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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 30 | agosto | 2012
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NELSON BOGGIO
No dorso das visões |
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O Náufrago de si mesmo |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Página Principal |
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Índice de Autores |
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SÍTIOS ALIADOS |
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TriploII - Blog do TriploV |
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Apenas Livros
Editora |
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O Bule |
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Jornal de Poesia |
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Domador de Sonhos |
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Agulha - Revista
de Cultura |
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Arte - Livros Editora |
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Coube-me em sorte, o infortúnio de um naufrágio Como à frente dos
olhos lábios de mulher,
Que em cimos mais instáveis, não pudessem crer
Conseguir imitar da morte o seu contágio.
Um rio vigoroso destrua as barragens
E aos pés do Oceano cavalgue rugindo
Já que os negócios que abri à toa nas margens,
Os inspectores da morte vão destruindo.
No chá marítimo nocturno e transatlântico
Que acre massacre sob o verde celeste
Deixa os recém- nascidos de fardo romântico
Crescer para inalar odores que a mulher veste?
Na fúria revolta da onda encapelada
A juba do mar levita a mulher no barco
É mais risível do que o vício a pôr na estrada
Embriaguês de actor contemplando os charcos.
Da água o gelo frio é dorido perfume
Onde banho o sonho infuso a desprender-se
Como lamúrias das águas termais em lume
Rugindo maldade a mais para deter-se.
Onde pétalas em lume das rosas cheiro
A sua cor carnívora, com o nariz saliente
Se as narinas descendo os odores de um outeiro
Sobem flutuações que crio para a mente?
O escaler no mar, como mãe em desespero
Que um parto estelar obrigasse a formar coro
Lembra antigos dramas de um sensato Próspero
Que faz das tempestades o mais belo choro.
Eu dado ao motim e a badalar-lhe nas têmporas
Coração, digo, vai-te sem mais da mesa posta
Com raiva à luz de um Oceano se chora:
O mar, raios, abraça sempre quem mais gosta.
Degraus musicados pela batuta do sol
As ondas voltam a ritmos de valsa lenta
E espalham doces cheiros a mijo e fenol
Eufóricas, a rir como ninguém aguenta.
Suicida como um cão que na pradaria
Enxotasse esperteza com que encher a tripa
Que outro vulto mais mortal perseguiria
Do que a luz do mundo mal tudo se dissipa?
Como às bonecas os faustosos cabelos
São ceifados sem dó por mãos de criança
Vejo-me ceifada a vida pelos maus apelos
Dos ribombos da água a vomitar faiança.
Pancadas acesas nos corais de lama
Ilustram jardins irrespiráveis com peixes
A afogar-se ao meu lado viaja a cama.
Oregãos com leite e rins num mar de feixes.
As ondas espectrais no meu corpo jovem
Bem bebidas com fúria, de amargo sabor
Afoitas como os corvos que nas searas dormem
Jogam no mármore da água a minha dor.
De que palácio submarino tenho a chave?
Em que diques de fogo róseo as minhas mãos
Poderão vencer as engrenagens da nave?
Onde se escondem malgas de sopa e o perdão?
Eu vejo no lugar de gaivotas panteras
Com sábio olhar pedindo ao universo todo
Que me jogue a riqueza oculta das quimeras
Das ânsias infantis nas banheiras de lodo.
Esquecido das crenças sem fim que se perderam
Deito os olhos ao céu em promissão de fé.
Mais brando do que o lume dos astros que arderam
Por entre nuvens de incenso, enxofre e café.
Igual ao alarme de um bebé no baptismo
Sem direito a optar pela religião
A consciência enaltece o seu cepticismo
Nos bosques intricados do meu coração.
Pelos canais do céu tornam os carros da fome
No mar de fuligem fabril que não recua.
Cobicei eu fortunas que o leme consome
E provei o vapor dos abismos da lua.
Procuram ladear-me muros de outrora:
São hinos da pátria nos bancos da aurora
Recordações do mosto e do odor a pipa.
Mas sigo a morte já longe que se dissipa
Choro à toa, olhai as bússolas, perdi o acre
Timbre da vida onde andam proas de incenso.
Dos sonhos queimados como fio de lacre
Escalo as descidas onde o sono é mais intenso. |
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Desejo |
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Ofélia - Eu sou a aranha pálida
Os mil sóis apontados
À consciência do infinito!
Sombra - Sob o tremendo chiar das torrentes
Um barco de ouro vem a direito sem tocar na água
Entra e seca os cabelos no degrau do escaler.
Braços - Nós somos os braços de Ofélia nos juncais- seu quê de rio!
Pavio e chama da sua pródiga loucura!
Sombra - Passem, navios carregados de sonhos mugindo
Sob o óleo pastoso da tela do mar!
Navios - Receamos o metal do seu olhar terno, passemos!
Sombra - Saúdo-te! Fada que brilha sob a clâmide das vagas
Iluminando os rios - azul sangue coroado -
Dos baixios marítimos.
Ofélia - O céu é na oblíqua uma garganta de mistério
Fundo como trevas que se abraçam
Estreitadas pelo pavor do meu desejo.
A água espicaça-me as tranças
Como as crianças aos bois em jovial travessura.
