REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 
 

 

 

 

FILOMENA CABRAL
                
  
 Insomnya

2010

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  
 
 
 
 
 

2
A obscuridade permite um jogo com a realidade. Durante a noite insone, a ordem de grandeza afasta-se do concreto das coisas, dos acontecimentos. E ainda que eu pretendesse narrar-vos ocorrências, as que se situam forçosamente num tempo cujo círculo se foi fechando para mim, não o conseguiria. Uma única certeza, já não vivo.
No entanto, esta forma de estar, muito próxima da insónia, quando evitava que o olhar resvalasse pelas paredes do quarto em escuridão total, o corpo, inquieto, ansiando por descanso, causa-me alguma apreensão: sempre dedicara cuidado extremo às circunstâncias, reprovando a leviandade de alguns. E, no entanto, morri. Não consigo ainda aceitá-lo, aliás creio que perambulo pelo espaço intermédio, desconhecendo onde se situa. Apercebi-me, em dado momento, de uma paz imensa, irreal, eu quase flutuando à superfície do nada: de súbito, nenhum constrangimento, sequer o assalto repentino de uma preocupação a penetrar-me o sono sempre a estilhaçar-se, nada chegava até ao meu cérebro e dele, em relação aos outros, nada emanava. Foi nesse momento que tive a certeza de estar fora do mundo, até de mim, e continuava a recordá-lo.
De uma coisa me avisa a experiência antiga da memória, tenho de apressar-me a transmitir-vos o que tiver a dizer, há-de chegar o momento

 
3a
em que tudo se apagará no meu cérebro, a escuridão que me era exterior, nas noites de insónia, invadiu-me por dentro, esquecer-me-ei de mim, e já nem saberei que morri.
Apesar deste estado esquisito, sei que se há coisas que um vivo deve evitar, a um morto nada se recusa, sempre vi os ausentes da vida como “não seres” abandonados a si mesmo, e, na verdade, não pode haver abandono maior, mais radical.
Estou deitada, de negro, assim durante metade da existência, a disparidade abissal é este estar, a imobilidade, sem capacidade de ir no encalço do que quer seja, procurar, entristecer, sorrir, sofrer, tenho saudades já do sofrimento, pelo longo convívio, do mesmo modo a maior parte da gente, em qualquer parte do mundo.
Quero movimentar os dedos - se eram ágeis! -e não consigo despegá-los, tento erguer as pálpebras - eu que tanto ansiava pelo sono bendito - e continuam descidas. Estranho, em roda de mim é o silêncio, agora recordo - embora os mortos nada recordem, isto é mero automatismo - que sempre alguém suspirava, chorava, persistente um ligeiro sussurro, qual zumbido de besouro, em todo e qualquer velório. O morto, sempre indiferente. Eu, ainda que quisesse ser generosa nesta circunstância extrema, nada conseguirei expressar. Pela primeira vez, não poderei fazer valer a minha vontade, menos ainda tomar decisões, constrangida, mais que nunca, à resolução alheia. Mas se me descuravam enquanto viva…
Agora, se conseguisse rir, riria, tanto temi a morte de outros que estimava, ou porque eram velhos, ou por imprescindíveis, e eles ficaram, quem partiu fui eu. Lamentar-me-ão… Ora, sequer deram importância, eles os mais relevantes para si próprios. Enquanto viva, que sentiriam por mim? Talvez desdém, tive sempre consciência disso, e fingia que não notava, por elegância, tacto.

 

Irá acontecer o que acontecia comigo, em relação a alguns outros. Um dia, recordava alguém, concluía que o não via há muito: morrera há dois, três anos, mais. Entristecia, mas logo assomo de bom senso me fazia concluir que não valia a pena chorar, passara tempo… Assim alguns, em relação a mim.
 
