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Faz alguns meses, um
estudante de
jornalismo
da faculdade Santa
Cecília, UNISANTA, da cidade brasileira de Santos,
me fez a seguinte
pergunta: Qual
a sua
opinião
sobre a influência
da Semana de 22 na
literatura
brasileira?
Dado que a
resposta nem
sempre ofende mais do que a pergunta, não me tirei dos
meus cuidados
e mandei ver:
Sem
ela a literatura
brasileira teria sofrido um atraso de, pelo menos, meio século em relação a si mesma. Só que esta frase é muito bonita e talvez
até esteja certa,
mas por
si só
nada diz, apesar
de dizer tudo.
Em
todos os
movimentos
que andam para
a frente, pois
tem movimentos
que
andam para trás,
não podemos esquecer
que antes
do big bang matar a
inércia
e dar o empurrão, tem
sempre
um antes
de. Que
nem
aquela do uísque
antes
e um
cigarro
depois. Vejamos
esse
antes, que,
muitas vezes,
ou
até quase
sempre,
infelizmente, tem mais
importância, do que
o depois.
Em
Portugal, cinqüenta anos antes, um episódio semelhante
na forma, embora
diferente no
conteúdo,
também bigbangou o
pensamento
artístico português.
Foi a chamada e
famosa
Questão Coimbrã.
No
antes, reinava em
Portugal António Feliciano de Castilho, que
tinha
corte em
Lisboa e recebia para o
beija-mão
da praxe
palaciana
todos os
escritores
que desejavam lavrar
terra no campo
das letras portuguesas. Como toda corte que se preza, a
de Castilho também
era
constituída de áulicos
capachildos, a quem importava mais
o parecer do que
o ser. Isto pelos idos dos meados do século
XIX.
Em
1865, Manuel Joaquim Pinheiro Chagas publica o Poema
da Mocidade, Castilho escreve
uma carta ao editor António Maria Pereira,
datada de 27 de
setembro,
tão encomiástica e
com
tão estrondosa
e trovejante
adjetivação
a favor de Pinheiro
Chagas e metendo o
pau
em Antero de Quental, Teophilo Braga e
Vieira de Castro, que rastilhou a Questão Coimbrã. Em
Coimbra, Antero de Quental, Eça de Queirós, Teophilo Braga e alguns outros, menos adjetivadores e mais
substantivistas, abriram fogo contra a corte de Castilho e
girandolaram foguetes ao Realismo. Que
metralhava não o
Romantismo
idealista de Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, mas
sim o Ultra-Romantismo cadavérico de Castilho. No
mesmo
ano Antero publica as Odes Modernas, Castilho recebe-o com beijoquinhas e palmadinhas nas costas, mas, mal Antero sai da sala
do trono, baixa-lhe o
cacete. Antero, que
tinha
a coluna entortada
por
zentos bicos de
papagaio, responde com
o opúsculo
Bom
Senso
e Bom
Gosto e fim.
Guerra
de Coimbra contra Lisboa. Como a corte ficava em Lisboa, os coimbrões metem
alpargatas
ao pó e aportam no
Cassino
Lisbonense, programando fazer
dez
conferências
contra
a capachildice. Só
que
no fim da
quinta, o marquês
de Ávila e Bolama proíbe o trem de sair da estação, e as restantes
conferências,
babau, foram para
o espaço.
No
depois, se nada
tem melhor
do que um
bom diluente
para desgraxar
o melhor couro,
também nada
tem melhor do
que
o tempo e os despuxões da vida para
matar
as boas intenções. E assim foi. Dos ínclitos
guerreiros
de Coimbra restaram os Vencidos da Vida, Ramalho
Ortigão, Oliveira Martins,
António Cândio, Guerra Junqueiro,
Luis de Soveral, Melo Breyner, Carlos Mayer,
Lobo
de Ávila, Bernardo Melo, António Meneses e Eça de Queirós (e mais alguns penetras), que
se reuniam no Café Tavares ou no Hotel
Bragança para ruminar
uns
opíparos jantares
semanais. A esse
sodalício comilante, chamou Eça de Grupo
Jantante, pois
nada
melhor do que
um pantagruélico
banquete e um
bom Porto ou um bom Xerez para curar todas as feridas e esfumaçar todos os sonhos
de mudar este
mundo e o outro.