Sombra - E tão só quiseste à água, abençoar-lhe o rasto
Mas o mar sacode os torreões das nuvens indignado
Mal se lhe impregna na língua de areia
O sabor da tua morte que num zelo desmedido
Os rios lhe fazem chegar.
Flores - Levam-lhe o meu perfume!
Nem a morte o conseguiu calar.
Sombra - Para abafar o rumor da tua decomposição
E pôr-lhe a termo o pio
Escolheria Reiquiavik
Ó gélida e flanqueada pelo rubor negro cinza.
Flores - Venham - flores vivas de uma essência carimbada de gritos
Elevar-se ao grau de poção.
Ali vai Ofélia! |
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Ecos |
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Para lá destes ecos, para lá disto
Existimos nós, paredes,
Camas sonolentas e vazias
Penduradas como estátuas
No estendal do silêncio.
O que ali descansa eternamente
Sou eu a ver-me daqui com vida.
Mulher, domina
O canto de antes do próprio antes,
Pó branco no nariz da actriz.
Crianças,
Que balões roubados?
- Searas do Alabama às costas do Outono feérico.
(A solidão é mais concreta do que uma rocha) |
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Reencontro |
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Os percursos da rota da minha infância São poentes de cor leitosa
sumidos
Neste sofá memorável a distâncias
Superiores, enxergo a ala dos feridos.
O Inferno das sombras volumosas
Um pouco onde ferver o meu castigo!
Está posto à venda o bouquet de rosas
Que se vende a um generoso preço de amigo.
Fogo em jorros por detrás das pálpebras
Pontos inertes nas curvas do mármore.
Feitos ruivos, antiquíssimos vinhos
Apontam o caminho a todas as álgebras
E começam outra vez no pescoço da árvore
A deslizar pontes da cor dos sinos.
Vieste assistir à data do juízo final? – Não te amo! E eu aquiesço
deitando entre as tuas pernas a cabeça cheia dos pensamentos que a nova
redactora tem agora em mente. |
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Ouro |
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Pepitas consolidam a glória da civilidade que ondula
nos mastros da obra outorgada!- Que fantasmas são estes que se debruçam
sobre mim metidos em sacos de lona? Porque sonhei faz três dias, com a
gárgula de onde brota o nosso delírio inconsciente e ocidental? Oh
inoportuna sacerdotisa do indivisível desejo de Pã, Diana e Afrodite,
pelas campas é preciso, no bosque aéreo mas contido.
Fabriquei uma aversão nova! Quando à semelhança de um
joguete as crianças vão entretidas, nos dormitórios civis onde aguardam
o conforto da ama habilidosa, farei bailar ao engano esta dança: cresçam
saudáveis para a estação do porvir!
(Os campos de palha no céu são chamas no azul
profundo da água do desejo.) |
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Noite de Gala |
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Paixão líquida nutrida pela lua serena
Ao verter precipícios na alma humana
O contramestre fabricou da sua pena
O fogo ruidoso que nos prende à cama!
Visível, quis-te morta uma essência
Habitada por sombras!
Verte-se o teu manto de música
Nos salões de uma audição escrava.
Jantamos com os patrões
Até aos safanões violentos das horas.
De cabeça para baixo! Virilidade!
Pensamento acima. Virgílio, uma figura magra trepa-me, come-me o globo
dos olhos, larva do meu instinto de folhas que se vão acamando no
inteligente conforto de uma pele renovada- minha cor e estatuto.
( Luz da óptica de um edifício inundado
por cálculos) |
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Metamorfose |
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E a crisálida cristã
Que não é pagã
Dorme a cismar
Breve e vã
No seu voar.
Sua viva essência
É a excrescência
Restos da lama do mar.
E no alcatrão da nortada
A tentadora amora
É apanhada por quem se enamora.
Mas nunca findam os ais
A dor, a febre distribuídas
Cravadas de mais a mais
No silêncio das estradas puídas.
Jurámos revoluções despertas
Mas dizemos não a atitudes patetas! |
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Beleza |
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Algures, numa cabana do lémen,
iluminada pelo sol, vive a mulher cuja beleza nem sequer se digna de
povoar os nossos sonhos! O resto, são procissões amargas, para os
bosques onde aves canoras difundem hinos à beleza comercial. |
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Teimosia |
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Nunca escrevo: estas paredes nuas!
Há sempre uma luz de catedral a espreitar-me lá do alto. No entanto hoje
vou escrever: estas paredes nuas! Este corpo bárbaro. Este ar sofrido de
estudante permanentemente debruçado por sobre o tudo que é nada. Lírios,
rosas, Grécia, ascese do mais alto postulado romântico. Estas paredes
nuas, escrevo! Ritmo, elipse, moldura num aquário de Junho ó primeiro
escravo que injuriou antes de todos e primeiro que tudo, as suas
grilhetas! Estas paredes nuas! |
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Resignação |
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Violenta como o vinagre ó morte
Abrevia o teu propósito.
A abóbada inclinada de nuvens incandescentes
De propriedade viscosa como baba leitosa
Desperta na horta restos de esboços
Cujos traços lembram olhos mecânicos.
Quem toma de assalto a nossa viuvez pálida
E a caridade encolhida dos nossos améns?
