|
2
A obscuridade permite um jogo com a realidade. Durante a noite
insone, a ordem de grandeza afasta-se do concreto das coisas, dos
acontecimentos. E ainda que eu pretendesse narrar-vos ocorrências, as
que se situam forçosamente num tempo cujo círculo se foi fechando para
mim, não o conseguiria. Uma única certeza, já não vivo.
No entanto, esta forma de estar, muito próxima da insónia, quando
evitava que o olhar resvalasse pelas paredes do quarto em escuridão
total, o corpo, inquieto, ansiando por descanso, causa-me alguma
apreensão: sempre dedicara cuidado extremo às circunstâncias, reprovando
a leviandade de alguns. E, no entanto, morri. Não consigo ainda
aceitá-lo, aliás creio que perambulo pelo espaço intermédio,
desconhecendo onde se situa. Apercebi-me, em dado momento, de uma paz
imensa, irreal, eu quase flutuando à superfície do nada: de súbito,
nenhum constrangimento, sequer o assalto repentino de uma preocupação a
penetrar-me o sono sempre a estilhaçar-se, nada chegava até ao meu
cérebro e dele, em relação aos outros, nada emanava. Foi nesse momento
que tive a certeza de estar fora do mundo, até de mim, e continuava a
recordá-lo.
De uma coisa me avisa a experiência antiga da memória, tenho de
apressar-me a transmitir-vos o que tiver a dizer, há-de chegar o momento
3a
em que tudo se apagará no meu cérebro, a escuridão que me era exterior,
nas noites de insónia, invadiu-me por dentro, esquecer-me-ei de mim, e
já nem saberei que morri.
Apesar deste estado esquisito, sei que se há coisas que um vivo deve
evitar, a um morto nada se recusa, sempre vi os ausentes da vida como
“não seres” abandonados a si mesmo, e, na verdade, não pode haver
abandono maior, mais radical.
Estou deitada, de negro, assim durante metade da existência, a
disparidade abissal é este estar, a imobilidade, sem capacidade de ir no
encalço do que quer seja, procurar, entristecer, sorrir, sofrer, tenho
saudades já do sofrimento, pelo longo convívio, do mesmo modo a maior
parte da gente, em qualquer parte do mundo.
Quero movimentar os dedos - se eram ágeis! -e não consigo despegá-los,
tento erguer as pálpebras - eu que tanto ansiava pelo sono bendito - e
continuam descidas. Estranho, em roda de mim é o silêncio, agora recordo
- embora os mortos nada recordem, isto é mero automatismo - que sempre
alguém suspirava, chorava, persistente um ligeiro sussurro, qual zumbido
de besouro, em todo e qualquer velório. O morto, sempre indiferente. Eu,
ainda que quisesse ser generosa nesta circunstância extrema, nada
conseguirei expressar. Pela primeira vez, não poderei fazer valer a
minha vontade, menos ainda tomar decisões, constrangida, mais que nunca,
à resolução alheia. Mas se me descuravam enquanto viva…
Agora, se conseguisse rir, riria, tanto temi a morte de outros que
estimava, ou porque eram velhos, ou por imprescindíveis, e eles ficaram,
quem partiu fui eu. Lamentar-me-ão… Ora, sequer deram importância, eles
os mais relevantes para si próprios. Enquanto viva, que sentiriam por
mim? Talvez desdém, tive sempre consciência disso, e fingia que não
notava, por elegância, tacto.
4
Irá acontecer o que acontecia comigo, em relação a alguns outros. Um
dia, recordava alguém, concluía que o não via há muito: morrera há dois,
três anos, mais. Entristecia, mas logo assomo de bom senso me fazia
concluir que não valia a pena chorar, passara tempo… Assim alguns, em
relação a mim.
Confesso que sou uma defunta que tenta ficcionar, a conjuntura é
estimulante para a que fui, uma escritora, sinto-me um pouco qual Cubas,
porém agora não posso reler nem homenagear Machado, lançando-lhe daqui
uns chistes, ele haveria de entender-me, já que o entendi – até onde foi
possível, mais ainda agora, que ambos estamos do mesmo lado. Será melhor
assim, quem sabe não irritaria uns tantos, que a Machado ser-lhe-ia
indiferente, mais ainda a Cubas, embora usássemos o mesmo tinteiro, o da
melancolia se bem que a personagem de Machado tenha morrido primeiro e
escrito depois. Eu escrevi antes.
Iniciei este monólogo tétrico – um morto que discorre -, e não pretendo
assustar ninguém, pois não consigo vislumbrar o momento em que deixei a
vida. E começo a pensar, tanto quanto um morto consegue pensar, que não
vale a pena tamanho susto para coisa pouca. O que me preocupa é a
aridez, o vazio.
