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A família, de extracção humilde, chegara a Carcavelos
vinda de Olhão, Algarve, fugindo a um surto de desemprego, em meados de
1940. Meu pai conseguira arranjar trabalho numa fábrica, minha mãe
costurava para fora, a nossa vida a três (depois a quatro: entretanto
nascera minha irmã) era pautada pela poupança estrita sem jamais ter
sido assolada pela penúria extrema. Meu pai tinha numa segunda vida a
grande paixão: o Escotismo. Surpreendido pela estagnação em que
encontrara o Grupo local, chamou a si a responsabilidade de o reactivar,
prosseguindo a carreira iniciada em Olhão, onde chefiava o Grupo nº 6 da
Associação dos Escoteiros de Portugal. Enquanto escoteiro de corpo e
alma foi alimentando, com contida angústia, a convicção de que o filho
nunca viria a ser o escoteiro por ele sonhado. Não o enganaram as suas
intuições. Obediente a uma ética severa como a preconizada por
Baden-Powell, acabou por perceber que eu trocava facilmente a boa acção
diária, os acampamentos, o compromisso de honra, os fogos de conselho,
etc., por uma jogatana no imenso estádio que era a nossa bela praia na
maré baixa ou no “campo da farmácia”, um terreiro lisinho mesmo diante
da botica e onde, uma ou duas vezes por ano, era montado um circo para
curtas séries de espectáculos com bilhetes a preços populares. Ainda
assim, fiz o compromisso de lobito. |
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O meu progenitor visava dois horizontes de desígnio:
a concórdia universal pela via segura do Escotismo e um grande futuro
para o seu rapaz. Era verdadeiramente um homem bom, cordato, a quem a
violência repugnava. Só recorria ao castigo físico, excepção sempre
dolorosa para ele, quando não podia mesmo evitar o correctivo. Precediam
este longas palestras, a que eu no foro íntimo chamava sermões (no mesmo
instante entravam-me por um ouvido e saiam pelo outro), de enaltecimento
das boas condutas morais e cívicas, e só o reconhecimento da inutilidade
da “retórica” o fazia pisar o traço contínuo que proibia a estalada, o
puxão de orelhas ou o pontapé no traseiro. Era preciso haver da minha
parte muita reincidência em comportamentos ruins (segundo os seus
padrões) para ele desancar o miúdo que desveladamente preparava para ser
mais tarde uma pessoa de bem.
Ora existia na localidade uma taberna, assim chamada
com um pouco de exagero posto não se tratar propriamente de um tasco
básico. Detentora do alvará de “casa de pasto” estava uns furos acima do
balcão de venda de vinho a copo. E o que havia na “casa de pasto” que
pudesse levar-me a correr o risco de suscitar a cólera paterna, caso lá
fosse apanhado em flagrante delito de presença? Duas coisas cintilantes,
no logradouro das traseiras: uma telefonia e um jogo de matraquilhos. A
telefonia (que só anos depois chegaria a nossa casa) “dava” os relatos
dos jogos do Campeonato Nacional de Futebol, aos domingos à tarde, e a
parca semanada era gasta a manipular os varões em que os “jogadores”
devidamente equipados “chutavam” a bolinha de pau com a finalidade de a
introduzir nuns buracos rectangulares, nos topos, também chamados
balizas.
Um dia levei uma sova, assim descrita
no diário paterno (25/5/1950):
Ontem, o meu Júlio apanhou uma tareia. E se foi bem
puxada. Livra!
Tenho por alvo fazer dele um homem melhor do que
eu. E para isso ele está em muito melhores condições do que as que eu
tive aos treze anos. Então, com este propósito, só tenho de corrigi-lo e
pô-lo no caminho a seguir, sob a minha vigilância, até ter os 21 anos, a
sua maior idade.
Mas não sei o quê!, a verdura dos anos, o pouco
juízo, a loucura da época? O caso é que o jogar à bola é o seu
passatempo predilecto, favorito mesmo; ao fazê-lo, para ele tanto faz
vestir os melhores fatos, calçar os melhores sapatos, aliás é tudo o que
tem de melhor e já está no fio, ou então ir para a taberna do senhor
Carlos Silva jogar com os matraquilhos, onde se reúne toda a malta do
lote dele e que amanhã serão os continuadores dos fregueses da boa pinga
e os detentores da miséria moral em que foram criados.
Ora a mim repugna-me tudo isto, quanto mais ver o
meu filho no meio deste lodaçal.
Já por mais de uma vez o tinha avisado que lá não
o queria ver.
Acontece que cheguei a casa, perguntei por ele, e
a mãe disse-me que tinha ido buscar os meus sapatos ao sapateiro. Como
ele não voltasse desse recado como era de esperar, fui ver onde estava.
Por pouca sorte fui encontrá-lo na taberna. Assim que me viu, mudou de
cor: estava a jogar aos matraquilhos.
Veio comigo, cheguei a casa, não me pude conter:
comecei a bater-lhe com bofetadas e pontapés, até fui buscar um bocado
de borracha redondo e com ele lhe bati. Deitou-se no chão mas eu no
desespero da ira batia a torto e a direito. Acompanhava as pancadas com
as minhas razões, que vociferava doidamente, a mãe a gritar em sua
defesa e eu sem de nada querer saber. Ia-me perdendo.[…]
Registo aqui este episódio para que ele um dia ao
lê-lo o julgue e faça a sua apreciação com o entendimento maduro de
homem consciente.
Pela primeira vez divulgo esta peça íntima,
diarística, de forte cunho realista, e disso peço desculpa a meu pai
onde quer que agora repouse, mas foi por uma boa causa: ajudar a
situar-me em relação ao futebol num contexto que ele jamais terá
imaginado para o filho. Esta é também uma prenda que lhe ofereço, no ano
do centenário do seu nascimento (1912-2012). Faço-o com ternura, apesar
da sova memorável, devidamente documentada. A sua índole de veludo viria
a revelar-se quando, já resignado a não me ver escoteiro a sério, e
decerto com o coração partido, assinou a autorização para que, aos
dezassete anos, eu passasse a fazer parte da equipa de futebol júnior do
Grupo Sportivo de Carcavelos.
Segundo creio, nunca me viu actuar.
Também não perdeu grande coisa, nunca fui futebolista
talentoso.
Mas joguei com prazer até aos quarenta anos. |
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Júlio Conrado (Olhão, 26.11.1936,
Portugal)
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica
literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro),
centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez
crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de
Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista
Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de
Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de
Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação
Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos
Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios
literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão,
inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010),
Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido
no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha
casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia:
Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009).
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português |