REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 

 

MARIA ESTELA GUEDES (TEXTO)
&
ANA LUÍSA JANEIRA (FOTOS E LEGENDAS)

 

Guimarães, capital europeia da cultura -

De José de Guimarães a Ute Lemper

Um dos muitos corações-logotipos da Capital Europeia da Cultura 2012, que Guimarães ostenta por todos os lados, com todos os materiais e de todas as cores

Nestes últimos dez dias, tenho viajado pelo Minho e zona vinhateira do Douro. Primeiro foi o encontro com poetas e músicos em Vila Nova de Foz Côa, e especialmente com Jorge Maximino, organizador, que projeta continuar a realização do Festival de Poesia com a presença de brasileiros.  É uma excelente ideia e uma excelente notícia, que me agrada dar em primeira mão. E desde já aconselho a que a viagem se faça de trem, pela linha do Douro, pois a paisagem é de tão soberana beleza que parte da região está classificada pela UNESCO como Património da Humanidade, na categoria de paisagem cultural.

Não regressei a casa, saindo na Régua, segui até Ermesinde, para apanhar o comboio para Braga, onde já vinha a nossa amiga e bem conhecida colaboradora do Triplov, Ana Luísa Janeira.

Depois e agora temos visitado Braga, onde nos receberam Manuela e José Gama. José Gama também é conhecido no Triplov, assina o artigo sobre a cabana do santo entre os índios Carajós, sua participação no VI Colóquio Internacional de Alquimia, que teve lugar em Guimarães, organizado no local por Francisco Teixeira, que nos recebe amanhã na Capital Europeia da Cultura.

Guimarães está uma cidade de excelência, por muito que os vimaranenses critiquem a grade de ferro forjado e a calçada que substituiram o jardim do Toural, isto e aquilo. Em Braga também alguns jardins estão a ser substituídos por chão empedrado. À primeira vista, tudo isso é de lamentar, pois precisamos mais das árvores que das pedras. Porém de um ponto de vista estritamente estético, a calçada tem a sua beleza, e no caso da grade disposta como intervenção estética ao longo da praça, no Toural, tem encanto e chama a atenção para um dos elementos ornamentais mais característicos de Guimarães, o ferro forjado das varandas e das portas, a contrastar com a cal e os caixilhos das janelas de quilhotina.

Maria Teresa Pimentel Seara Cardoso, prima de Ana Luísa Janeira, melhor guia que alguns profissionais, levou-nos aos lugares mais relevantes do centro histórico, com as praças medievais, vielas, palácios, agora museus, e muito mais. Terminámos a visita na antiga cadeia, a tomar numa estreita cela um saboroso sorvete. Tem estado muito calor.

Muita coisa em Guimarães faz agora corarem de inveja cidades bem mais importantes, como é o caso da Rodoviária e da Plataforma das Artes e da Criatividade, criada esta sobre projeto de readaptação do antigo mercado. Se grandes iniciativas como as exposições mundiais ou cidades de cultura não têm no horizonte melhorar-se, ficar com algo do que foi criado expressamente para elas, então o desperdício pode ser imenso. A arte é essencial, mas a sua expressão, em exposições temporárias, ciclos de cinema ou teatro, é efémera. Em Guimarães, parece que vai ficar obra construída que constitui, de resto, infraestrura para a manutenção das iniciativas culturais permanentes e futuras iniciativas de grande porte, temporárias.