Confesso que sou uma defunta que tenta ficcionar, a conjuntura é estimulante para a que fui, uma escritora, sinto-me um pouco qual Cubas, porém agora não posso reler nem homenagear Machado, lançando-lhe daqui uns chistes, ele haveria de entender-me, já que o entendi – até onde foi possível, mais ainda agora, que ambos estamos do mesmo lado. Será melhor assim, quem sabe não irritaria uns tantos, que a Machado ser-lhe-ia indiferente, mais ainda a Cubas, embora usássemos o mesmo tinteiro, o da melancolia se bem que a personagem de Machado tenha morrido primeiro e escrito depois. Eu escrevi antes.
Iniciei este monólogo tétrico – um morto que discorre -, e não pretendo assustar ninguém, pois não consigo vislumbrar o momento em que deixei a vida. E começo a pensar, tanto quanto um morto consegue pensar, que não vale a pena tamanho susto para coisa pouca. O que me preocupa é a aridez, o vazio.
Rodo a memória, procurando acontecimentos ou a lembrança deles, pela longa prática, insinuo-me pelas frestas do vivido como se tivesse a espessura de um fio de palavras, ténue, sujeito a quebrar-se, suponho, e surge-me então uma mancha de cor, tento delinear contornos, terei de criar alguma coisa, e tudo o que descrever será de uma nova ordem, num outro plano, isto o que suponho. Todavia, neste silêncio absurdo, antevejo dificuldades com a inestimável narração. Se tivesse as mãos atadas, quando viva, nada teria produzido, agora que as tenho inermes, ainda que livres, e que estranha paz me invade, tentarei mover-me na horizontal, nos dois sentidos, a verticalidade é para quem palmilha e eu deixei de caminhar.
A imagem colorida inesperada, decompondo-se, sugere que a eternidade é formada de camadas, que as páginas da vida e dos livros, aqui, não têm passado nem futuro, menos ainda presente, terei de adaptar-me a novos códigos. Que digo eu, isto é ainda resíduo do antigo delírio. Mas pressinto, acreditem, que não estou só na solidão, e tudo em minha volta é mudo, quieto, sinto um pulsar, uma vibração de energia acumulada sob a terra pelos corpos delidos, que o vão sendo menos, e a humanidade estremece de emoção, ânsia de tranquilidade na noite insone, estourou mais um conflito, lançando alguns em pedaços na direcção do nada. Eram e, de súbito, deixaram de ser, isto é, os outros aperceberam-se de tal, eles não. Só agora os compreendo, certa de que jamais sentirei coisa alguma. O marasmo tomou-me, uma vez que, discorrendo ainda, estou certa da indiferença: o coração não bate, agitado, querendo fugir-me do peito, a emoção, se assim posso denominá-la, é plana, como o sinal rectilíneo que indica a fuga da vida.
 
Para onde terá fugido a minha vida? Para onde vai a vida, depois que nos abandona? Acredito que irá incrementar as reservas de energia da natureza, não já através do nosso corpo, mas do nosso espírito. Permanecerá este connosco, por algum tempo, ainda que mortos, para nos não sentirmos sós, assim, abandonados… Para onde terá ido a minha vida, provavelmente para onde sempre foram os meus desejos, para lugares longínquos, afastados de mim, ligados ao passado: o presente, a partir de determinada altura, tornara-se detestável. Assim, com a prática longa da fuga, deve ter-me sido fácil entrar na morte, por esse motivo me não apercebi de ter franqueado a eternidade, isto é, uma das camadas dela, suponhamo-la como um livro imenso de páginas incontáveis, mas decifráveis, pelo olhar dos vivos, naturalmente: basta pensar o tempo, o mundo, a história.
 
Apercebo-me de que não consigo saber o que vos disse, desde que morri deixei de ter memória imediata. Acontece comigo talvez um espasmo neuronal, um cérebro recusa apagar-se, sou como uma lamparina trémula sob camadas de tempo a sufocá-la, ainda se pudesse chorar estrelas, mas não as vejo: onde fica então a eternidade? Começo a aceitar porque se diz da morte o eterno nada, motivo que ainda me leva a dizer com denodo, embora saiba que, uma vez defunta, sou nada mais que resignação. Estarei como que envolta em neblina, entre sombras esmorecidas, agora não há canteiros, rosas, mas deixaram de interessar-me floras, interessa-me coisa alguma, consigo ainda recusar o silêncio mental, mas por quanto tempo? Sombras fugidias de rostos passam por mim ou eu por elas em direcção do deserto, e desconheço onde fica, era só areia, desapareceu em nada, quanto eu.
 
