REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 
 

 

 

NICOLAU SAIÃO

Para purgar azias civilizacionais - 

Alguns  poemas de índios norte-americanos seguidos de alguns poemas do eterno feminino

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  
 
 
 
 
 

Albert Einstein – que era alguém que sabia o que dizia e como o dizia - referiu num texto notável (“Como eu vejo o Mundo”) - que a nossa civilização, por obra e graça duns quantos fabianos, estava a sucumbir ao cinismo e à pseudo-sofisticação.

Parece-me que esse Homem tinha razão. 

O cinismo e a burla interior, aliás, tanto podem partir da acção de homens públicos desqualificados como de operadores intelectuais que tentam dar relevo a gente sem ética para servir os seus espúrios manejos de falsificadores de relacionamentos societários.

São todos do mesmo jaez e ainda que ajam em diferentes áreas fazem parte da mesma armadilha civilizacional.

Ora, para os confrades e amigos sentirem o contacto com uma dada realidade específica, aqui lhes deixamos poemas feitos por gente profundamente ligada à natureza e que infelizmente soube à própria custa o que era ser alvo de videirinhos e de genocidas interiores e exteriores.

Mas obviamente não só os índios foram, durante muito tempo, espiritual e materialmente afastados da salutar norma civil e cidadã através de manejos que alguns controladores estabeleceram de maneira insidiosa para melhor acautelarem os pretensos direitos de domínio, que capturaram e que tentam sempre imperativamente lhes caibam.

Para além de os homens (na sua parte de qualificação relacional) sofrerem os embates da subalternização provocada por organismos de mando (serem, por exemplo, forçados a participar em escaramuças e guerras mesmo que o não queiram), também as mulheres têm sido (e em grande parte continuam a ser) com frequência abusadas nos seus direitos específicos mormente quando, mediante uma insidiosa “lavagem ao cérebro” até pseudo-educacional a que muitas não resistem, se lhes torce a condição de parte indispensável no binómio homem-mulher que fundamenta o percurso próprio no mundo dos afectos. 

Isto para já não falarmos nos casos limites - que devem cair nos domínios do foro criminal pois são verdadeiros atentados à existência salutar – perpetrados em países ou comunidades norteadas por  pretensas normas “religiosas e culturais” que não são mais que políticas de controle abusivo.

Os poemas  que aqui se deixam são uma celebração desses dois mundos.

 

  Poemas índios
 

 

 
 

 Homenagem a Sitting-Bull, ns

 
 

 

Todo o sudoeste é uma casa

Feita de penumbra. Foi feita de pólen

E de chuva. A terra é antiga e durará

Para sempre. Há muitas cores nas colinas

E na pradaria e uma vegetação sombria

Cobre a montanha ao longe. A terra é fértil e forte

E a beleza enche tudo à nossa volta.

 

                                                           (Pueblos)

 

 

Saiu a lua, branca como a folha do machado

E o meu machado é uma lua pequena

O sangue do alce brotará sob a lua

Unirá a lua grande e a lua pequena

E o fogo da vida será como um sol

No coração dos caçadores.

 

Machado, agradeço-te o fogo da vida

Alce, agradeço-te o fogo da lua

Da grande e da pequena lua

Vê que vais viver para sempre no nosso coração

E serás o sol e as pequenas luas

Grandes como o fogo que circula

No interior da floresta.

 

                                                    (Ojibway/Chipewa)

 

 

Somos as estrelas, entoando

Um canto com a nossa luz.

Somos os pássaros de fogo

Voando pelos espaços.

O nosso brilho é uma voz

Que traça o caminho aos espíritos

Para que eles possam passar.

Entre nós três caçadores

Procuram caçar um urso.

Nunca houve tempo algum

Em que eles o não caçassem.

Do alto olhamos os montes

E é esta a canção das estrelas.

 

                                                 (Algonquins)

 

 

No tempo da morte

Quando eu vi que a morte me procurava

Fiquei espantado. Tudo se destroçava.

A minha casa

Tristemente tive de a deixar. Olhei para longe

Enviei o meu espírito para norte

Para sul, leste e oeste, tentando escapar à morte.

Mas nenhum lugar encontrei

Já não havia caminho de fuga.

                                                                 (Luiseño)

                                                                                       Trad. Ns

 

   Do eterno feminino
   
 
 
 

 

  Madrugada
 

 

No interior a polpa: um nó convulsamente

preso na carne feita para amar

No exterior partículas

tão exactas e puras como um dia. No depois das paredes

nesse ar que se dissipa

nesse negrume fixo e já disperso

- para sempre encontrado -

o clarão que nos une e que nos leva

entre as horas e os tempos, entre vozes que findam.

 

A cor o mundo o nome

eternamente nossos

 

  Magnólias
 

 

Naquela terra não havia magnólias. À beira dos caminhos

nos jardins e nos pequenos vasos de flores dentro das casas

as mulheres e os floristas cultivavam aspidistras

rosas-chá, malmequeres e pequenos bolbos de tulipas vermelhas.

Um namorado, certa vez, colocou na botoeira um girassol.

Meninas dos colégios assustavam-se e, correndo pelos parques

faziam esvoaçar contra a luz candente da tarde pequenas flores campestres.

 

Então, um dia, apareceu na cidade um hortelão

que num pequeno cesto tinha um pano multicolor

sobre algo que não se conhecia.

 

Uma jovem destacou-se de entre os demais e disse-lhe

qualquer coisa em voz sumida. E o hortelão

olhou-a longamente.

E depois principiou a andar devagarinho.

E na rua começou a espalhar-se uma penumbra que de repente

todos perceberam que iria doravante ficar ali para sempre.   

 

  Dois cêntimos de amor SMS
 

 

Dois cêntimos, ou seja: quatro escudos

No tempo das luzes sobre as casas

E das árvores   apenas com o conhecimento de quem se ia

Quase para sempre -

Um pacotinho de rebuçados dos de açúcar e anis,

Duas mãos cheia de ervilhanas,

Três mãos de pevides,

Dois selos para cartas vulgares ou especiosas

Uma esmola pelos que lá se tinham,

Três maçãs,

Meia hora ao bilhar,

Meia hora de ping-pong,

Quatro carteirinhas de bonecos da bola,

Uma vela para alumiar mortos e vivos.

 

Não dá contudo para mandar uma mensagem.

Mas se desse que poderia obter-se?

Um olhar? Um trejeito? Um começo de frase?

Uma palavra encantada e tão terrena?

Um “e eu também”? Um “mas” seguido de um silêncio interrogativo?

Ou um simples beijo luminescente e natural?

 

Ou nada disto – apenas um suspiro, um resto de respiração?

 

Como findar o poema? Com a mão posta

No teu cabelo? Ou com um olhar que se recusa a partir?

Que dois cêntimos são tão pouco.

Que dois cêntimos são tanto.

 

Assim sendo, eu te digo com uma voz antiga

E feita agora mesmo (pois que vozes não há feitas

A não ser quando se trocam os tempos

Contra o fluir do tempo, puros e imarcescíveis):

 

Dou-te dos meus rebuçados

Dou-te um selo para que me escrevas

Dou-te ervilhanas, as mais belas que tiver

Um pedaço de sorriso

A melhor maçã

O meu mais doce beijo para que a amargura não nos fira

 

Com o seu silencio e a sua luz que fulmina.

 

  Poema
 

 

Uma coisa pequena

quase inútil, afeiçoada no dia

tão vaga na noite

afastada nas horas do mundo

calada      porque não mais

que objecto achado algures.

 

Além do elemento vegetal

para todos os anos

como diminuto utensílio

só para ser olhado

nem sequer pensado

De só ser visto

 

pelos olhos amados.

 

  Anunciação
 

 

As mulheres do vento   parado como um planeta extinto

as mulheres doentes   as mulheres que cantam com surpresa

o seu vestido estranho como uma renda   como uma absurda mancha

as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

 

entre mim e o céu

 

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

 

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante

ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios

Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos

junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando

estremecendo como uma pétala sobre a água

Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis

escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza

Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval

mulheres de pernas como lírios rosados

andando ao longo duma estrada francesa

as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

 

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias

a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos

a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

 

Dizei-me mulheres  onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou

na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra

Vós sois o sustento dos pontos cardeais

 

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste

e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda

o fumo espalhado no parque abandonado

os olhos tranquilos frios

A rua solitariamente sob a noite de Junho

e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

 

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura

à luz frouxa da manhã   e o frio subindo até às portas como um animal a morrer.

 

  Voz de amor
 

 

Não te direi poemas e sim vulgares palavras

- como café, cadeira, naco de pão, um copo

de água para refrescar os minutos

ou “cuidado com o carro” ou “que te deu?” ou ainda

“não estejas triste, está aqui a minha mão”. Palavras

com que se fazem os poemas mas agora só presas

ao natural de um dia, ao natural do tempo

ao natural de quem fala com as palavras todas.