O Centro Internacional das Artes José de Guimarães, integrado na Plataforma das Artes e da Criatividade, constitui precisamente um núcleo edificado para manifestações temporárias e permanentes. É um edifício magnífico, espaçoso, desenhado com luz. Coroa de glória de qualquer artista, que vê a sua cidade natal, e o seu país, reconhecerem de modo tão evidente a sua obra, o CIAJG exibe neste momento algumas obras assinadas por José de Guimarães, e ainda o seu espólio, os objetos de arte que foi colecionando ao longo da vida, em países vários. Este espólio, muito rico, não só do ponto de vista estético como etnográfico, ocupa dois dos três pisos do edifício e constitui o seu acervo patrimonial. É representado por objetos de registo mágico e sagrado, em especial máscaras e esculturas africanas, sobretudo de países do Golfo da Guiné. Destacam-se o Gana e atual Benim, que, através dos escravos, fizeram transportar as suas religiões animistas para o Brasil e outros países da América Central e do Sul. Em menor quantidade, também figuram nas exposições objetos de origem índia e paramentos da Igreja católica. A homologação simbólica faz-se sentir com alguma força provocatória, nestas cidades nortenhas tão religiosas, na sala em que figuram ricos paramentos católicos roxos ao lado de paramentos brancos africanos constituídos por máscara e saiote de palha. Ao lado, ocupando toda a parede, entre bandeira da Mocidade Portuguesa e insígnias relativas a Che Guevara, uma pele de cordeiro manchada de sangue.

José de Guimarães não está bem representado como pintor no Centro que tem o seu nome. Na casa dos 70 anos, ele tem muitas obras dispersas por colecionadores particulares e museus de todo o mundo. Porém o Centro representa-o de outras maneiras. Por exemplo, qualquer investigador que queira trabalhar a sua obra terá obrigatoriamente de estudar o seu espólio, pois o conjunto de objetos etnográficos e documentação em filme e vídeo dão-nos a conhecer o perímetro dos seus interesses, influências, partilhas intelectuais e preocupações. A exposição, vastíssima, dá-nos a ler a sua mente, em que à pulsão artística se alia a política. As máscaras e outros objetos etnográficos dão-nos a medida do símbolo enquanto imperativo de dominação e resistência a poderes estrangeiros. Aimée Césaire, com o seu ensaio sobre o colonialismo, junto à mesa de vídeos, é um dos sinais de leitura mais fortes desta posição cívica do pintor.

Da agenda bem recheada tivemos oportunidade ainda de assistir a um concerto memorável de Ute Lemper. Na sequência das tomadas de consciência política de José de Guimarães, Ute Lemper, uma alemã muito crítica, que a dada altura teve de sair do seu país para se radicalizar em Nova Iorque, deu-nos a ouvir canções da Resistência Francesa, bem como de Jacques Brel e de Edit Piaff. Interpretou as mais famosas canções de Kurt Weill e da peça "Cabaret", em que já foi Sally Bowles, tal como Liza Minelli. Umas quinze canções inesquecíveis, que cobriram uma geografia musical que vai desde Kurt Weill a George Gershwin e Astor Piazzola. De notar, a par das qualidades de cantora, as de performer: com a sua voz cheia de paisagens, ela faz encenações teatrais.

Veremos o que nos reserva amanhã Francisco Teixeira, outro bom conhecedor de Guimarães, mas disso ficará certamente memória para outro artigo.

 

Braga, 29 de Julho de 2012

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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A marca que tem resistido a todas as polémicas sobre a origem da nacionalidade e a praça renovada que tem levantado merecida contestação

   
 

Uma expressão feliz de criatividade a partir de elementos pobres, ao lado de um casario atrativo pelas linhas despojadas

   
 

Ruas e vielas, com motivos religiosos/profanos,  a surpreenderem os passantes, vizinhos ou forasteiros

   
 

Maria Estela Guedes ouve atenta Maria Teresa Morais Pimentel Seara Cardoso, conhecedora dos cantinhos da cidade, e que nos presenteou com uma visita inesquecível

   
 

Janelas abertas ou fechadas, e até rótulas, abrindo ou fechando o pulsar das gentes nos usos da urbanidade

   
 

Arcos a emoldurarem o momento de pé sozinho ou o sentar do convívio à volta da mesa

   
 

Esculturas mágicas africanas dentro de linhas arquitectónicas cujos ângulos recobrem forças que perspetivam subida

   
 

 

Jornal InComunidade (Porto)

 

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011; "Trabalhos da Maçonaria Florestal Carbonária", Lisboa, Apenas Livros, 2012.
TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira.

 

 

© Maria Estela Guedes
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