

do assédio. O que no espírito se ergue

como alicerce ou solidão para que o ritmo

seja o que um rio é em inércia e dádiva.

Mas o espanto nele fica e se redime apenas

aguardando do momento o instante donde se deduz

o que em espírito no papel se enruga ou desfalece.

Como se o mundo em peso adobasse a lenta língua

onde acusticamente os versos os mortos especulam.

Contundente se revela o mundo. O milagre do lugar embora

se desvende em luto o enigma ou presunção. O lugar é esse

instante que corrompe a alma e a desvela apenas para ser

no momento energia ajuste ou ignição.

E de novo em vestígios a morte actualiza a luz. O limbo

subtil como se um animal de dentro do negrume

imprevisto viesse brilhar arguto na passagem.

É uma força indeterminada na certeza. Quase gravidade

como se um eixo de penúria explícita fosse palpitante

e adensasse em silêncio o esquecimento. O que convoca

e conduz tudo em intenso ardor inteligente. Ou dor

iminente como um enigma indecifrável. Ou hausto

oculto desabrigando do sangue o que se releva

profundo de repente e veloz.

2.

Assim a sombra se inflama e os mortos se orientam

em deslumbres subtis e matinais se abrigam

ao poderio solar. Escavam onde a luz se entranha.

Onde a energia opera milagres ou o mapa

distâncias. A palavra casa deduz o que reina e do vazio

se expurga. Assim a sombra é perene na sua tensão

ou arco pulsante. Como um ímpeto que deflagra

oficiante no olhar e se amplia.

É um eco que o vento cumpre e onde

os brilhos acolhem a evidência crepuscular.

No seu destino a luz gera penumbras. Caminhos

onde se chega em ritmo estreito ou circunscrita

felicidade. É uma claridade de relevos altos

como o espírito que joga a descobrir-se nos seus

retalhos ou contraluz. Ou no seu âmago à vista

descarnado como o mundo se infinita.

São os mortos que gravitam em busca das palavras.

Só os mortos as pensam em língua audível ou destreza.

Como nos átrios do negrume as sombras ou

o vento. Pulsam em enigmas

e no entanto arborizam. Buscam a saliva

fecunda ou resistência irredutível.

Recolhem-se nos alvéolos pulmonares

em ritmo e doença eléctrica. Abrem-se para que os dedos

as cumpram em sentido e cascata.

Acolhem a exactidão única da transparência. O que se inflama

dorindo e transita na textura volante ou

no inédito lugar que principia no naufrágio

de um olhar.

3.

Devastam desde longe e na intimidade se abrigam crepusculares

ou búzios. São como massas de ar. Como animais

nómadas em seus cativeiros. Em uso deduzem

o que os músculos manobram. Edificam

em sombras para que os mortos se abriguem.

Ou morram ainda um pouco mais. Para que vejam

como se reduz a altura entre os dedos. A frequência

de seu uso ou mutilação. Comparecem

em fundamento na sua arcadura

e timbre tensos. Ilidem o verbo

em atropelo e cenário. Se chegam

ou regressam de seus impactos ou doação.

Na alma se fundam em relâmpagos e silêncio

cavo ou convictos arcanos.

E os mortos em seu júbilo invisível alicerçam

estranhos recursos. Artérias luminescentes. Ossos

cronológicos ou compêndios. E sucumbem

pelo que ascendem e exultam arrebatados

o que transpondo visível em leitura

condensam. Púlpito ou pousada ou singular

vento. E ao ar devolvem fremente

o que de si é uso ou sobrescrito e resistência.

É um caminho surdo que ergue a razão altiva e

a visão alcança em penúria e oração. O visível

como se acendida luz fosse e peregrino na lenta

desolação ou fundo mar. Na vastidão comparece

o desastre amplificante. E o mundo como terra

arável ou poema talha em nitidez os negros

nomes da matéria ou pensamento.

4.

Uma pedra de luz e uso táctil atenta a nudez. Como a morte

dos mortos irradia em sagrado e oculta nostalgia. No

recolhimento se contagia a distância. O assombro

da claridade ou escuridão. Um pasmo inscrito

que satura o silêncio indizível. O nome agudo

do dizer e na cegueira. Como nas trevas a mão

é alavanca ou bisturi. É uma tarefa decapante

como a dádiva ou paciência. Escutar no inaudível

o lume da sombra o que anoitece submisso ou

resplandece em si mesmo ou naufraga. E no tumulto

da tristeza é perspicaz a brisa surda ou a noite

apenas. Como um súbito animal ou vestígio

singular. Nessa intimidade o gelo brilha. Traz

o fenómeno da lentidão. O aparecimento que rasga

no espírito e padece na lucidez. Ou turbulência.

Os mortos extinguem o negrume da penumbra

como ofício. O seu vagar retém a imobilidade

como se nos bosques a íntima luz ou inscrita

solidão e na mágoa a pauta em júbilo. É um deserto

decorrido o tempo. E no vento insonoro

se destacam as sementes em consumo ou

pensamento. Um rumor piedoso e mais antigo

escala ainda o que ao alto limita a luminosidade.

É essa luz que empolga e espanta o pulso. Ergue em astro

o que o gume das aves expande. Agudíssimo. Atento

timbre que resgata o desgaste da luz transitiva como se

amanhecesse intemporal e instrumenta. Tudo regressa

com a luz ou íntima consagração incremente. Com a luz

que os relâmpagos maquinam felizes.

 

 

Revista InComunidade (Porto)

 

 

 

 

JORGE VELHOTE (PORTUGAL, PORTO, 1954).
Publicação de poesia em livros, antologias, revistas, albuns, catálogos e jornais em Portugal, Espanha, França, Itália, Brasil, Argentina, México, Uruguai, Colômbia, Estados Unidos, Turquia, Cabo Verde. Produziu e realizou Aftershave um programa radiofónico sobre jazz (83/87). Criador e produtor do programa QUINTAS DE LEITURA Teatro do Campo Alegre/Porto (2000/01). Organizador e Produtor do Festival de Poesia e da Bienal de Arte Contemporânea de Vila Nova de Foz Côa.
Editou: A PAREDE COMO PÁGINA – EXPOSIÇÃO DE POESIA E PINTURA, com Carlos Falcão, Jorge Afonso e Paula Costa Alves, Galeria Alvarez, Porto, 1979;  ATRITO DE GOTAS, com José Carlos Soares, 1982; OS SINAIS PRÓXIMOS DA CERTEZA, 1983; HERMENEUTICAL STUDIES, Limiar, 1985; DOURO, UM PERCURSO DE SEGREDOS, com João Machado, João Paulo Sotto Mayor, José Braga-Amaral, Instituto da Navegabilidade do Douro, 2000; NA LIBERDADE, Colectânea de Poesia Comemorativa dos 30 Anos do 25 Abril, com Nicolau Saião e Nuno Rebocho, Graça Editores, 2004; OS MAPAS SEM FRONTEIRAS SUFOCAM OS LUGARES, com fotografias de João Paulo Sotto Mayor, 2004; MÁQUINA DE RELÂMPAGOS, com fotografias de João Paulo Sotto Mayor, Edições Afrontamento, 2005; PELE, sobre fotografias de Miguel Louro in nussun, 2009;

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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