REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 
 

 

 

CUNHA DE LEIRADELLA

Questão Coimbrã x Panelinha de Prata x Semana de Arte Moderna

= deixa disso, sô!

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Faz alguns meses, um estudante de jornalismo da faculdade Santa Cecília, UNISANTA, da cidade brasileira de Santos, me fez a seguinte pergunta: Qual a sua opinião sobre a influência da Semana de 22 na literatura brasileira? Dado que a resposta nem sempre ofende mais do que a pergunta, não me tirei dos meus cuidados e mandei ver:

Sem ela a literatura brasileira teria sofrido um atraso de, pelo menos, meio século em relação a si mesma. que esta frase é muito bonita e talvez até esteja certa, mas por si nada diz, apesar de dizer tudo.

Em todos os movimentos que andam para a frente, pois tem movimentos que andam para trás, não podemos esquecer que antes do big bang matar a inércia e dar o empurrão, tem sempre um antes de. Que nem aquela do uísque antes e um cigarro depois. Vejamos esse antes, que, muitas vezes, ou até quase sempre, infelizmente, tem mais importância, do que o depois.

Em Portugal, cinqüenta anos antes, um episódio semelhante na forma, embora diferente no conteúdo, também bigbangou o pensamento artístico português. Foi a chamada e famosa Questão Coimbrã.

No antes, reinava em Portugal António Feliciano de Castilho, que tinha corte em Lisboa e recebia para o beija-mão da praxe palaciana todos os escritores que desejavam lavrar terra no campo das letras portuguesas. Como toda corte que se preza, a de Castilho também era constituída de áulicos capachildos, a quem importava mais o parecer do que o ser. Isto pelos idos dos meados do século XIX.

Em 1865, Manuel Joaquim Pinheiro Chagas publica o Poema da Mocidade, Castilho escreve uma carta ao editor António Maria Pereira, datada de 27 de setembro, tão encomiástica e com tão estrondosa e trovejante adjetivação a favor de Pinheiro Chagas e metendo o pau em Antero de Quental, Teophilo Braga e Vieira de Castro, que rastilhou a Questão Coimbrã. Em Coimbra, Antero de Quental, Eça de Queirós, Teophilo Braga e alguns outros, menos adjetivadores e mais substantivistas, abriram fogo contra a corte de Castilho e girandolaram foguetes ao Realismo. Que metralhava não o Romantismo idealista de Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, mas sim o Ultra-Romantismo cadavérico de Castilho. No mesmo ano Antero publica as Odes Modernas, Castilho recebe-o com beijoquinhas e palmadinhas nas costas, mas, mal Antero sai da sala do trono, baixa-lhe o cacete. Antero, que tinha a coluna entortada por zentos bicos de papagaio, responde com o opúsculo Bom Senso e Bom Gosto e fim. Guerra de Coimbra contra Lisboa. Como a corte ficava em Lisboa, os coimbrões metem alpargatas ao e aportam no Cassino Lisbonense, programando fazer dez conferências contra a capachildice. que no fim da quinta, o marquês de Ávila e Bolama proíbe o trem de sair da estação, e as restantes conferências, babau, foram para o espaço.

No depois, se nada tem melhor do que um bom diluente para desgraxar o melhor couro, também nada tem melhor do que o tempo e os despuxões da vida para matar as boas intenções. E assim foi. Dos ínclitos guerreiros de Coimbra restaram os Vencidos da Vida, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, António Cândio, Guerra Junqueiro, Luis de Soveral, Melo Breyner, Carlos Mayer, Lobo de Ávila, Bernardo Melo, António Meneses e Eça de Queirós (e mais alguns penetras), que se reuniam no Café Tavares ou no Hotel Bragança para ruminar uns opíparos jantares semanais. A esse sodalício comilante, chamou Eça de Grupo Jantante, pois nada melhor do que um pantagruélico banquete e um bom Porto ou um bom Xerez para curar todas as feridas e esfumaçar todos os sonhos de mudar este mundo e o outro. E a paz voltou à corte literária, não comanditada por Castilho, mas pelo casquilho beletrista Júlio Dantas. E assim caminha a Humanidade, sempre dando um passo à frente e dois atrás. E tão grandes e tão profícuos, que até hoje os ficcionistas portugueses, com raríssimas e quase desconhecidas exceções, escrevem a oralidade dos diálogos dos seus personagens como o padre António Vieira escrevia os seus sermões: num português gramaticissimamente correto e ainda mais semanticissimamente exuberante. E isto, o que torna ainda pior a emenda do que o soneto, apenas por medo de ser acusados de não saberem escrever a sacrossanta língua dos Castilhos, dos Camilos e quejandos.