Mais meigo que a malga de cicuta
O outeiro! A velha defunta ainda viva
Uma claridade pronta para os nossos botões. |
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Proeza |
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O azul sereno da caravana efectuou
a sua despedida sob o poderoso e fantástico aguaceiro – despedida mágica
e musical. Ao som do dobre dos sinos que pareciam ter sido alteados nas
covas do rosto da lua, sob o pungente aguaceiro, fiz-me morrer! Inclinei
sob os gerânios o porte afadigado – um ser de membranas azuis
alcançou-me o coração! Hinos de vida ao amanhecer! Esta paz devolvida
leva-me a crer na criança que um dia habitou na casa ao lado, entre a
franja da palha trazida pelo esforço dos pais. Criança! Acredito na tua
resignação que nos coloca a par da inocência! Cercar-te-ão as estrelas
no céu como sentinelas nas muralhas! Dizes: é à toa o escuro como um
manto de tulipas de que as negras antenas cegamente enxameiam.
Devolvo-te: Vai secando o oiro da tua face para que os lábios estruturem
um pequeno ministério à parte no teu rosto. Anuímos e a pequena fada
pula para a frente com as asas eléctricas percorridas pelo nosso
espanto! Entre o que vejo adianto a cintilação de uma gota.- a completar
a encarnação vívida formada pelo dossel das minhas omoplatas.
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Largada |
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Dispersem-se pelos corredores! Pela
abundância dos canais, alicerçada na inveja por nós despoletada! Já do céu( criado para servir de fundo à nossa homenagem) pendem fogueiras de
rosas, amoras e cachos. Validai os costumes e as sentenças lidas. Atraí
à sela a virilidade dos machos. Ó terra de cabelos claros de cultivo
árduo- as tuas searas de sempre são as da infância! Moinhos de
cicatrizes memoráveis. A água quando sussurra dita-nos lendas:
«Explodindo de júbilo no nácar pastoso do alqueire da perfumista, três
insectos cambalearam notoriamente embriagados.» Os reinados do antigo
Egipto não serão mais amaldiçoados do que as pontes supostamente
inquebrantáveis da nossa democracia. E que daqui para a frente, não se
coloque em risco o coração das mulheres, já que a ebulição que o nosso
medo lhes alimenta, é à semelhança de um bocejo uma réplica tonta. |
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Dúvida |
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Para quê dizer:
velocidade de si para as coisas, como um físico? Ser-se só poeta e
observar-se mais do que três portas de madeira colocadas na gengiva do
cimento como dentes a ranger às gargalhadas. Mas intuamos por exemplo:
um punho de economias contra o nosso peito. |
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Mistério |
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Azeitonas de pele
distorcida no fundão da arca
Dos sais povoados de sonhos da onda
aquilina.
Marcham progressos talhados por um
rumor de saca
Degraus de vento na maciez campina.
Macacos agitando à luz do sol- perto
das tendas guarnecidas de ar
Mausoléus vinhentos, rumor de finitude
Degraus de vento na maciez campina.
Anda, caminha! |
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Matrimónio |
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Beatitude de freira: a arca que se
lança das novenas embate no recife das nossas jóias, quotidianamente
domesticadas por uma adoração palerma! Jurámos obedecer ao matrimónio
contraído à entrada da casa das máquinas. Ali um morre. Cai um bicho de
oiro pelas ameias do palácio. Desfaz-se um torreão com uma bola de
ferro. |
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Rampa |
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Une o teu ao meu
choro: não caiamos nesta feira tão individual como a noite. Dentro dos
teus olhos vejo palácios que se enfileiram como crianças na creche à
porta do refeitório!
Dispersando delírios sobre a onda
ciumenta
Aroma mortal subindo da água violenta
Marcha diante dos sentidos a decantação
lenta
Dos sais junto aos recifes de coloração
pimenta. |
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Canais |
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Por cima do que não
existe há um céu através do qual surgem canais. Três aranhas com as
patas dianteiras, emocionam a criança por um caminho de ar, cheio de
giestas que desaparecem mal se dá por elas. Mal se avista no cérebro um
prenúncio da sua memória. Ao memorizar coisa alguma numa escola deixada
para trás pratico quando muito a devoção pela atrocidade do esquecimento
a que me habituaram. |
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Riqueza |
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Há tanta gente rica!
Vejo: esgueiram-se com atento
ardor
Para as praias do ócio
Onde atestam os copos
Com a brisa do Pacífico!
Sinto-os: pneus cheios
Camisas: bandeiras gloriosas!
Desfraldando-se sobre silhuetas
que jamais murchariam
Se as banhássemos com amor mais
abundante
Do que aquele que a água nutre
Pelas rochas
Ou Deus pela condição dos homens.
Ai pobres crianças na arena de um
afecto ausente.
O capitalismo é um touro. É um
touro! |
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Teatro |
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Pináculos revestidos
por hemisférios de seda. Esmigalhado, sem diante do perdão ter afirmado:
Pronto! Condeno-me ao vosso rigor. Poderei eu finalmente encomendar o
fato último? A imagem do caixão enfeixado no vórtice da mata abaixo do
cabelo tumultuoso do matagal, transmite-me a serenidade dessa turma de
pombas! De nihilo nihil! Invitatus adibis. In regia. Em chamas, uma vez
que as consciências me deflagram pequenos festins no peito. Para sempre
ciente do vosso carinho, adubado pela fértil ideia da comunhão sempre
imperfeita ou talvez hipócrita. Gritam os monstrengos do alto das
colinas acusando a voz de bagaço, corporização justa da melodia da
loucura, indicadores na vertical:« Ó tu e o teu peito jovem! Embora
cravados de temor, nada nos impedirá de descerrar os dentes diante da
imagem do pano de arrás que caindo sobre a cintura do tronco de Artémis,
alimenta a nossa imaginação evocadora da engenharia do mistério.