Rodo a memória, procurando acontecimentos ou a lembrança deles, pela
longa prática, insinuo-me pelas frestas do vivido como se tivesse a
espessura de um fio de palavras, ténue, sujeito a quebrar-se, suponho, e
surge-me então uma mancha de cor, tento delinear contornos, terei de
criar alguma coisa, e tudo o que descrever será de uma nova ordem, num
outro plano, isto o que suponho. Todavia, neste silêncio absurdo,
antevejo dificuldades com a inestimável narração. Se tivesse as mãos
atadas, quando viva, nada teria produzido, agora que as tenho inermes,
ainda que livres, e que estranha paz me invade, tentarei mover-me na
horizontal, nos dois sentidos, a verticalidade é para quem palmilha e eu
deixei de caminhar.
A imagem colorida inesperada, decompondo-se, sugere que a eternidade é
formada de camadas, que as páginas da vida e dos livros, aqui, não têm
passado nem futuro, menos ainda presente, terei de adaptar-me a novos
códigos. Que digo eu, isto é ainda resíduo do antigo delírio. Mas
pressinto, acreditem, que não estou só na solidão, e tudo em minha volta
é mudo, quieto, sinto um pulsar, uma vibração de energia acumulada sob a
terra pelos corpos delidos, que o vão sendo menos, e a humanidade
estremece de emoção, ânsia de tranquilidade na noite insone, estourou
mais um conflito, lançando alguns em pedaços na direcção do nada. Eram
e, de súbito, deixaram de ser, isto é, os outros aperceberam-se de tal,
eles não. Só agora os compreendo, certa de que jamais sentirei coisa
alguma. O marasmo tomou-me, uma vez que, discorrendo ainda, estou certa
da indiferença: o coração não bate, agitado, querendo fugir-me do peito,
a emoção, se assim posso denominá-la, é plana, como o sinal rectilíneo
que indica a fuga da vida.
Para onde terá fugido a minha vida? Para onde vai a vida, depois que nos
abandona? Acredito que irá incrementar as reservas de energia da
natureza, não já através do nosso corpo, mas do nosso espírito.
Permanecerá este connosco, por algum tempo, ainda que mortos, para nos
não sentirmos sós, assim, abandonados… Para onde terá ido a minha vida,
provavelmente para onde sempre foram os meus desejos, para lugares
longínquos, afastados de mim, ligados ao passado: o presente, a partir
de determinada altura, tornara-se detestável. Assim, com a prática longa
da fuga, deve ter-me sido fácil entrar na morte, por esse motivo me não
apercebi de ter franqueado a eternidade, isto é, uma das camadas dela,
suponhamo-la como um livro imenso de páginas incontáveis, mas
decifráveis, pelo olhar dos vivos, naturalmente: basta pensar o tempo, o
mundo, a história.
Apercebo-me de que não consigo saber o que vos disse, desde que morri
deixei de ter memória imediata. Acontece comigo talvez um espasmo
neuronal, um cérebro recusa apagar-se, sou como uma lamparina trémula
sob camadas de tempo a sufocá-la, ainda se pudesse chorar estrelas, mas
não as vejo: onde fica então a eternidade? Começo a aceitar porque se
diz da morte o eterno nada, motivo que ainda me leva a dizer com denodo,
embora saiba que, uma vez defunta, sou nada mais que resignação. Estarei
como que envolta em neblina, entre sombras esmorecidas, agora não há
canteiros, rosas, mas deixaram de interessar-me floras, interessa-me
coisa alguma, consigo ainda recusar o silêncio mental, mas por quanto
tempo? Sombras fugidias de rostos passam por mim ou eu por elas em
direcção do deserto, e desconheço onde fica, era só areia, desapareceu
em nada, quanto eu.
Afastei-me de mim, estou certa, vêem-me palavras à ideia e não sei bem
como ordená-las, tudo é automatismo de uma atitude, a da escrita,
durante muito tempo. Terá sido? Mas o que é o tempo, deste lado, no
vazio? Não existe, tanto posso ser uma recém-nascida como uma
recém-morta. Apreciei rios velozes, mas onde estão os rios? No Inverno
deliciava-me o odor peculiar das magnólias enfeitadas de flores
gigantescas, mas apesar de saber ainda aquilo de que gostava já não sei
se gosto, tudo é nada, até a configuração de tais flores me é
distorcida. Agora vou sabendo porque este estado exige resignação, pela
impossibilidade de aproximar a imagem na memória. E começo a desprezar a
resignação no além vida, por estes pequenos desacertos, a vida fugiu de
mim roubando-me sorrisos e prantos, até barcos, tudo naufragou, enredado
na mortalha, a veste da morte. Nada terei trazido da viagem? Nada, nada
trouxe, só lampejos de memória a apagar-se. Sempre afirmei que o tempo
tem voz, mas somos nós a dar-lha, em mim o tempo ficou mudo, desde que
perdi a minha; no entanto, ainda ressoa por dentro de mim, debatendo-se
de encontro aos meus limites, como uma abelha de encontro a uma vidraça,
ansiando a colmeia, pólen.
