REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 
 

 

 

 

 

JÚLIO CONRADO

O meu futebol e um centenário

    (Apontamentos para um livro de memórias)      

                                

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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  EU, SEGUNDO O MEU PAI*
 

A família, de extracção humilde, chegara a Carcavelos vinda de Olhão, Algarve, fugindo a um surto de desemprego, em meados de 1940. Meu pai conseguira arranjar trabalho numa fábrica, minha mãe costurava para fora, a nossa vida a três (depois a quatro: entretanto nascera minha irmã) era pautada pela poupança estrita sem jamais ter sido assolada pela penúria extrema. Meu pai tinha numa segunda vida a grande paixão: o Escotismo. Surpreendido pela estagnação em que encontrara o Grupo local, chamou a si a responsabilidade de o reactivar, prosseguindo a carreira iniciada em Olhão, onde chefiava o Grupo nº 6 da Associação dos Escoteiros de Portugal. Enquanto escoteiro de corpo e alma foi alimentando, com contida angústia, a convicção de que o filho nunca viria a ser o escoteiro por ele sonhado. Não o enganaram as suas intuições. Obediente a uma ética severa como a preconizada por Baden-Powell, acabou por perceber que eu trocava facilmente a boa acção diária, os acampamentos, o compromisso de honra, os fogos de conselho, etc., por uma jogatana no imenso estádio que era a nossa bela praia na maré baixa ou no “campo da farmácia”, um terreiro lisinho mesmo diante da botica e onde, uma ou duas vezes por ano, era montado um circo para curtas séries de espectáculos com bilhetes a preços populares. Ainda assim, fiz o compromisso de lobito.

 

*António Viegas Custódio, Fonte de Apra, Loulé (1912-1992): Escoteiro. Operário, escultor, maquetista, protésico, poeta, leitor de romances. Chefe dos Grupos de Escoteiros nº 6 (Olhão), nº 16 (Carcavelos) e nº 12 (Sassoeiros). Condecorado pela Associação dos Escoteiros de Portugal por uma vida dedicada ao Escotismo.          

Na foto: António Viegas Custódio aos 21 anos. Escoteiro uma vez, escoteiro para sempre.

 

O meu progenitor visava dois horizontes de desígnio: a concórdia universal pela via segura do Escotismo e um grande futuro para o seu rapaz. Era verdadeiramente um homem bom, cordato, a quem a violência repugnava. Só recorria ao castigo físico, excepção sempre dolorosa para ele, quando não podia mesmo evitar o correctivo. Precediam este longas palestras, a que eu no foro íntimo chamava sermões (no mesmo instante entravam-me por um ouvido e saiam pelo outro), de enaltecimento das boas condutas morais e cívicas, e só o reconhecimento da inutilidade da “retórica” o fazia pisar o traço contínuo que proibia a estalada, o puxão de orelhas ou o pontapé no traseiro. Era preciso haver da minha parte muita reincidência em comportamentos ruins (segundo os seus padrões) para ele desancar o miúdo que desveladamente preparava para ser mais tarde uma pessoa de bem.

Ora existia na localidade uma taberna, assim chamada com um pouco de exagero posto não se tratar propriamente de um tasco básico. Detentora do alvará de “casa de pasto” estava uns furos acima do balcão de venda de vinho a copo. E o que havia na “casa de pasto” que pudesse levar-me a correr o risco de suscitar a cólera paterna, caso lá fosse apanhado em flagrante delito de presença? Duas coisas cintilantes, no logradouro das traseiras: uma telefonia e um jogo de matraquilhos. A telefonia (que só anos depois chegaria a nossa casa) “dava” os relatos dos jogos do Campeonato Nacional de Futebol, aos domingos à tarde, e a parca semanada era gasta a manipular os varões em que os “jogadores” devidamente equipados “chutavam” a bolinha de pau com a finalidade de a introduzir nuns buracos rectangulares, nos topos, também chamados balizas.

Um dia levei uma sova, assim descrita no diário paterno (25/5/1950):

Ontem, o meu Júlio apanhou uma tareia. E se foi bem puxada. Livra!