E a paz voltou à
corte
literária, já
não comanditada
por
Castilho, mas
pelo
casquilho beletrista Júlio Dantas. E assim caminha a
Humanidade,
sempre
dando um
passo
à frente e dois
atrás. E tão
grandes e tão
profícuos, que
até hoje
os ficcionistas portugueses, com
raríssimas e quase desconhecidas exceções, escrevem a oralidade
dos diálogos dos
seus
personagens como
o padre António Vieira escrevia
os seus sermões:
num português gramaticissimamente correto e ainda
mais semanticissimamente exuberante. E isto,
o que
torna
ainda pior
a emenda do
que
o soneto,
apenas
por medo de ser acusados de não
saberem escrever a
sacrossanta
língua dos Castilhos, dos Camilos e
quejandos.
No
antes, no Brasil, com
o sol
dos trópicos samaritando peles e assemelhadices
capilares, e a água
de coco
diluindo cuscuzes agapescos, a Semana de 22 não
meteu entreveros de
capa
e espada
que
nem a Questão
Coimbrã (recorde-se o duelo
travado a 4 de fevereiro de 1866
na Mãe-de-Água, no Porto, entre os espadachins Antero de Quental e
Ramalho
Ortigão). Mas teve
também
os seus
antes. Se a Questão Coimbrã
acabou no rega-bofe
dos jantares do
Café
Tavares e do Hotel Bragança, a pré-história da Semana
de 22 começou nos
quitutes
da Panelinha de
Prata,
almoços inventados
por
Machado de Assis para
adubação da ideia de Lúcio de Mendonça: fundar
uma agremiação que se
pudesse chamar
Academia
Brasileira de
Letras.
Revisados os prolegômenos, Machado de Assis aclamado
presidente
da Panelinha,
começa
a caça aos
membros
fundadores.
Alguém
lembra o nome de Emílio de
Menezes, o excelso cantor
da cevada bem
maltada: Nesta data
morreu Macedo // Autor do Moço Loiro e Moreninha //
Quando
o releio penso
em
segredo // Um
chope loiro e um
copo da Negrinha. Machado não
tugiu nem mugiu.
Apenas
virou a esquina da
rua
da Assembleia, entrou numa cervejaria,
levantou um
braço
e apontou a parede do fundo. Lá, ao vivo e a cores,
a carantonha gorda
e o bigodão do Emílio de Menezes sorrindo para um copão de chope,
pronto a ser esvaziado. Ali
morreu à nascença a
entrada
do Emílio na Panelinha, o Brasil sempre vergado à estética
mais conservadora da cultura europeia.
Nos
primeiros anos
do século XX,
São
Paulo entra na era
industrial.
Mas entra assim,
à custa de
quem
trabalha nos
cafezais, que
quem
vive à custa do
suor
de quem morre de
fome, alardeia riqueza,
cultura
e elitismo. O
governo
compra os
excedentes
do café para manter os preços,
reparte o lucro com
os mais
ricos
e socializa os prejuízos com os pobres. O
Brasil trabalha
em
São Paulo, diverte-se no
Rio
de Janeiro,
fomenta
revoltas no Rio
Grande do Sul,
cozinha feijão
tropeiro em
Minas Gerais
e morre de fome no
resto
do país. Os
próprios
artistas começam percebendo que a arte morria também à míngua
e vai de denunciar
não
só a crise
sociopolítica, mas,
acima
de tudo, a
crise
da criação
artística.
No
começo
da segunda
década
Emílio de Menezes funda o jornal O Pirralho e mete o pau
nos ossos
do romantismo e do
parnasianismo, parodiando poemas
célebres. Lasar Segal expõe os
seus quadros expressionistas,
mas passa
em brancas nuvens.
Anita Malfatti expõe 53 quadros e
Monteiro Lobato cai de pau:
(…)
uma
atitude estética forçada
no sentido das
extravagâncias
de Picasso e companhia.
Villa-Lobos compõe o balé
Amazonas,
bem
brasileiro, e Donga grava o samba idem Pelo Telefone.
Victor Brecheret traz os seus
cinzéis, Manuel Bandeira publica Carnaval, Di Cavalcanti
começa preparando paletas e pincéis e Mário de Andrade escreve críticas aos Mestres
do Passado.
Foi
esse o germe
da Semana de
Arte
Moderna que,
acima de tudo,
devia divulgar uma arte
bem brasileira,
embora estivesse
ainda
afinada com as
tendências
modernistas que varriam a Europa,
a França na cabeça. O
academicismo
era o câncer.
Vai daí, devia ser extirpado. Fosse
pelo
Cubismo, fosse pelo
Expressionismo ou
qualquer outra
expressão pós-impressionista.