No antes, no Brasil, com o sol dos trópicos samaritando peles e assemelhadices capilares, e a água de coco diluindo cuscuzes agapescos, a Semana de 22 não meteu entreveros de capa e espada que nem a Questão Coimbrã (recorde-se o duelo travado a 4 de fevereiro de 1866 na Mãe-de-Água, no Porto, entre os espadachins Antero de Quental e Ramalho Ortigão). Mas teve também os seus antes. Se a Questão Coimbrã acabou no rega-bofe dos jantares do Café Tavares e do Hotel Bragança, a pré-história da Semana de 22 começou nos quitutes da Panelinha de Prata, almoços inventados por Machado de Assis para adubação da ideia de Lúcio de Mendonça: fundar uma agremiação que se pudesse chamar Academia Brasileira de Letras.

Revisados os prolegômenos, Machado de Assis aclamado presidente da Panelinha, começa a caça aos membros fundadores. Alguém lembra o nome de Emílio de Menezes, o excelso cantor da cevada bem maltada: Nesta data morreu Macedo // Autor do Moço Loiro e Moreninha // Quando o releio penso em segredo // Um chope loiro e um copo da Negrinha. Machado não tugiu nem mugiu. Apenas virou a esquina da rua da Assembleia, entrou numa cervejaria, levantou um braço e apontou a parede do fundo. , ao vivo e a cores, a carantonha gorda e o bigodão do Emílio de Menezes sorrindo para um copão de chope, pronto a ser esvaziado. Ali morreu à nascença a entrada do Emílio na Panelinha, o Brasil sempre vergado à estética mais conservadora da cultura europeia.

Nos primeiros anos do século XX, São Paulo entra na era industrial. Mas entra assim, à custa de quem trabalha nos cafezais, que quem vive à custa do suor de quem morre de fome, alardeia riqueza, cultura e elitismo. O governo compra os excedentes do café para manter os preços, reparte o lucro com os mais ricos e socializa os prejuízos com os pobres. O Brasil trabalha em São Paulo, diverte-se no Rio de Janeiro, fomenta revoltas no Rio Grande do Sul, cozinha feijão tropeiro em Minas Gerais e morre de fome no resto do país. Os próprios artistas começam percebendo que a arte morria também à míngua e vai de denunciar não a crise sociopolítica, mas, acima de tudo, a crise da criação artística.

No começo da segunda década Emílio de Menezes funda o jornal O Pirralho e mete o pau nos ossos do romantismo e do parnasianismo, parodiando poemas célebres. Lasar Segal expõe os seus quadros expressionistas, mas passa em brancas nuvens. Anita Malfatti expõe 53 quadros e Monteiro Lobato cai de pau: (…) uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso e companhia. Villa-Lobos compõe o balé Amazonas, bem brasileiro, e Donga grava o samba idem Pelo Telefone. Victor Brecheret traz os seus cinzéis, Manuel Bandeira publica Carnaval, Di Cavalcanti começa preparando paletas e pincéis e Mário de Andrade escreve críticas aos Mestres do Passado.

Foi esse o germe da Semana de Arte Moderna que, acima de tudo, devia divulgar uma arte bem brasileira, embora estivesse ainda afinada com as tendências modernistas que varriam a Europa, a França na cabeça. O academicismo era o câncer. Vai daí, devia ser extirpado. Fosse pelo Cubismo, fosse pelo Expressionismo ou qualquer outra expressão pós-impressionista.