Tenho por alvo fazer dele um homem melhor do que eu. E para isso ele está em muito melhores condições do que as que eu tive aos treze anos. Então, com este propósito, só tenho de corrigi-lo e pô-lo no caminho a seguir, sob a minha vigilância, até ter os 21 anos, a sua maior idade.

Mas não sei o quê!, a verdura dos anos, o pouco juízo, a loucura da época? O caso é que o jogar à bola é o seu passatempo predilecto, favorito mesmo; ao fazê-lo, para ele tanto faz vestir os melhores fatos, calçar os melhores sapatos, aliás é tudo o que tem de melhor e já está no fio, ou então ir para a taberna do senhor Carlos Silva jogar com os matraquilhos, onde se reúne toda a malta do lote dele e que amanhã serão os continuadores dos fregueses da boa pinga e os detentores da miséria moral em que foram criados.

Ora a mim repugna-me tudo isto, quanto mais ver o meu filho no meio deste lodaçal.

Já por mais de uma vez o tinha avisado que lá não o queria ver.

Acontece que cheguei a casa, perguntei por ele, e a mãe disse-me que tinha ido buscar os meus sapatos ao sapateiro. Como ele não voltasse desse recado como era de esperar, fui ver onde estava. Por pouca sorte fui encontrá-lo na taberna. Assim que me viu, mudou de cor: estava a jogar aos matraquilhos.

Veio comigo, cheguei a casa, não me pude conter: comecei a bater-lhe com bofetadas e pontapés, até fui buscar um bocado de borracha redondo e com ele lhe bati. Deitou-se no chão mas eu no desespero da ira batia a torto e a direito. Acompanhava as pancadas com as minhas razões, que vociferava doidamente, a mãe a gritar em sua defesa e eu sem de nada querer saber. Ia-me perdendo.[…]

Registo aqui este episódio para que ele um dia ao lê-lo o julgue e faça a sua apreciação com o entendimento maduro de homem consciente.

Pela primeira vez divulgo esta peça íntima, diarística, de forte cunho realista, e disso peço desculpa a meu pai onde quer que agora repouse, mas foi por uma boa causa: ajudar a situar-me em relação ao futebol num contexto que ele jamais terá imaginado para o filho. Esta é também uma prenda que lhe ofereço, no ano do centenário do seu nascimento (1912-2012). Faço-o com ternura, apesar da sova memorável, devidamente documentada. A sua índole de veludo viria a revelar-se quando, já resignado a não me ver escoteiro a sério, e decerto com o coração partido, assinou a autorização para que, aos dezassete anos, eu passasse a fazer parte da equipa de futebol júnior do Grupo Sportivo de Carcavelos.

Segundo creio, nunca me viu actuar.

Também não perdeu grande coisa, nunca fui futebolista talentoso.

Mas joguei com prazer até aos quarenta anos.

 

 

Integrando uma equipa de juniores do Grupo Sportivo de Carcaveçlos (qurto, em pé, da esquerda para a direita)

 

 

Jornal InComunidade (Porto)

 

 

 

 

Júlio Conrado  (Olhão, 26.11.1936, Portugal) 
Escritor, crítico literário. Durante vários anos alternou a crítica literária com a ficção (incursões esporádicas na poesia e no teatro), centrando-se actualmente no romance a sua principal actividade. Fez crítica no Diário Popular, Vida Mundial, Colóquio Letras e Jornal de Letras. Colaborador de Latitudes, Cahiers Lusophones (Paris) e Revista Página da Educação (Porto). Coordenou a revista Boca do Inferno, de Cascais. Integrou os corpos sociais de Associação Portuguesa de Escritores, Pen Clube Português, Centro Português da Associação Internacional dos Críticos Literários e Associação Portuguesa dos Críticos Literários. Participou nos júris dos principais prémios literários portugueses. Textos seus estão traduzidos em francês, alemão, inglês, húngaro e grego. Obras principais: Romance: Barbershop (2010), Estação Ardente (Prémio Vergílio Ferreira / Gouveia (2006), Desaparecido no Salon du Livre (2001), De Mãos no Fogo (2001), As Pessoas de minha casa (1985), Era a Revolução (1977) e O Deserto Habitado (1974); Poesia: Desde o Mar (2005); Teatro: O Corno de Oiro (2009). 
Ver currículo alargado no site do Pen Clube Português

 

 

© Maria Estela Guedes
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