Quando um sino tangia, diziam-me que era para escutar os mortos, mas
alguém nos ouve? Não, escutam-se a si, os vivos, e recordam as vozes dos
que partiram, durante algum tempo, pois que a voz é o que primeiro se
apaga na lembrança, mais depressa se recordam linhas, traços de uma
feição, que vozes, logo misturadas ao ruído de tudo, num vórtice de
esquecimento.
Sinto a falta de mãos ao encontro das minhas: agora, na minha mão a
outra mão, entrelaçados os dedos! Quem, vil, a isto me condena? A vida
que se ausentou? Sim, vingou-se de mim, por tê-la dominado, sujeitado,
quando ela queria deixar-me, ano após ano, desgosto após desgosto. Nada
haverá de pior que a vida, nem sequer um incêndio, labaredas, aquele
sempre deixa cinzas, restos. A vida parte e nada deixa … nada! Ausência,
naufrágio de alegria? Mas o que é a alegria, agora? Tudo vai sendo coisa
alguma, deixaram de acender-se as primaveras.
Qual nuvem correndo no encalço da noite, assim eu ainda tento alcançar
restos de memória encasulada num cérebro que há-de mirrar, percorro os
sonhos dos outros, vêm ao meu encontro, eu sempre desconfiara que os
sonhos são imagens fugitivas, sorvidos por vórtice mortal, por isso lhes
chamamos pesadelos, são pequenas performances de ausência, intuímos.
Sempre detestara sonhar, gostava de noites sem imagens, escuras, pesadas
do breu do sono, nada ansiava mais que dormir; vergastada pela insónia,
os desgostos tomavam proporções monstruosas, lançava-me do leito com
energia, vagueava pela casa, regressava à escuridão do quarto, fora dele
era dia, optara por anular a noite, o tempo natural do sono. Agora me
pergunto: seria premonição, a antecipação da angústia dos não vivos?
Durante grande parte da vida, vivi morta. Agora, defunta, tento o
devaneio. Será este estado também ele uma representação?
O sangue imobilizou-se, deixei de navegar por pequenos afluentes, em
direcção do mar, abandonei, de súbito, toda uma paisagem interior. Que
dizer de mim? Nada. Irei repetir esta palavra uma vez e outra, e tudo
será mudo e silencioso, a própria obscuridade capta o silêncio, qual
buraco negro no abismo do Universo, onde a Memória cai a pique, qual ave
de rapina descendo do espaço, dardo atravessando camadas de ar, até ao
solo, por vezes rasando-o, mas, agora, nem aves de rapina terei por mim,
pois me não alcançam, estou sitiada e condenada ao silêncio, as palavras
irão escorrendo de mim, como a água dos poços, espalhados pelos
desertos, e nada me aflige, não temo perder a escrita, ela sim, parece
temer perder-me, ainda se me agarra, e começo a ver melhor daqui o
mundo, nada me distrai, sequer a imaginação, reduzida a espasmos da
fala, do dizer, palavras que já não endereço, como quem espalha migalhas
de pão para fastio de aves; não deixo vestígios, não sofro o sufrágio do
olhar alheio, estão por aí, os outros meus corpos de anos e anos, numa
outra camada do solo e da eternidade.
Eis-me de volta ao concreto da não-existência. Morri. Passei de um
estado a outro, condensei-me como a nuvem, entristece-me desconhecer o
porquê de mudança tão radical. Recordo uma grande, enorme angústia;
estaria só, certo é que alguém me matou, ainda que ausente, ainda que
tenha partido antes de mim? Tê-lo-á executado devagarinho, à míngua, e
eu presa à teia das palavras, enredada até à asfixia, atados nós, ao
longo dos anos; eu sempre a estender-me para o tempo que se aproximava,
sem olhar para trás mas recordando o que me precedera, a sucessão de
acontecimentos, a dor, coisa que agora não sinto, nada me faz sofrer,
nem sequer a certeza de ter-me ausentado do mundo.