Até aí morreu Neves. Mas mesmo no caixão,
o Neves devia,
pelo
menos, servir
de alavanca aos
novos
ventos de uma
criação
artística originariamente brasileira. Comemorava-se em
1922 o primeiro
centenário
da independência do Brasil.
Então
por que
não se iniciar
também a independência
da arte brasileira?
E vários
artistas
se prontificaram a berrar
em
sol maior
a pulmão de
aço
essa independência. Anita Malfatti, Vicente
do Rego Monteiro, Ferrignac, Yan de Almeida
Prado, Di Cavalcanti, John Graz, Zina Aita, Oswaldo Goeldi e
Alberto Martins Ribeiro, foram de lápis
e pincéis.
Wilhelm Haarberg, Hildegardo Leão
Velloso e Vctor Brecheret aterrissaram com
mascotas e cinzéis, Georg Przyrembel e António Garcia Moya
com
compassos e
réguas
arquitetônicas. Frutuoso Viana,
Guiomar de Novais, Ernâni Braga e Villa-Lobos entraram de
fagote
e oboé. E na literatura
marcaram o ponto Guilherme de Almeida, Álvaro
Moreira, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, os Andrades (Mário e
Oswald), Plínio Salgado,
Ribeiro
Couto e Ronald de
Carvalho.
Tudo gente
da melhor
pinta
e qualidade.
Foi a nobreza cafezeira quatrocentona
que
patrocinou o evento. Dizem as fofocas da Candinda que
era a elite
cultural da velha Sampa. Fosse elite cultural ou
nobreza cafezeira, o fato é que a Semana de
Arte Moderna
acontecida de 13 a 18 de fevereiro,
meteu bronca nas noites
de 13, 15 e 17 no Teatro
Municipal de São Paulo.
Abriram o vamonessa, na segunda-feira, dia 13, os 54 anos
de José Pereira da
Graça
Aranha, fundador
da cadeira 38 da
Academia
Brasileira de
Letras.
Para dar um ar senhoril
ao mata-mata, mandou ver A
Emoção Estética
da Arte Moderna,
Ronald de Carvalho e Guilherme de
Almeida gorgeando poemas à côté,
e Ernâni Braga martelando Erik Satie no piano,
parodiando a Marcha
Fúnebre de Chopin.
Na
quarta-feira, dia
15, segundo
dia
do bafafá, é a
vez
de Menotti del Picchia meter o
bedelho
nos romancistas
contemporâneos,
também
acompanhado de
danças
e poesias.
Aplausos.
Não se sabe se às
danças, ao discurso
ou
às poesias.
Sai Menotti del Picchia e entra Oswald de Andrade, e
começa
a pateada.
Para
acalmar os ânimos,
lê-se o poema Os
Sapos, de Manuel Bandeira. A leitura
é controvertida. Uns dizem que foi o próprio Oswald quem leu, outros
juram e trejuram que foi Ronald
de Carvalho. Seja como
for, o poema de
Bandeira
foi, na verdade, o
verdadeiro
grito do Ipiranga da Semana
de 22. Bandeira baixava o
cacete
nos poetas
parnasianos com
tamanhas bordoadas,
que
a vaiação só acabou
quando
Guiomar de Novais sentou no piano
e mandou ver um
recital. Vale
a pena
transcrever
Os
Sapos:
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco
que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu
pai
foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não
foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como
primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos
cognatos.
O meu
verso
é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas
com
Consoantes de apoio.
Vai por cinquüenta anos
Que lhes
dei a norma:
Reduzi sem
danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas
céticas:
Não há mais
poesia,
Mas há artes
poéticas..."
Urra o sapo-boi:
- "Meu
pai
foi rei!"- "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não
foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- A grande arte
é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto
é belo,
Tudo quanto
é vário,
Canta no martelo".
Outros, sapos-pipas
(Um mal
em si
cabe),
Falam pelas tripas,
- "Sei!" - "Não
sabe!" - "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite
infinita
Veste a sombra
imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória,
sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
Com a plateia já
respirando em
dó
menor, Mário de Andrade arrisca-se a pisar o tatame e
ler
poemas que,
mais tarde,
encapou com o
título
A Escrava
que não
é Isaura, e a vaia escutou-se até em Campinas. Idem para Renato de Almeida que
baixa a lenha
no sapo parnasianista, e
Villa-Lobos quase não
consegue tocar, não
fossem alguns piruantes
pedir
silêncio aos mais
indignados. O pessoal vaiava, não porque as peças escolhidas fossem ruins,
mas porque
Villa entrou no palco de chinelos
e guarda-chuva.
A aderência de Graça
Aranha
à festança da
Semana,
para alguns ainda não está bem explicada, será que
foi demagogia? será
que
foi verdadeira?, como não podia deixar de ser, fez tremer os alicerces da Academia
Brasileira de
Letras. E só
não
deu tiro
porque
os porteiros do sodalício não deixavam entrar armas de fogo
no recinto dos
imortais.
Mas que
deu xingação e tabefada, isso todo mundo sabe e só
nega quem não sabe.
Em 16 de junho
de 1924 Graça
Aranha
fez uma conferência na Academia sobre
o que era
o espírito
moderno
com a plateia botando fardas pelo ladrão. Aranha
sobe na tribuna e
manda
ver: Morra a Academia! Os de menor
berram Bis! Bis!, pegam o cavername do Aranha
e carregam o Graça
nos
ombros. Coelho
Neto, cuspindo
marimbondos
de fogo, sobe à
tribuna
e bem à la Demóstenes faz o florilégio de gregos e troianos, e leva
um pitaco da
assistência:
Morra a Grécia!
Coelho
vira-se para o
carrasco
e manda-lhe o tirambaço: Mas eu serei o último heleno! Para que o jogo não
tivesse vencedores nem vencidos,
os de maior pegam a ossatura
do Neto e carregam o Coelho nas costas,
que nem
os de menor tinham
feito
com o cavername do
Aranha.
Fim de Carnaval
e pronto,
tudo
cinzas.
Na
época, a Semana
de Arte Moderna
não teve, nem
de longe, a repercussão que hoje se lhe dá. Apenas
algumas notas nas
folhas,
escritas mais
pelos participantes, os Andrades & Cia (Menotti del Picchia e
Graça
Aranha), do que
pelos ouvintes,
aderentes ou
não. Aliás,
o próprio Yan de Almeida
Prado, no já
distante
ano de 1972, chegou a
dizer
que
a
Semana de Arte
Moderna pouca
ou nenhuma ação
desenvolveu no mundo das artes e da literatura,
acreditando ou querendo fazer acreditar que a fama provinha mais
dos esforços
conjugados
dos Andrades (Mário e Oswald) junto
a jornalistas e assemelhados do
que, propriamente, pela
repercussão do evento em si. Talvez que para essa pouca ação tenha pesado muito a titulação das obras
apresentadas, que
nada
tinha de
brasileira:
Cubismo, de Vicente do
Rego Monteiro, Natureza
Dadaísta, de Ferrignac, Impressão Divisionista, de Anita
Malfatti, Café Turco,
de Di Cavalcanti ou Sapho,
de Victor Brecheret.
No
depois, tal
como aconteceu
com
os participantes da Questão Coimbrã, vários dos semanistas, e alguns,
grandes pilares
da mostra, se mandaram
para
a Europa, deixando o processo de iniciação de uma arte bem brasileira tocando
trombone em
dó menor
no campanário das
urtigas.
Mas isso
faz parte.
Artista
é, ou deve ser,
livre de
compromissos, e Arte se faz é
com
talento, não
com engajamento.
Mas
uma coisa é fato
e é bom
não
esquecer: a Semana
de Arte Moderna,
além de congregar
grandes artistas
da época, é uma das
mais
importantes
marcas
do Modernismo
Brasileiro.
Sem ela,
talvez o que
hoje se cria
no Brasil não fosse
tão
profundamente
brasileiro.
Isto, apesar,
no que tange à
literatura,
que do cinema
nem se fala,
da invasão de
autores
menores,
principalmente
americanos, que
asfixiam o aparecimento
de novos
talentos
made in Brasil, mas
dão lucro aos
editores.
Que, como
os banqueiros, querem é
ganhar
dinheiro sem fazer força nem participar da construção. No Brasil, o único
filão artístico
verdadeiramente internacionalizado, mas sempre com
raízes profundamente brasileiras,
é a música. E não é
só Ary Barroso ou
Tom Jobim.
Vivi 45
anos
no Brasil, de 1958 a 2003 e sei o que
é suar
e tressuar procurando um editor disposto a arriscar num autor principiante.
Como disse, e vou
repetir,
editor é que
nem banqueiro.
Se banqueiro
só
oferece dinheiro a
quem
não precisa,
que quem
precisa tem é que
dar garantias
e mais
garantias,
editor é igual.
Editor só
corre atrás do
autor
quando o autor
não está correndo
atrás
do editor.
Infelizmente.
Cunha de Leiradella
leiradella@sapo.pt |