Afastei-me de mim, estou certa, vêem-me palavras à ideia e não sei bem como ordená-las, tudo é automatismo de uma atitude, a da escrita, durante muito tempo. Terá sido? Mas o que é o tempo, deste lado, no vazio? Não existe, tanto posso ser uma recém-nascida como uma recém-morta. Apreciei rios velozes, mas onde estão os rios? No Inverno deliciava-me o odor peculiar das magnólias enfeitadas de flores gigantescas, mas apesar de saber ainda aquilo de que gostava já não sei se gosto, tudo é nada, até a configuração de tais flores me é distorcida. Agora vou sabendo porque este estado exige resignação, pela impossibilidade de aproximar a imagem na memória. E começo a desprezar a resignação no além vida, por estes pequenos desacertos, a vida fugiu de mim roubando-me sorrisos e prantos, até barcos, tudo naufragou, enredado na mortalha, a veste da morte. Nada terei trazido da viagem? Nada, nada trouxe, só lampejos de memória a apagar-se. Sempre afirmei que o tempo tem voz, mas somos nós a dar-lha, em mim o tempo ficou mudo, desde que perdi a minha; no entanto, ainda ressoa por dentro de mim, debatendo-se de encontro aos meus limites, como uma abelha de encontro a uma vidraça, ansiando a colmeia, pólen.
Quando um sino tangia, diziam-me que era para escutar os mortos, mas alguém nos ouve? Não, escutam-se a si, os vivos, e recordam as vozes dos que partiram, durante algum tempo, pois que a voz é o que primeiro se apaga na lembrança, mais depressa se recordam linhas, traços de uma feição, que vozes, logo misturadas ao ruído de tudo, num vórtice de esquecimento.
Sinto a falta de mãos ao encontro das minhas: agora, na minha mão a outra mão, entrelaçados os dedos! Quem, vil, a isto me condena? A vida que se ausentou? Sim, vingou-se de mim, por tê-la dominado, sujeitado, quando ela queria deixar-me, ano após ano, desgosto após desgosto. Nada haverá de pior que a vida, nem sequer um incêndio, labaredas, aquele sempre deixa cinzas, restos. A vida parte e nada deixa … nada! Ausência, naufrágio de alegria? Mas o que é a alegria, agora? Tudo vai sendo coisa alguma, deixaram de acender-se as primaveras.
Qual nuvem correndo no encalço da noite, assim eu ainda tento alcançar restos de memória encasulada num cérebro que há-de mirrar, percorro os sonhos dos outros, vêm ao meu encontro, eu sempre desconfiara que os sonhos são imagens fugitivas, sorvidos por vórtice mortal, por isso lhes chamamos pesadelos, são pequenas performances de ausência, intuímos. Sempre detestara sonhar, gostava de noites sem imagens, escuras, pesadas do breu do sono, nada ansiava mais que dormir; vergastada pela insónia, os desgostos tomavam proporções monstruosas, lançava-me do leito com energia, vagueava pela casa, regressava à escuridão do quarto, fora dele era dia, optara por anular a noite, o tempo natural do sono. Agora me pergunto: seria premonição, a antecipação da angústia dos não vivos? Durante grande parte da vida, vivi morta. Agora, defunta, tento o devaneio. Será este estado também ele uma representação?
 
O sangue imobilizou-se, deixei de navegar por pequenos afluentes, em direcção do mar, abandonei, de súbito, toda uma paisagem interior. Que dizer de mim? Nada. Irei repetir esta palavra uma vez e outra, e tudo será mudo e silencioso, a própria obscuridade capta o silêncio, qual buraco negro no abismo do Universo, onde a Memória cai a pique, qual ave de rapina descendo do espaço, dardo atravessando camadas de ar, até ao solo, por vezes rasando-o, mas, agora, nem aves de rapina terei por mim, pois me não alcançam, estou sitiada e condenada ao silêncio, as palavras irão escorrendo de mim, como a água dos poços, espalhados pelos desertos, e nada me aflige, não temo perder a escrita, ela sim, parece temer perder-me, ainda se me agarra, e começo a ver melhor daqui o mundo, nada me distrai, sequer a imaginação, reduzida a espasmos da fala, do dizer, palavras que já não endereço, como quem espalha migalhas de pão para fastio de aves; não deixo vestígios, não sofro o sufrágio do olhar alheio, estão por aí, os outros meus corpos de anos e anos, numa outra camada do solo e da eternidade.
Eis-me de volta ao concreto da não-existência. Morri. Passei de um estado a outro, condensei-me como a nuvem, entristece-me desconhecer o porquê de mudança tão radical. Recordo uma grande, enorme angústia; estaria só, certo é que alguém me matou, ainda que ausente, ainda que tenha partido antes de mim? Tê-lo-á executado devagarinho, à míngua, e eu presa à teia das palavras, enredada até à asfixia, atados nós, ao longo dos anos; eu sempre a estender-me para o tempo que se aproximava, sem olhar para trás mas recordando o que me precedera, a sucessão de acontecimentos, a dor, coisa que agora não sinto, nada me faz sofrer, nem sequer a certeza de ter-me ausentado do mundo.
 