Garrafas de vinho depostas ao longo da mina como um coro de irmãs, são o
nosso sangue precioso. Pão já mastigado brota-nos das gengivas febris,
como se estalassem ao longo do odor da nossa miséria.» Um branco muito
branco vai alimentando um público cheio do vício evocador do verbo. –
Meus caros! Esqueci-me da adaga na casa velha! – respondo. Caminhemos
pela obliquidade desta herdade, digo-vos, profícuos de bens pilhados,
enchendo de rumores sabiamente preparados casas abandonadas, saguões
amarelecidos, afortunadamente desvanecidos pelo esquecimento estatal,
erguendo-nos por via de uma luz nova. |
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Círculo |
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Um cordame de fogo
exige os limites a que te abalançaste: Cerejais de seda por construir,
jornais de leite acusadores da espessura do nosso raciocínio angelical e
das nossas acções breves e paradisíacas. Veio-me isto através de um
sonho, a imagem intocada da tipografia de Deus. Diamante, se és um homem
não podes fugir hoje ao rumor do trabalho. Os sequestradores de
anedotas! Canta um deus promíscuo pelas abas reflorestadas da alameda:
Sem profissão é o coração, sem mastro é o alabastro, sem bússola é a
lua. De lantejoulas impregnadas com o cheiro do circo o inventário das
minhas cabriolas vai sendo reduzido a uma esponja de seriedade,
espremida por ocasião das cerimónias sociais. É esta a religião do fogo?
– despede um Dali entrementes. O âmbar que levo nos pés levanta o seu
aroma na doca florida de cardumes emblemáticos. Na Catalunha! Mas sem
profissão resta-nos a equação desdenhadora do sono que cristaliza.
Depois de deitarmos as nossas cabeças ao rio, afundados nas tristezas
dos nossos delírios de ociosidade, enlevo carismático de um trabalho sem
ordem, ou espírito, vemos os esqueletos branqueados dos que como eu
alertados pela falta de rigor e da caridade, tão estranhos a esta urbe,
igualmente acorreram com a determinação de crianças, enredando no
líquido vórtice o brilho do olhar, fatalmente inspirados pelo abscôndito
tesoiro que do vergel fluvial os lançava às tentativas. Mas que tesoiro
lhes pode advir dessa espreitadela? De novo a queda. E agora são
cadáveres enredados pela ilusão da promessa. |
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O porteiro |
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Pelas lamúrias do meu
violino foi esta a tropa que eu impedi de ser crucificada? Hoje a serena
e convicta imagem do amor acossa os pares pela floresta. Ainda assim o
porteiro do pós - guerra sofre com as investidas da amargura
apocalíptica do seu antigo horário de trabalho. Pois que sofra menos de
mais a mais. No entanto resquícios de má vontade, de uma loucura sem
tréguas, transportam-no ao longo da sua embriaguês, guiado pela luz
outonal das tabernas, nas tardes de um desporto desinteressado. Como
tudo isso confere ao seu rubor um despeito de monarca. Que sofra duas
vezes mais de menos a menos. |
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Rancor |
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«Através da chispa de
fogo que reluz na ponta da minha caneta, sagrar-me-ei humano.»
Antes deste pensamento, não sei
mesmo quantos de vós, enraivados com o sangue de transbordo pelas
pupilas, me haveis considerado como tal.
Hoje escrevo, e à beira das mesas de
mogno, impregnadas com o odor do sal das tabernas, fosse eu escravo,
judeu, oriental, birmanês, eslavo, celta, evadido por meandros que só a
loucura pode compreender, teria sempre como tenho agora: brilho que
baste para desembaciar o vosso rancor! |
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Noite |
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Farto da minha sinceridade, evado-me do ecrã de argila. Moldei o barro
da minha estupidez à imagem dos santos de uma qualquer aldeia. Amoreira
é uma Reiquiavik de gelo humano. O olhar glacial da sua capela
entupiu-me de magia o canal da razão. Que paz! Não é Lúcifer! Porém um
grito falível afasta a hipótese de ser um anjo.
A ternura anda a engolir as crianças
com o capuz dos prados. As mães! Que saberão da advertência futura que
lhes assegura a providência? Mais frágeis do que a casa de um caracol.
Uma cruz de fogo anónima ondula o
brilho da minha voz. Dissidência proclamada. Eis-te visível. Que outeiro
receberia as marchas? |
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Flores |
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Reservo lilases para a
noite em que ela esteve presente. Amanhã um novo cometa acordará a nova
consciência de cidadania. Mereço a ponte e o andar reconfortante dos
paraísos de outrora. Era embalsamador de cadáveres e fiquei preso aos
sustos da mecânica e da física.