Palavras como “pena”, como “chuva” ou então “já é noite!”

e “o dia foi tão rápido”, palavras que irão cair

dentro de um bolso, no coração fendido, nos olhos perdidos

até na música que reboa dentro de um peito ausente

palavras seja de perdão seja de febre, palavras

apenas sons sobre a angústia da tarde. E a palavra “alegria”

e a palavra “segredo”

e aquelas palavras que se não dizem ou se dizem

quando as palavras findam por já não precisarem

senão de silêncio entre duas bocas que serenamente se calam.

Sim, e as palavras desaparecidas

e as que não viveram

e as que saudamos como companheiras de viagem

que reconhecemos e com quem trocamos um olhar

porque as palavras sabem esperar no escuro

e é nesse escuro que aguardam o seu momento

palavras breves

que nos amaram por fora de nós

que nos conhecem

que sempre nos haverão de conhecer

 

palavras como “ontem”

como “depois”

como “sempre”

 

palavras que já não estão em nós

pois existem em nossa volta

são o nosso ar e o nosso sangue

 

o nosso momento infinito.

 

  Solenidade
 

 

Porque me pedes o que não tenho

Rosas aos quilos, nuvens no mar

Um comboio louco p’los campos fora

A suspirar  a transpirar

 

Porque me mostras coisas tão belas

Um anjo cego sobre um altar

Um cantor surdo na  passerelle

A suspirar  a transpirar

 

Porque me dizes coisas profundas

Um som de flauta para encantar

Um tiro no peito dum marinheiro

A suspirar  a transpirar

 

Porque me dás quarenta beijos

E uma imagem subliminar

E um pontapé no baixo ventre

A suspirar   a transpirar

 

Porque me assustas  porque me espantas

Porque me fazes admirar

Os deuses que andam nas avenidas

A suspirar  a transpirar

 

Só sei que tenho a voz aflita

De me rir tanto  de protestar

Por me obrigares a andar aos tombos

A transpirar  a suspirar.

 

  Fashion
 

 

  Em todo o tempo as há, mas no Verão nota-se mais.

  Lá vão elas andando desfilando como estátuas hieráticas com tudo, contudo, no lugar.  

  E são brancas e pretas, ruivas e morenas e louras e de cabelinho rapado para ficarem exóticas, ex-ópticas aos nossos olhos em bico em bugalho em riste como binóculos de apreciadores de corridas de cavalos ou de paisagens longínquas.

  A umas os seus construtores/construtoras querem que apreciemos as partes de cima, outros/outras as partes de baixo – e nós, que sabemos apreciar ver coruscar como faróis na noite olhamos principalmente o que as suas construtoras construtores não lhes fizeram/costuraram mas lhes foi dado pela natureza o acaso a simples e boa elegância que ou se tem ou se não tem, raios.

  Elas lá vão deslizando como borboletas numa serena manhã de verão ou ao entrar da noitinha. Meninas, lindas meninas, qual de vós o vosso ideal e os/as que as miram escrutinam remiram sentem por vezes um frémito um arrepiozinho que acrescenta um tremeluzir na passerelle. Como se fosse o ring em que se batem contra a fealdade do tempo e a beleza da idade.

  Como se não fossem apenas estátuas hieráticas mas pessoas andando desfilando no quotidiano dum mundo reconfigurado e liberto.

 

  Calabazas*
 

 

Eu sou o que sou

vegetal e mineral, fruto e animal

no inverno no verão

em cima da cama e numa cozinha

sobre a mesa com copos e garrafas

Sou pintada sou disposta em arco-íris

como alguém que ri e alguém que chora

como uma artista submergida

como um retrato emergente

ando de roda

rastejo

voo sobre os rios e os ventos

os montes e as chamas nas lareiras

sinto a terra nas mãos

balbucio a dormir

assusto-me fico presa

a um objecto tão belo como a escuridão

antes da manhã

depois de anoitecer

 

Tenho muitos nomes

que de repente desaparecem

cabacinha pintada de azul amarelo

cabacinha pintada de preto vermelho

e sou outra vez eu

e faço o pino danço adormeço

e os sonhos saem pela cabeça

e ficam a pairar perto das paredes.

 

Sou cabaça

sou pessoa

sou madeira e pedra

e lume e ardósia e papel

ramagens ensolaradas

casas que se abrem e fecham

no dia inteiro

e na tarde

de todos os silêncios e ruídos ao longe.

 

  *A pintora e poetisa/performer Mayte Bayón é autora de uma série de cabacinhas pintadas (em espanhol, calabazas) que nos dá uma visão marcadamente feminina e original da máscara em escultura-objecto.
 

 

 

 

 

Jornal InComunidade (Porto)

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTACTO: nicolau49@yahoo.com

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL