Após o doloroso processo de lutas anticoloniais e a
constituição dos estados independentes africanos durante o século XX,
acompanha-se com imenso interesse a supressão das carências e as
tentativas de desenvolvimento com os parcos recursos financeiros dessas
nações em meio a políticas externas – muitas vezes com apoio interno –
nem sempre favoráveis ao bem de seus povos. O caso de Angola não foi
diferente, principalmente no pós-independência, em razão da longa guerra
civil que desestabilizou o país até a reconstrução proporcionada pelo
acordo de paz em 2002.
Nesse conturbado cenário angolano a literatura e seus
agentes continuaram a desenvolver-se, configurando, já no primeiro
decênio deste século, uma elogiável consolidação e amadurecimento de
nomes revelados a partir dos anos 1980. Trata-se de uma geração de
escritores nascida no período de 1955-1965 que ficou conhecida como a
geração das incertezas, como assim define o crítico literário e
também poeta Luis Kandjimbo, em virtude de “na obra de todos eles, os
temas mencionados emergem de uma profunda experiência geracional
avassaladora e catastrófica, em que pesa a revolução, a guerra, a
intolerância política” (SECCO, 2003, p. 189).
Nesse período amplia-se a heterogeneidade da poesia
angolana, novas estéticas são apresentadas, experiências formais
tornam-se constantes e reformulações temáticas passam a ser frequentes,
aprofundando o caminho iniciado por nomes como Arlindo Barbeitos, David
Mestre e Ruy Duarte de Carvalho na década de 1970 e deixando para o
registro da História o período de engajamento político explícito da
literatura angolana. Para Carmen Lucia Tindó Secco, a nova geração
apresenta um
“novo lirismo, reagindo a
esse desencanto dominante no contexto social do país, abandona a utopia
do nós coletivo e o engajamento revolucionário da poesia de combate.
Funda uma poesis que dá vazão ao amor e às emoções individuais,
assumindo um viés existencial e uma dicção universalista. Sob o signo de
Eros, os poetas buscam exorcizar a morte e a dor. Operando uma revolução
no âmago da linguagem, levam às últimas conseqüências a metaconsciência
poética já praticada, desde os anos 70, por alguns dos poetas de Angola.
(...) Ao suspender a prática cantalutista, lança na consciência dos
leitores imagens do mundo mais humanas do que as tecidas pelas
ideologias, desencadeando o desejo por uma vida mais autêntica e livre,
pela qual vale a pena lutar” (SECCO, 2003, p. 189).
Depara-se hoje com uma produção comprometida com a
depuração da linguagem poética, demonstrando um nível estético maduro e
louvável, diversificado e pungente, configurando seus agentes em
verdadeiros artífices da poesia em língua portuguesa. São os casos de
José Luis Mendonça, João Maimona, João Tala e Trajanno Nankhova
Trajanno. Este, talvez um caso singular na trajetória literária angolana
devido às especificidades de sua poeisis, constatação atingida após a
leitura do surpreendente Caminhos da Mente (Luanda: União dos
Escritores Angolanos, 2005).
Jordão Augusto Trajanno nasceu em Luanda a 12 de
Dezembro de 1958 e utiliza o nome literário Trajanno Nankhova Trajanno.
Sua obra divide-se em poesia e textos para o teatro. Caminhos da
Mente é o seu quinto livro de poemas.
Caminhos da Mente
reúne um conjunto de poemas de extrema complexidade, intenso
estranhamento e plena fascinação proporcionada ao leitor. Dividido
rigorosamente em dez partes que são intituladas “Incidências” pelo
poeta, cada uma com sete poemas acrescidos de dez “pré-poemas”, assim
denominados por Ana de Sá em prefácio do livro. Cada “Incidência”
apresenta títulos sugestivos e intrigantes a chamar atenção do leitor,
pois “uma nova visão de mundo está em curso”, assim afirma o sujeito
lírico como se quisesse alertar o leitor. Dessa maneira, são
apresentados títulos que desestabilizam as retinas, tais como “Asterismo
Sinfónico do Silêncio”, “Luz Algébrica da Alva”, “Solenidade Telúrica da
Flor” e “Composto Sistólico e Diastólico do Passo”. Nomes que mexem com
os sentidos, demonstram o intenso labor do poeta em busca da lapidação
da palavra e o pleno compromisso com o seu ofício, a tessitura da
poesia:
em pintura desnuda e
feminina a pastar
de ternura em ternura
a cidade pousa nua de verso
em verso
a mão presente no hálito
cósmico da renovação do reino
atitude mental das chamas e
dos lábios em chamas
nos escaninhos dos oceanos
continuo a compor
com
traço e suor do rosto a aura dos espelhos”
(p. 94).