O caudal umbroso de um rio oferece-nos o sonho da nossa finitude. Pois
já mulher, em obsessivo jejum dos esquemas do amor, revoguei a farsa
inédita dos humanismos pueris inconsequentes. Não darei um cêntimo pelos
novos equipamentos militares. |
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Partida |
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A escalada dos nómadas
expressa as intenções do clima. Esta roupa afasta qualquer
idiossincrasia de poeta banido. E ainda não conquistei o ódio eterno que
se reserva à perspicácia que é um tique de infância. Colecciono isso
sim, o orgulho dos condenados por esquecimento. Chama! Ei, nós desta
corda! Parte! Rebenta! O que se foi fragmentando muito antes da possível
queda heróica?
Eu era um anjo e vejam! Pode a saúde
na sua loucura irromper ali em cima e a qualquer hora?
Que impulso te leva a triunfar sobre
os demais? Que deus de erva e fogo partiu sob a água e levantou esse
hino? Epistola de São Paulo aos Coríntios. |
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Legado |
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Rezarei para que um
fim acabe qualquer outro início ou ideia. Só uma brancura- como o
estouro das pombas extraviadas rumo ao céu da reprovação- desmaie na
imensidão do circo que és!
Representei imagens de dilúvio e o
equinócio avassalador das luas no outono. Crianças a irromper de lagos
com ancinhos! Bruxaria! África pode entreter-nos melhor!
E que ruína fui então ou seria para
que nenhum anjo receasse humilhar-me? Cinismo redentor! E como se
percebe de venenos todos se afastam. Matarei o tédio mais para a frente.
Quem está comigo? Aqui nenhum lugar está devidamente distribuído.
Conhecem-se as honrarias do sangue e pouco mais.
Eterna destituição!- o senhor que
sou eu! Andarmos vivos e sermos conhecidos da ventura deixada aos
cadáveres. Grito com a pujança de uma barragem. A electricidade é-vos
retirada. Eis o preço. |
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Vertigem |
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Todos os emblemas: cruzes, rosas, ideias de morte! – já outros
idealizaram. Paralisou-se o esforço da sagração religiosa moderna.
Um lava loiça tritura a canção febril
das indústrias do agora. E a paz que nos cabe ser anunciada a cada
instante foi-me suave como uma carícia ou um benzer desprovido de
qualquer vergonha. Faço-me altar, sé, balaústre! Rainúnculos!
Margaridas!
Os insectos pintados nas nossas
portas. Para alguns viver é o contrário de viver. Que palavras devo
desaprender para não viver em esforço de acumulação de utopias?
Estaremos velhos quando as construções forem sinónimo de defesa dos
direitos dos operários. Jesuítas, eis a luz! O poço da fortuna! Laranjas
e crianças e o riso de Cláudia. O sol a arregalar os raios sobre as
tinas de vidro. Sofro! Que nova filatelia recupera serpentes cor de lémur
junto das investidas dos barcos? Arcos e charcos. É este país ainda e a
memória tem pressa para nos comprar amnésia. Alugar esquecimentos.
Vive-se disso? Parece que cheguei à ponta de um estreito. Partiu-se-me o
coração, adormecido que estava com grandeza e virtudes ao colo. A cada
esquina a fatalidade! Em cada beco a violência dos gigantes de palha e
vento. Furacões! Benzei-me. A mim essa água, pelas botinas, como for. O
pano importado liberta-me das prisões da primeira pátria. Os escravos!
Talheres moscovitas, tomem lá o
céu da minha boca que reflecte os vossos lustres, as vossas danças!
Música celta, empresto-vos os tímpanos que detêm esses bordados de
chocalhos e clarins. Mais para aqui é como se sentisse a vossa fome e a
vossa miséria. |
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Memória |
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Pré requisitei os fantasmas de sua majestade. O copeiro que andava
acordado a estraçalhar a louva a deus. O chefe de cozinha acostumado à
índole panfletária dos semeadores de boatos. Este sol quase tão
duradouro como a tua beleza. |
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Nó |
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Sobra-me a perspicácia de talhante. Em cada caixão o que foi ontem
paraíso e vida! Cada suspiro é a revolta clandestina. Cada ovelha do teu
rebanho, cada filho da tua prole, amados com perseverança. Abismo e luz!
Querem andar ao ritmo do pensamento de um demónio? Cada gesto!- ruga de
vapores que estremecem á passagem das tendas. Tu és a dignidade
devolvida. Eis o coração de um pastor: nada de vícios.
Tendo inalterado a minha
fisionomia, perdi este veículo. Rejeitar-vos ei coluna de malfeitores! O
coche insondável busca a morte. Mesmo a bondade tem o espelho rachado.
Cedo sobem os credos deste inferno maldito. Primeiro um braço, depois um
fémur! E então a asa arqueada a rir-se dos antigos cálculos! |
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Apetência |
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Uma única nota
devolve-me a tua imagem. Amigos, digo que restabeleci a confiança que me
havia sido retirada nos céus de Lumpur. As taças e o peito compunham
essa figura. Os olhos de bezerro no Peloponeso – urbe de barro e suor do
esquecimento dos homens. A confiança que nos é dada pela alienação
altera-nos o brilho do olhar. Fiz da saúde uma droga possível mas
estranha aos demais. Se eles soubessem que respirar este veneno extraído
directamente da atmosfera me faz ver vinte vezes mais além, e que a
realidade tal como a poderíamos sorver sem recorrer aos estupefacientes
é uma fuga consciente, abandonavam-se à lassidão monstruosa desta
concorrência. Pois há no ar desde o tempo fabuloso das pinturas
rupestres ópio suficiente. Antes de obedecer à esfinge de luz- sagrados
aparelhos de luz e de sinais emitidos, que fortuna terei suprimido para
viver como os demais? Que império já terei a meu cargo para tatuar na
pele das mulheres ídolos de conquista? Foi preciso maldizer as imagens
das primeiras liturgias, os cânticos sauditas para que um império
marchasse para a epifania dos túmulos de guerra? Que sonho, que promessa
inviolável nos fez senhores desse corpo e dessas bagas? Estive a
morder-me de pensamentos bons, a atear-me um fogo constante. Ardi por
momentos. Mas decido abraçar a dor e ter inimigos letais. Escudo-me de
inimizades atrozes, cruzo com Satã. Faço cruzeiros e visito Caronte.
Aceno às almas condenadas e regresso. Todavia choro menos, mas uma dor
fina de metais abana-me dos pés à cabeça como um raio. Verdadeira
felicidade!
Hão-de admoestar a minha simplicidade construída. Ès porventura
aquele que nos verga com um simples rumor de passos, prenhe da magia dos
lamas e dos improvisos dos grandes escritores, condenado a vigiar a
nossa loucura, com queda para o abismo? Duas poças de estrume para a
tua sesta. E por almofada estes pregos. Camaleão, essência de vidro
posta a nu e dissecada, és a revolta do canhão na marcha mas és tão
simples. Vestes-te como um de nós. Porém, à mesa connosco, há mais
portas dentro de ti do que supúnhamos. Porque fechaste estas e onde
estão as chaves? Que paraíso podes visitar sempre que queres? Que amada
podes tocar, inexistente ao nosso olhar? Esconjuro-te com álcool e
bíblias. Uma frase mais exótica dá-me dores de cabeça. Esse infinito que
te obriga a pedir o teu sustento e a dormir na rua, torna-me prisioneiro
do conforto. |
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Grito |
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Nas prisões os que não crêem em obras revolucionárias. Trinta vezes
queimei esta mão, e por mil cortei esta orelha. Exigência académica. Um
simples rosto de cozinheira enternece-me e devolve-me ao trilho do sonho
abandonado. Choro de emoção perante uma cláusula. Quem foi que a pensou,
que cabeça, que feitio? Que pés se foram despedindo das calçadas e dos
encontros?
Porque nos permitimos domar as
virtudes de um escândalo? Frederica estoura de prazer sob o meu
parapeito com cidades e luzes desconhecidas. Ouço operar nos subúrbios a
grande voz dos primeiros dias de campanha nas florestas e no mar. E cada
madrigal, écloga, soneto, serão para sempre o rosto diurno de uma
individualidade serenada. Aos pensamentos e adivinhações malditos. É
impossível rir de tudo isto, sem primeiro testar o nosso amor? |
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Aparato |
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Nada acarreta mais alegria e pesar que o dinheiro. E no entanto eis a
busca promissora de novos estatutos económicos mundiais. A tua morte é a
tua assinatura. Ao coral de fogo e indústria. A reboque o enxame de
abelhas. Esse tropel de cascos agitador de fábulas por cima das
arquitecturas nos largos das nossas vilas. Um fogo fátuo brinca
amedrontado nas mãos de uma criança. O corvo apreciou o véu de luz sobre
a viúva. |
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Dinastia |
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Que transformação tivemos que sofrer para atingir tamanha estupidez? O
fumo vomitado pelos canais da terra dá-me uma impressão forte a tinta de
óleo. Querem afastar-me deste rio e da mulher essencial? A bofetada do
progresso seria demasiado santa se não nos injuriassem este exército:
abstém-te de procurar o prazer estéril debaixo dessas túnicas. Os
bosques expressam a fúria insana dos deuses e da sua alquimia
descontrolada. Rasgo de loucura: ter onde dirimir os focos que se
dissiparam.
Uma única ciência bastava para este falso conforto. Menosprezados os
excessos de que somos culpados... Uma só alma chegaria para povoar o
Universo. Mas a fracção contínua do espírito gerada pela gravidade
material levou-nos à procriação. |
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Nervo |
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Stock! Mercado! Valores! Vivas
acompanham todas as descidas e qualquer vitória é incensada com desdém!
Quantas orações vão ser desperdiçadas? Que nevoeiro vai desfilar sobre
este santuário de silêncio mais uma vez? Esses esgares apontados ao meu
rosto. Durmo debaixo do manto de horrores e magico novos surtos da
consagração da beleza inexistentes. É verdade: a água com chocolate das
poças de lama virtuais recebe a pegada triunfante de um camponês. |
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Aviso |
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Regra e estrutura
a tua juventude ó filho de Ceres! Egisto? De que palácio construído com
os nossos favores e bordado a estrume e amoras soou o alarme?
O segredo dessa gargalhada é a
nossa mágoa. O porvir da tua beleza, a nossa castidade. Que fé podem
induzir-nos os milagres? Da modernidade o culto do vazio. Ó embriaguez
canónica afastada por mim do teu ofício. Beijo os vossos pés. Prostro-me
nesse altar.