Nesta apatia, as emoções arrefecem, em breve terei esquecido o que era o amor, que, na realidade, não sei onde fica, desconheço já o que tenha sido, resta como que o automatismo de um desempenho. Uso vocábulos em inconsciência, qual espasmo da escrita a sair de mim imitando bolhas sulfurosas, e não sei se isto é triste, talvez não seja, a alegria é uma palavra, dela perdi o conceito. E terei sabido alguma vez o que era, foi, a alegria, a exultação perante um acontecimento? É forçoso que sim, não poderei mencionar nenhum, perdi-os, ficaram todos à superfície do mundo. Enquanto descia, percebi que o silêncio que me engolira desde a morte, tinha por companheira a surdez, nada ouvia, tudo seria irreal se não exprimisse a irrealidade: imagens sem som, uma sequência muda, um écran que vai perdendo o contraste e tudo se torna mancha num mundo sombrio. Eu não sei se vejo, nada distingo, perdi-me no vazio da não existência. Começo a ter uma ideia pouco consistente do mundo, de súbito ficou acima de mim, como dantes a calote celeste, que ficou demasiado longínqua e invisível, a lua… sinto-me do outro lado dela, no lado mais sombrio, desabitado de sonhos.

 

 

Jornal InComunidade (Porto)

 

 

 

 

Filomena Cabral nasceu no Porto em 1944. Poeta, ficcionista e jornalista, viveu em Angola na década de 60. Foi co-fundadora da revista Serpente. Apesar de ter começado pela poesia (1976), revela-se plenamente na ficção, sobretudo a partir do romance Tarde de mais Mariana (1985). Tem colaborado em vários jornais e revistas, destacando-se O Primeiro de Janeiro, Jornal de Notícias, O Comércio do Porto, Diário de Lisboa, Jornal de Letras e Letras & Letras.

Tem sido convidada a participar em festivais Internacionais de Poesia (Yverdon – Suíça – e Strugga – Macedónia), em congressos internacionais de língua e literatura portuguesa (Universidade de Santiago de Compostela, Universidade de São Paulo, Universidade Estadual de São Paulo – Assis, Pontifícias Universidades de São Paulo e Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade Federal de Campinas).

Ganhou o Prémio Especial de Literatura Portuguesa – 1993, da Associação Paulista de Críticos de Artes, São Paulo, Brasil. A Câmara Brasileira do Livro (Brasília) atribuiu-lhe um Diploma de Mérito Cultural em 1994, pela presença na Feira Internacional de Cultura de Brasília. Foi nomeada sócia da Academia Lusíada de Ciências Letras e Artes, em São Paulo.

Obras publicadas: Sol intermitente (Porto, 1976); Poemas do Amor e da Morte (Porto, 1977); Muxima (Porto, 1979); Iluminuras (Lisboa, 1987). Ficção – Staccato (novela, Porto, Brasília Editora, 1981); Os Anjos andam nus (Lisboa, Ed. Ulmeiro, 1985); Tarde de mais Mariana (romance, Prémio ICentenário do BB&I; Porto, 1985 – 2ª edição, 1986, Ed. Afrontamento); Um Homem de Sonho (novela, Lisboa, Ed. Rolim, 1986); Elegia para um Corpo Adormecido (Porto, Ed. Afrontamento, 1988); Maldamor (romance, Lisboa, Pub. Europa-América, 1988); Amatus (Porto, Ed. Afrontamento, 1990); Obsidiana (romance, Pub. Europa-América); Finale (Porto, Ed. Afrontamento, 1992); Prantos (romance, Lisboa, 1990; Prémio Eça de Queirós, 1ª menção, Câmara Municipal Lisboa, 1992, Difel); Madrigal (romance. Prémio da Associação Paulista de Críticos de Artes, Brasil; Lisboa, 1993, Difel); Angola, no entretanto do tempo, Urila-o-kimbi (novela, Lisboa, Difel, 1994); Um Amor Cortês (romance, Porto, Campo das Letras, 1996; Rio de Janeiro, Bertrand/Brasil, 1997); Em Demanda da Europa (romance, Porto, Campo das Letras, 1997); Viagem. Memória e Sertão e Ouro. Honor, Corsários, Ilusiones (dois romances em conjunto, Lisboa, Difel, 2000); O Grito da Garça (teatro, Campo das Letras, 2001); Mar Salgado (Difel, 2002); Oklahome Blue (romance, Campo das Letras, 2005); A Noite Transfigurada (romance, Edições Afrontamento, 2006); Ornato Cantabile (romance, Edições Fólio, 2007); Vertigem (romance, Editorial Teorema, 2009); Ardor Selvagem (romance, Edições Afrontamento, 2010); Os Pavões de Gori (romance, Editorial Teorema, 2010).

Foto e biobibliografia colhidos em:

http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/fcabral.htm

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL