Diante de mim a garrafa
vazia. Olho-a com compaixão da minha noite. Olho melhor: há outra
igualmente no chão. Sim, litro e meio de um óptimo maduro tinto. Mas
para o fim já pouco apreciado. Foi tanto, tão desmedido, como eu, que o
fim da vida sabe a pouco. Um sabor que sabe pouco pelo excesso. O vinho
e a vida querem-se na medida certa. A menos não se toma o paladar, a
mais perde-se o paladar.
Mas terá sido mesmo
demais? Ou faltou-lhe um pedaço de broa rude a acompanhar? Não me
lembro. Eu sei que rilhei qualquer coisa enquanto o bebia. Seria
absurdamente um chocolate para estragar os taninos?
Olho outra vez a
garrafa: descompreendo-me; ela está cheia, rolha ao lado, mas não
foi bebida. Só cheirei o vinho. Quem a bebeu não fui eu, mas o outro que
passa por mim de madrugada a dizer-me adeus. Pois, o que me levou a
outra que estava no chão. E essa? Bebia-a? Ou nem foi aberta para
respirar?
Deve ter ficado
arrolhada como eu, sem contacto com o ar que faz abrir a vida, a cor, o
odor. É natural: eu nunca gostei de vinho, que disparate. Gostar, gostar
mesmo, foi das garrafas. Abri-las. Exactamente como o coice de uma
espingarda calibre12. Caçava por isso. Para sentir o coice e o cheiro a
pólvora a misturar-se com o orvalho libertando o azoto da terra húmida.
Por fim já nem atirava a lebres. Era a garrafas. De Douro, do Alentejo
não. Será bom, mas pesa, como as searas infinitas. O líquido espesso do
vinho do Douro, quando o vidro estilhaça, é mais soberbo. Como se me
cortassem as veias. Ali fico eu, garrafa que sou, a esvair-me.
Mas porque está então
defronte de mim outra vez a garrafa vazia, mas inteira? Não é um sonho.
Quando é tenho um truque para o descobrir e acordar se me incomoda. E a
incerteza da garrafa incomoda-me mesmo. Não é um sonho. Quem me dera!
Talvez sejam os impulsos eléctricos das sinapses a tergiversarem. Com a
idade ou com a bebedeira da vida. Corria-a muito depressa. Tão depressa
que nem dava tempo de passar pelas pipas do vinho novo. Destilava antes
de fermentar. E eu trasfegava sentimentos como quem agita um Porto
Velho: estupidez!
Mas tirando isso nunca
houve garrafa nenhuma: nem cheia, nem vazia, diante de mim. Só eu. Eu e
o vinho que se derrama sobre mim como um baptismo anestésico. Ébrio de
palavras. Sobretudo aquelas que não disse. Sequer a mim mesmo. Nem a
quem amei, se é que pude amar alguém de forma explícita.
Pai, pai, porque me
abandonaste?
Eu não sabia nada do que
dizias. Nem nunca vou saber. Terei sempre cinco anos sentado na borda da
cama, a soluçar o medo. Mas pela saudade te perdoei. A mim é que não.
Carrego tantas garrafas de vinho e cacos dos seus vidros enterrados na
fronte, que nunca chegarei a atravessar a Estrada de Damasco. |