Serei mais lógico que todo o
progresso. O meu humanismo será revisitado. Sonhei nivelar-me neste céu
de aparências com o razoável esboço da minha razão. Planaltos cozidos
pelas mãos da lua! Feixes de pó electromagnéticos, combinações digitais
no carbono da memória. A emotividade maquinal traz-nos a perplexidade da
engenharia divina. Que céu terão alugado os antigos para que vestígios
da sua insatisfação tenham chegado até nós? Olhai os que nas revoluções
morreram e de quem só agora se deu conta.
Muito jovem terei absorvido a
lição: todos os nervos do meu corpo serão educados para suportar a
solidão. Galopa o coração sob a fileira de álamos. O gancho desprende-se
dos cabelos de Sofia. Vejamos: todos os bêbedos de coração mole foram
outrora sábios.
Todas as imagens sem excepção
A
cada passo da fruição.
Do
bem ao mal do sujo ao limpo
Esta fome que eu alindo.
Ao
norte, ao sul, a jusante
Corpo de Cristo por amante.
Ao
olhar ou paladar
Quantas contas por saldar!
Canhões no fulgor fabril
Ascenção e queda nos delírios de Abril. |
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Constatação |
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Quanta raiva contida mora no meu inconsciente! Mas o que me impede de
ascender ao estatuto de criminoso? Que acção se interpõe entre mim e a
concretização de um crime? Assombrosa virtude de conjugação de
conceitos: a escrita! Como se dos teus olhos nos chegasse a lei, ao
mínimo rumor de cegueira, que pânico atroz! Perderei toda a minha
dignidade se vender em doses pouco claras o meu orgulho. Outros hão-de
porvir para chacinar os espectadores na clareira onde fui agente. Que
ânimos me acompanhariam melhor? Aos educadores e outros vilãos da
promessa de progresso! Promessa! Ah! Os grandes poetas estão a voltar.
Imunes e inesperadamente sob a capa de um caos simulado diferente do
vosso. Diferentes dos vagabundos de estrada que olham o miolo da terra e
do pão aduladores da desgraça, chatos como Satã, expulsos do éden. Mas
de vestes imaculadas flores de lis ao peito, sempre bem jantados.
Deliremos no pó da nossa morte. Nas gargalhadas de uma juventude de
desaire. Ó profícuas imagens assumidamente desfavoráveis. Trinco-vos uma
a uma e deponho-vos no meio da praça. A vossa sorte é eu ser mortal.
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Recaída |
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O sangue e os ataúdes fervilham a poente. A norte há uma capela cheia de
homens e a sul os mesmos homens enchem uma praia imensa como um fresco a
desdobrar-se ou os restos de um cérebro ainda vivo derramados por sobre
a laje de uma igreja. E cá estou eu outra vez! A beber sempre e outra
vez o mesmo veneno! Chego á conclusão que não perigo mais e é o meu fim!
As defesas tornaram-se imunes. O que era tormento agora é bem vindo! Em
viagem sonho com o peito que me virava do avesso a fome de pragmatismo e
as insurreições contra o dever! Uma ave engole-nos a vista e vem morrer
ao calhas no próprio agora. Coração de fosso e treva. A farsa foi longe
demais. A criança abana a cabeça exausta e desiludida. Baixa-te: o sino
ensina-nos a lógica, evocadora do paraíso.
A que inovação devo beijar as
mãos, farto de tanto pranto? |
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Visão |
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A luz dos
desfiladeiros encorpa os limites da cidade. Quatro pilares revestidos de
borboletas e outros insectos macerados no seu interior suportam o
universo: é um elefante.
Aplicaram-lhe um
sono sem tréguas. Dois respiradouros deixam escapar um suspiro contido:
o das multidões humilhadas pelo progresso. Cotovelos de prata repousam
debaixo do sol, debaixo das pontes. Uma elipse faz galopar as asas de
uma matemática avara- as patas ardentes de Deus à velocidade dos sonhos
dos homens e mulheres em viagem.
Um par de calças
salienta a luta de classes: federações sem cruzes e botes: Homem!- a
lombada do livro é o osso que faz girar o teu ombro. |
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Respiração |
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Dois sinos de vidro habituam-nos ao
toque marginal da vossa moral. Os eclesiastas. O tempo estilhaça-nos o
sangue a cada visita sua. A vossa enfermidade angelical derruba-me toda
a atenção dessa árvore de ideologia parva. Posso ser tudo de forma
consciente mas um prazer de principiante devora-me à entrada da missa.
Antes da planície de sangue as costas de Andrómaca. Golfinhos emergem
nas fontes públicas: o cimento das oficinas onde os coches do demónio
são pacientemente consertados investe contra muros de antigos palacetes
praticando amiúde lutas de estilo. |
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Luz |
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O braço do
capitalismo firma um novo Império sob os narizes despreocupados das
estátuas. Doiram profecias continuadas nos ninhos de cegonha das
catedrais. A desconfiança navega os salões da nova burguesia hipotecando
a imaginação das gerações vindouras. Andam explosões de música nos
carrilhões abafados. De cama em cama! De barco em barco! De luz em luz!
