REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 31 | setembro | 2012

 
 

 

 

CASTRO GUEDES

Estrada de Damasco

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Diante de mim a garrafa vazia. Olho-a com compaixão da minha noite. Olho melhor: há outra igualmente no chão. Sim, litro e meio de um óptimo maduro tinto. Mas para o fim já pouco apreciado. Foi tanto, tão desmedido, como eu, que o fim da vida sabe a pouco. Um sabor que sabe pouco pelo excesso. O vinho e a vida querem-se na medida certa. A menos não se toma o paladar, a mais perde-se o paladar.

Mas terá sido mesmo demais? Ou faltou-lhe um pedaço de broa rude a acompanhar? Não me lembro. Eu sei que rilhei qualquer coisa enquanto o bebia. Seria absurdamente um chocolate para estragar os taninos?

Olho outra vez a garrafa: descompreendo-me; ela está cheia, rolha ao lado, mas não foi bebida. Só cheirei o vinho. Quem a bebeu não fui eu, mas o outro que passa por mim de madrugada a dizer-me adeus. Pois, o que me levou a outra que estava no chão. E essa? Bebia-a? Ou nem foi aberta para respirar?

Deve ter ficado arrolhada como eu, sem contacto com o ar que faz abrir a vida, a cor, o odor. É natural: eu nunca gostei de vinho, que disparate. Gostar, gostar mesmo, foi das garrafas. Abri-las. Exactamente como o coice de uma espingarda calibre12. Caçava por isso. Para sentir o coice e o cheiro a pólvora a misturar-se com o orvalho libertando o azoto da terra húmida. Por fim já nem atirava a lebres. Era a garrafas. De Douro, do Alentejo não. Será bom, mas pesa, como as searas infinitas. O líquido espesso do vinho do Douro, quando o vidro estilhaça, é mais soberbo. Como se me cortassem as veias. Ali fico eu, garrafa que sou, a esvair-me.

Mas porque está então defronte de mim outra vez a garrafa vazia, mas inteira? Não é um sonho. Quando é tenho um truque para o descobrir e acordar se me incomoda. E a incerteza da garrafa incomoda-me mesmo. Não é um sonho. Quem me dera! Talvez sejam os impulsos eléctricos das sinapses a tergiversarem. Com a idade ou com a bebedeira da vida. Corria-a muito depressa. Tão depressa que nem dava tempo de passar pelas pipas do vinho novo. Destilava antes de fermentar. E eu trasfegava sentimentos como quem agita um Porto Velho: estupidez!

Mas tirando isso nunca houve garrafa nenhuma: nem cheia, nem vazia, diante de mim. Só eu. Eu e o vinho que se derrama sobre mim como um baptismo anestésico. Ébrio de palavras. Sobretudo aquelas que não disse. Sequer a mim mesmo. Nem a quem amei, se é que pude amar alguém de forma explícita. 

Pai, pai, porque me abandonaste?

Eu não sabia nada do que dizias. Nem nunca vou saber. Terei sempre cinco anos sentado na borda da cama, a soluçar o medo. Mas pela saudade te perdoei. A mim é que não. Carrego tantas garrafas de vinho e cacos dos seus vidros enterrados na fronte, que nunca chegarei a atravessar a Estrada de Damasco.

 

 

Revista InComunidade (Porto)

 

 

 

 

(Jorge) Castro Guedes (Portugal)
Encenador, natural do porto, nascido em 1954. fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93). encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses. director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo). professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril. autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação. acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).

castroguedes9@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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