Até morreu Neves. Mas mesmo no caixão, o Neves devia, pelo menos, servir de alavanca aos novos ventos de uma criação artística originariamente brasileira. Comemorava-se em 1922 o primeiro centenário da independência do Brasil. Então por que não se iniciar também a independência da arte brasileira? E vários artistas se prontificaram a berrar em sol maior a pulmão de aço essa independência. Anita Malfatti, Vicente do Rego Monteiro, Ferrignac, Yan de Almeida Prado, Di Cavalcanti, John Graz, Zina Aita, Oswaldo Goeldi e Alberto Martins Ribeiro, foram de lápis e pincéis. Wilhelm Haarberg, Hildegardo Leão Velloso e Vctor Brecheret aterrissaram com mascotas e cinzéis, Georg Przyrembel e António Garcia Moya com compassos e réguas arquitetônicas. Frutuoso Viana, Guiomar de Novais, Ernâni Braga e Villa-Lobos entraram de fagote e oboé. E na literatura marcaram o ponto Guilherme de Almeida, Álvaro Moreira, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet, os Andrades (Mário e Oswald), Plínio Salgado, Ribeiro Couto e Ronald de Carvalho. Tudo gente da melhor pinta e qualidade.

Foi a nobreza cafezeira quatrocentona que patrocinou o evento. Dizem as fofocas da Candinda que era a elite cultural da velha Sampa. Fosse elite cultural ou nobreza cafezeira, o fato é que a Semana de Arte Moderna acontecida de 13 a 18 de fevereiro, meteu bronca nas noites de 13, 15 e 17 no Teatro Municipal de São Paulo.

Abriram o vamonessa, na segunda-feira, dia 13, os 54 anos de José Pereira da Graça Aranha, fundador da cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras. Para dar um ar senhoril ao mata-mata, mandou ver A Emoção Estética da Arte Moderna, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida gorgeando poemas à côté, e Ernâni Braga martelando Erik Satie no piano, parodiando a Marcha Fúnebre de Chopin.

Na quarta-feira, dia 15, segundo dia do bafafá, é a vez de Menotti del Picchia meter o bedelho nos romancistas contemporâneos, também acompanhado de danças e poesias. Aplausos. Não se sabe se às danças, ao discurso ou às poesias.

Sai Menotti del Picchia e entra Oswald de Andrade, e começa a pateada. Para acalmar os ânimos, lê-se o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira. A leitura é controvertida. Uns dizem que foi o próprio Oswald quem leu, outros juram e trejuram que foi Ronald de Carvalho. Seja como for, o poema de Bandeira foi, na verdade, o verdadeiro grito do Ipiranga da Semana de 22. Bandeira baixava o cacete nos poetas parnasianos com tamanhas bordoadas, que a vaiação acabou quando Guiomar de Novais sentou no piano e mandou ver um recital. Vale a pena transcrever

 

Os Sapos:

 

Enfunando os papos,

Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos.

A luz os deslumbra.

 

Em ronco que aterra,

Berra o sapo-boi:

- "Meu pai foi à guerra!"

- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

 

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: - "Meu cancioneiro

É bem martelado.

 

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos.

 

O meu verso é bom

Frumento sem joio.

Faço rimas com

Consoantes de apoio.

 

Vai por cinquüenta anos

Que lhes dei a norma:

Reduzi sem danos

A fôrmas a forma.

 

Clame a saparia

Em críticas céticas:

Nãomais poesia,

Masartes poéticas..."

 

Urra o sapo-boi:

- "Meu pai foi rei!"- "Foi!"

- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

 

Brada em um assomo

O sapo-tanoeiro:

- A grande arte é como

Lavor de joalheiro.

 

Ou bem de estatuário.

Tudo quanto é belo,

Tudo quanto é vário,

Canta no martelo".

 

Outros, sapos-pipas

(Um mal em si cabe),

Falam pelas tripas,

- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

 

Longe dessa grita,

onde mais densa

A noite infinita

Veste a sombra imensa;

 

, fugido ao mundo,

Sem glória, sem ,

No perau profundo

E solitário, é

 

Que soluças tu,

Transido de frio,

Sapo-cururu

Da beira do rio...

 

Com a plateia respirando em menor, Mário de Andrade arrisca-se a pisar o tatame e ler poemas que, mais tarde, encapou com o título A Escrava que não é Isaura, e a vaia escutou-se até em Campinas. Idem para Renato de Almeida que baixa a lenha no sapo parnasianista, e Villa-Lobos quase não consegue tocar, não fossem alguns piruantes pedir silêncio aos mais indignados. O pessoal vaiava, não porque as peças escolhidas fossem ruins, mas porque Villa entrou no palco de chinelos e guarda-chuva.