Nessas “incidências”, as temáticas passam por uma
espiritualidade peculiar, analogias a artes como a pintura e a música, o
ar – elemento da natureza – encontra-se em diversos momentos em signos
cósmicos, das aves e do voo, assim como a constante presença do universo
onírico, a realização do sonho como forma de anunciar um novo momento
para Angola, o país do sujeito lírico, após o acordo de paz: “nos
eternos caminhos da mente/ minha pátria é um esboço bucólico aberto ao
cosmos” (p. 46). Agora, o sujeito lírico se quer livre para sonhar,
recriar a união de seus pares, reconfigurar os sentidos, para isso a
poesia será a matriz e o motriz para desenlaçar o verbo e trazer uma
“nova aurora semântica” (p. 28), ampliando e reformulando os sentidos
das palavras.
Para o novo tempo da pátria anunciado pelo sujeito
lírico, necessária a metaforização do discurso “nas palavras marginais
que é preciso refazer”, por isso metáforas díspares e dissonantes e o
uso do imperativo exigem sentidos aguçados:
no côncavo do sino uma
melodia e é preciso escutar
no luar da adolescência
uma virgem utopia inquieta
que é preciso seduzir
na sombra de todo cálice um
encanto estranho encanto
e é preciso decantar
uma estátua de silêncio
audível na ausência das vozes
que é
preciso perceber
(p. 26)
O sujeito lírico na maior parte dos poemas apresenta-se
na primeira pessoa do singular, percebe-se também a utilização do verso
livre, das rimas internas e da ausência de pontuação, contribuindo para
a desestabilização da fácil compreensão diante de inusitadas imagens que
aliam música, sonho e aves; imagens possíveis pelo vasto universo do
verbo poético, elaborador de instrumentos para a sinfonia do silêncio:
persegue-me esdrúxula
partitura de um sonho
dédalo que se encanta e
desencanta
a imagem de um bolo de
aniversário infantil me afoita
hei-de pedir ao anunciante
das chuvas
uma guitarra-eólia de nove
cordas entregue às aves
tenho que governar o
caminho de meus sons após as aves (...)
- hei-de caminhar!
tornar-me verdadeira mente
parecido a mim
pelos espaços vazios sorrir
somente da prédica proferida
pelas
aves
(p. 25)
No ilimitado “horizonte verbal” amplificado pela
mão-asa do sujeito lírico que propõe o retorno à infância em “Voz
Alvacenta do Gesto” (Segunda Incidência), o aprendizado para um novo
mundo reformulado na poesia: “permito-me chegar bem à beira da infância/
e concebo um exército a sorrir/ aprendo com o mar e o rio a distinguir a
voz/ da foz em encontro com o verso/ a irrigar o horto e o paraíso a um
passo da morte e do siso” (p. 31).
A “transcendência humana dos sons (...) em instante
onírico” (p. 33) transfigurará a nova pátria, pois “amanhã o movimento
da alva será outro”, confirmará a mudança e os angolanos unidos em um só
ideal: “algures alguém pensa em mim neste instante/ os passos rejeitam a
solidão” (p. 33). Percebemos a projeção no futuro, de uma nova era, de
um tom épico. Ana de Sá discorre muito bem acerca do caráter épico dos
poemas: “Os verbos conjugados preferencialmente no futuro conferem um
valor projectivo à narração de uma Pátria e dos seus integrantes,
fundada num passado e, em especial, num desejo de futuro em paz” (p.
16).
O sujeito lírico anseia um novo cotidiano, contudo, as
décadas de dor e sofrimento fratricida deixam marcas indeléveis na
memória. Apesar da esperança e da constituição de “formas atrevidas
formas irregulares” para cicatrizar as feridas do outrora, o leitor
depara-se com a insegurança na repetição da condicional “talvez”, assim
como a apreensão de que os erros do passado sejam retomados e a
incerteza com o porvir são materializados na poesia: “o dia evoca formas
atrevidas formas irregulares/ ao amanhecer talvez ao amanhecer bocas
estilizadas cantem/ ao abrigo do sorriso/ talvez ao amanhecer
sintetizemos a alva/ na mão a esperança/ sobre a dança é uma canoa
ximbicada pelo tempo/ - talvez ao amanhecer” (p. 35).
Entretanto, a utopia encontra seu espaço na poesia, “a
brisa reinventa estações (...)/ os rios continuam num caminho igual e
renovado/ as asas novamente acreditam na força humana do mel” (p. 36) e
“agora que floresce o sol na palma da mão de todas as mãos/ (...) trago
comigo para este novo abrigo células de um lúcido/ paraíso” (p. 44),
ideias conjuntas para uma pátria preparando-se para reconstrução, “as
minhas e as suas todas as nossas palavras numa única/ marcha de cruz”
(p. 45). Ou seja, a voz individual do sujeito lírico conotada à voz
coletiva dos angolanos, “vozes anônimas falam na minha voz” (p. 37), ou
pelo menos aspira, “vozes anônimas ‘talvez não tanto’ falam na minha
voz” (p. 37).
A incerteza com o futuro gera inquietação. O sujeito
lírico recorrerá às aves e ao desejo de voar. Como voar não pertence à
condição física humana, cabe o mergulho ao âmago do ser para tentar
realizar o impossível embarcando em “outra nave”, a nave da palavra
poética, por fim e ao cabo, libertadora, e assim superar sua angústia na
gradação do poema “Luz Algébrica da Alva – 2ª indução”:
confrange-me não poder
deslindar a prece das aves
enquanto voam cada rosa é
uma fonte de brisa
em cada brisa há um
candelabro há um amplexo
um baile de vozes um cálice
volúvel
um olhar esdrúxulo
uma atitude de exílio
na certeza libida da
incerteza libida (...)
sem destino outra viagem
outra paisagem em outra nave
sigo
ansioso o destino das aves” (p. 73).
Sob o signo da emoção e com a preocupação ininterrupta
de renovar a linguagem, a poesia de Trajanno Nankhova Trajanno demonstra
um cariz de extremo intimismo, realizando a utopia na tessitura poética,
transformando “palavras amargas/ em devaneios que se adocicam/ na
estranha relação entre a chuva e o chão” (p. 91). O desassossego do
sujeito lírico percorre os diversos caminhos da metapoética que levam ao
interior do ser:
sobre útil linha
longitudinal segue a imaginação
da palma da mão
reconheço a luz reconheço o
olor recomeço o passo
no altar da moda modelar
outra moda procuro talhar
esta mágica sem par (...)
que abraça a poesia vê-se a
cidade a caminhar na gramática
sensual dos sons a irrigar
o cravo lilás do ventre
onde a saudade amou a
solidão por plácida compreensão à flor
sinto-me distante da
primeira meta
sinto-me no lugar bendito
onde me reconheço
abre-se inesperada paisagem
da mente
percebo
estar a usar o mesmo caminho que me leva a mim
(p. 96).
A diferenciada poesia deste sujeito lírico configura-se
em uma intensa viagem intimista que busca associar a sua inquietação com
a do país, ambos a procura do melhor caminho para o novo tempo de paz:
“todos os meus caminhos seguem o desvelo diurno do caminho/ todos os
meus caminhos têm fim/ em cada sombra perfume e luz em cada asa tétrica/
todos os meus caminhos sonham tornarem-se um caminho” (p. 68).
Com a colaboração de imagens insólitas, o sujeito
lírico percorre o universo onírico, esparge o simbolismo voraz de sua
poesia em metáforas impactantes para reencontrar o caminho do país na
harmonia entre os homens: “o instante onírico de pátria é um caminho
minúsculo/ por percorrer na insónia/ é uma mansidão de ideias a navegar
na flor humana da voz/ a primeira água matinal destes olhos/ é fluvial
rio materno de um País/ reencontrado no compasso sistólico e diástólico
do passo”
(p.
118).
Por fim, constatamos após a leitura de Caminhos da
Mente que a arrebatadora e singular poesia de Trajanno Nankhova
Trajanno ainda é prenhe para novas imagens, reformulações
estético-formais, renovações semânticas, sobretudo pela excelência
alcançada a poesia de Trajanno apresenta novos paradigmas à literatura
angolana, mostrando o quanto ainda é fecundo o caminho das letras e o
quanto pode ser infinito o caminho da paz.
em algum instante lá mais
adiante hei-de embalar
meu presente no auxílio dos
sons na formação da palavra
na angústia da mão que
estrutura o incontido
no sonho
o sino devolve o signo e a
sina axiluanda à volta da lua
insistente mente de mel
quase como herdeiro
de herói
uma mão acena outra mão
um olhar afaga outro olhar
um hino mora no olhar
catálogo exposto de pauta
aberta em oferenda à kianda
pranto e fruta fruta e
encanto pela autópsia do pranto
aos pés do oceano no calor
das cores
na argamassa da promessa e
na sublimidade da colheita
em algum
instante lá mais adiante verei o sol. (p. 88) |