Eh! Remos de açúcar no mar de leite mesmo abaixo de nós! Que história
sombreada a xisto se permitiu violar por esse cinzel? Em que ardósia
comecei eu a inviolável tarefa dos açoites pré socráticos? Uma! Duas!
Três! Linho e rarefacção nos prados! Três! Dois! Um! Ao caminho ilógico
dos estados. |
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Caminho |
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Acima de nós,
segundo que cálculo? Ninguém senão tu podia entrar. Violentos declínios
superam a vibração dessa estabilidade cheia de silêncio, mas fértil de
intuitos lascivos e barulhentos. Meteste água por todos os lados. Ao
espanto juntou-se-lhe um punhado de ignóbeis para a dança da eternidade.
Arde fogueira! Supri-vos demónios. E mais à ralé de anjos aquietada por
sopros altos e marítimos. Estalam equações no cadastro cor de rubi. Uma
onda de crime galopa entre pinhais e estreitos através de dunas de gelo
quente.
Ah! Gritei, não mais
guiado pela razão. Não mais débil e atacado do que as idiossincrasias
escravas do ócio! Ali, quero repousar a minha vaidade e assumir-me
alimento dos deuses. Comi-vos as catedrais. Soprei-vos recados secretos.
Cheguei a encontrar miúdos macerados em lagos, raparigas estropiadas. E
avós mortas de dúvidas sem a técnica que lhes permitia recuperar a
sanidade. |
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Vultos |
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Sombras de
alva estremecem primeiro. Dedico-te uma tirada: como a mais cruel das
irmãs. Que istmo serpenteia antes do mar recuar? Que candeia cobiça a
luz da tua lâmina? Vê-te: crescido e nu antes de um sexo que te defina.
Explora-te a voz das
bruxas ao cair da tarde. Rumina essas lembranças à socapa nos atalhos
antes ainda do cair da noite.
Vagões de estrelas ditam a minha sorte. Viajo no absinto de uma
claridade nova. Ultrajarei o coro da vossa veleidade, a boca pura desses
acordes de silvo. Ide tapar o rosto à vergonha. O tonel cristalino desse
olhar cardado de mosquitos insulta o decoro do nosso amor.
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Despedida |
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Florestas mortas
viajam no sono das pálpebras. Sobrancelhas avizinham-se das palmas das
mãos e correm para as âncoras abandonadas nos desfiladeiros.
David desaparece
através do estertor azul dos institutos iluminados por uma insigne
metalurgia divina. O bosque morre e com ele uma inocência velada é aos
poucos restituída aos seres de ar e ferro. No cemitério da vila há um
parque para merendas e um corpo de mulher retorna imobilizado, à sua
virgindade floral. Um rasto de flores segue-lhe o curso e enfaixa os
nossos corações com memórias doces. Rosto russo e sombreado.
Que roldanas que
roldanas sobre lápides
Que tisanas que
tisanas as deidades
Preparam no acinte do
seu decurso mortal
E nos atiram os pós
eternos do seu mal?
Roldanas, ganchos,
suportes eslavos! Tirania de vampiro em florestas sem comércio. Am facut
un legamant cu moartea. Roldanas puxadas pelo senhor que diz sim, abatei
a vossa carga sobre o senhor que nada diz. Quem fuma aquele fio de fumo
prateado que foge da adega para a franja do bosque? Aplico o andar mais
sinistro para fugir à procissão que vai para a casa mortuária. Como um
coro de cirurgiões atentos os eucaliptos escutam a minha aparição
melancólica.
O clarão do lago-
clepsidra na água de chá infuso- Haverá na terra a promessa de Deus.
Cifrada, claro. Senão atentai ao que de
imaterial se vai desarrolhando destas uvas, destes estuários regrados de
missivas. Desenhai o arco. Este estremunhar de sonho bávaro prolixo de
madeixas de mulheres.
Até aqui um
educativo silêncio havia-me protegido dos meus semelhantes. Agora
aprendo a soletrar injúrias ao pequeno almoço. Sem esquecer que tudo sim
tudo. Digo tudo meu Deus- é tão imensamente amargo. Como um raio de luz
que se decide a atravessar a varanda da casa de um cego. Como a glória
que o homem viu no capitalismo- cegueira mergulhada em trevas ó
ourivesaria de escravidão. Como pergunto eu, podemos nós acabar com o
enxaguar do sangue nos panos de alguns heróis? Adagio ou moderato
cantabile. |
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http://www.incomunidade.com |
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Nelson Boggio nasceu em Proença-a-Nova em 1980. Ingressa na
escola de teatro ACE aos 16 anos onde tem experiências artísticas com
vários professores e encenadores entre os quais: António Capelo, João
Paulo Costa, Rogério de Carvalho, Alan Richardson, entre outros. Aos 19
anos ingressa na Escola Superior de Teatro e Cinema, com sede na
Amadora, onde teve aulas com os seguintes professores: Luca Aprea, Jean
Paul Bouchieri, Carlos J. Pessoa, Álvaro Correia, Armando Nascimento
Rosa, Eugénia Vasques entre outros. Colaborou em peças com o Teatro da
Garagem, Artistas Unidos, Teatro O Bando, Magia e Fantasia entre outros.
Teve experiência no espaço teatral A Cornucópia no âmbito de formação de
actores. |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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