 

A aderência de Graça Aranha à festança da Semana, para alguns ainda não está bem explicada, será que foi demagogia? será que foi verdadeira?, como não podia deixar de ser, fez tremer os alicerces da Academia Brasileira de Letras. E não deu tiro porque os porteiros do sodalício não deixavam entrar armas de fogo no recinto dos imortais. Mas que deu xingação e tabefada, isso todo mundo sabe e nega quem não sabe.

 

Em 16 de junho de 1924 Graça Aranha fez uma conferência na Academia sobre o que era o espírito moderno com a plateia botando fardas pelo ladrão. Aranha sobe na tribuna e manda ver: Morra a Academia! Os de menor berram Bis! Bis!, pegam o cavername do Aranha e carregam o Graça nos ombros. Coelho Neto, cuspindo marimbondos de fogo, sobe à tribuna e bem à la Demóstenes faz o florilégio de gregos e troianos, e leva um pitaco da assistência: Morra a Grécia! Coelho vira-se para o carrasco e manda-lhe o tirambaço: Mas eu serei o último heleno! Para que o jogo não tivesse vencedores nem vencidos, os de maior pegam a ossatura do Neto e carregam o Coelho nas costas, que nem os de menor tinham feito com o cavername do Aranha. Fim de Carnaval e pronto, tudo cinzas.

 

Na época, a Semana de Arte Moderna não teve, nem de longe, a repercussão que hoje se lhe dá. Apenas algumas notas nas folhas, escritas mais pelos participantes, os Andrades & Cia (Menotti del Picchia e Graça Aranha), do que pelos ouvintes, aderentes ou não. Aliás, o próprio Yan de Almeida Prado, no distante ano de 1972, chegou a dizer que a Semana de Arte Moderna pouca ou nenhuma ação desenvolveu no mundo das artes e da literatura, acreditando ou querendo fazer acreditar que a fama provinha mais dos esforços conjugados dos Andrades (Mário e Oswald) junto a jornalistas e assemelhados do que, propriamente, pela repercussão do evento em si. Talvez que para essa pouca ação tenha pesado muito a titulação das obras apresentadas, que nada tinha de brasileira: Cubismo, de Vicente do Rego Monteiro, Natureza Dadaísta, de Ferrignac, Impressão Divisionista, de Anita Malfatti, Café Turco, de Di Cavalcanti ou Sapho, de Victor Brecheret.

 

No depois, tal como aconteceu com os participantes da Questão Coimbrã, vários dos semanistas, e alguns, grandes pilares da mostra, se mandaram para a Europa, deixando o processo de iniciação de uma arte bem brasileira tocando trombone em menor no campanário das urtigas. Mas isso faz parte. Artista é, ou deve ser, livre de compromissos, e Arte se faz é com talento, não com engajamento.

 

Mas uma coisa é fato e é bom não esquecer: a Semana de Arte Moderna, além de congregar grandes artistas da época, é uma das mais importantes marcas do Modernismo Brasileiro. Sem ela, talvez o que hoje se cria no Brasil não fosse tão profundamente brasileiro. Isto, apesar, no que tange à literatura, que do cinema nem se fala, da invasão de autores menores, principalmente americanos, que asfixiam o aparecimento de novos talentos made in Brasil, mas dão lucro aos editores. Que, como os banqueiros, querem é ganhar dinheiro sem fazer força nem participar da construção. No Brasil, o único filão artístico verdadeiramente internacionalizado, mas sempre com raízes profundamente brasileiras, é a música. E não é Ary Barroso ou Tom Jobim.

 

Vivi 45 anos no Brasil, de 1958 a 2003 e sei o que é suar e tressuar procurando um editor disposto a arriscar num autor principiante. Como disse, e vou repetir, editor é que nem banqueiro. Se banqueiro oferece dinheiro a quem não precisa, que quem precisa tem é que dar garantias e mais garantias, editor é igual. Editor corre atrás do autor quando o autor não está correndo atrás do editor. Infelizmente.

 

         Cunha de Leiradella

         leiradella@sapo.pt

 

 

Jornal InComunidade (Porto)

 

 

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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