Nesta apatia, as emoções arrefecem, em breve terei esquecido o que era o
amor, que, na realidade, não sei onde fica, desconheço já o que tenha
sido, resta como que o automatismo de um desempenho. Uso vocábulos em
inconsciência, qual espasmo da escrita a sair de mim imitando bolhas
sulfurosas, e não sei se isto é triste, talvez não seja, a alegria é uma
palavra, dela perdi o conceito. E terei sabido alguma vez o que era,
foi, a alegria, a exultação perante um acontecimento? É forçoso que sim,
não poderei mencionar nenhum, perdi-os, ficaram todos à superfície do
mundo. Enquanto descia, percebi que o silêncio que me engolira desde a
morte, tinha por companheira a surdez, nada ouvia, tudo seria irreal se
não exprimisse a irrealidade: imagens sem som, uma sequência muda, um
écran que vai perdendo o contraste e tudo se torna mancha num mundo
sombrio. Eu não sei se vejo, nada distingo, perdi-me no vazio da não
existência. Começo a ter uma ideia pouco consistente do mundo, de súbito
ficou acima de mim, como dantes a calote celeste, que ficou demasiado
longínqua e invisível, a lua… sinto-me do outro lado dela, no lado mais
sombrio, desabitado de sonhos. |
|
Filomena Cabral nasceu no Porto em 1944. Poeta, ficcionista e
jornalista, viveu em Angola na década de 60. Foi co-fundadora da revista
Serpente. Apesar de ter começado pela poesia (1976), revela-se
plenamente na ficção, sobretudo a partir do romance Tarde de mais
Mariana (1985). Tem colaborado em vários jornais e revistas,
destacando-se O Primeiro de Janeiro, Jornal de Notícias, O Comércio do
Porto, Diário de Lisboa, Jornal de Letras e Letras & Letras.
Tem sido convidada a participar em festivais Internacionais de Poesia (Yverdon
– Suíça – e Strugga – Macedónia), em congressos internacionais de língua
e literatura portuguesa (Universidade de Santiago de Compostela,
Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de São Paulo – Assis,
Pontifícias Universidades de São Paulo e Rio de Janeiro, Universidade
Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal de Campinas).
Ganhou o Prémio Especial de Literatura Portuguesa – 1993, da Associação
Paulista de Críticos de Artes, São Paulo, Brasil. A Câmara Brasileira do
Livro (Brasília) atribuiu-lhe um Diploma de Mérito Cultural em 1994,
pela presença na Feira Internacional de Cultura de Brasília. Foi nomeada
sócia da Academia Lusíada de Ciências Letras e Artes, em São Paulo.
Obras publicadas: Sol intermitente (Porto, 1976); Poemas do Amor e da
Morte (Porto, 1977); Muxima (Porto, 1979); Iluminuras (Lisboa, 1987).
Ficção – Staccato (novela, Porto, Brasília Editora, 1981); Os Anjos
andam nus (Lisboa, Ed. Ulmeiro, 1985); Tarde de mais Mariana (romance,
Prémio ICentenário do BB&I; Porto, 1985 – 2ª edição, 1986, Ed.
Afrontamento); Um Homem de Sonho (novela, Lisboa, Ed. Rolim, 1986);
Elegia para um Corpo Adormecido (Porto, Ed. Afrontamento, 1988);
Maldamor (romance, Lisboa, Pub. Europa-América, 1988); Amatus (Porto,
Ed. Afrontamento, 1990); Obsidiana (romance, Pub. Europa-América);
Finale (Porto, Ed. Afrontamento, 1992); Prantos (romance, Lisboa, 1990;
Prémio Eça de Queirós, 1ª menção, Câmara Municipal Lisboa, 1992, Difel);
Madrigal (romance. Prémio da Associação Paulista de Críticos de Artes,
Brasil; Lisboa, 1993, Difel); Angola, no entretanto do tempo,
Urila-o-kimbi (novela, Lisboa, Difel, 1994); Um Amor Cortês (romance,
Porto, Campo das Letras, 1996; Rio de Janeiro, Bertrand/Brasil, 1997);
Em Demanda da Europa (romance, Porto, Campo das Letras, 1997); Viagem.
Memória e Sertão e Ouro. Honor, Corsários, Ilusiones (dois romances em
conjunto, Lisboa, Difel, 2000); O Grito da Garça (teatro, Campo das
Letras, 2001); Mar Salgado (Difel, 2002); Oklahome Blue (romance, Campo
das Letras, 2005); A Noite Transfigurada (romance, Edições Afrontamento,
2006); Ornato Cantabile (romance, Edições Fólio, 2007); Vertigem
(romance, Editorial Teorema, 2009); Ardor Selvagem (romance, Edições
Afrontamento, 2010); Os Pavões de Gori (romance, Editorial Teorema,
2010).
Foto e biobibliografia colhidos em:
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/fcabral.htm |