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A aparente
anormalidade, no mínimo estranheza, de numa colecção de poesia __ UniVersos Poesia, assim na capa se apresentando
__ se publicar um livro,
« Gloria Victis », que se reivindica de Não-Poemas suscita-nos a
formulação de alguns comentários sobre o próprio conceito de poesia.
É autor da proeza
Carlos Garcia de Castro, um homem de Portalegre, já com muita
experiência. ( Nasceu em 1934. ) Logo no poema de abertura nos informa
ser a sua idade « de senador » o que, classicamente, logo acrescenta, é
sinónimo de ser velho. A sua obra não é muito abundante já que este
Gloria Victis será o seu sexto título. Mas é uma obra seguramente muito
pensada, o que bem se depreende do intervalo temporal com que as suas
obras viram a luz do dia: 1955, 1963, 1987, 1992, 1998 e 2007. A maioria
destes « textos » __ para lhe fazermos a vontade __ são dos primeiros
anos deste novo milénio, ou do último do anterior, de 2000 a 2003,
sobretudo. Há apenas duas excepções notórias: um poema de 1967 ( o
último ) e um outro de 1970.
Neste livro Gloria
Victis __ glória aos vencidos, sabem-no os que de todo ainda não
esqueceram o latim __ Carlos Garcia de Castro, se bem o entendi, faz
como que uma espécie de testamento ou despedida. Ele assume o registo
despretensioso do homem que sabe que não tem uma importância superior à
média, e que muito provavelmente será esquecido. Não vê nisso qualquer
drama, nem por esse facto se sente angustiado. « A vida é natural sem
literatura, / nem dela mais precisa um ser comum, / que é o que a morte
faz de todos nós », diz ele no importantíssimo poema de abertura.
E eu creio que é
por esse caeiriano desprendimento do seu próprio mérito que o poeta
cunhou a provocadora expressão de não-poemas, talvez também para marcar
a diferença relativamente ao « intelectualismo elitista e convencional
da literatura poética actualmente predominante ». Ele como que sente que
não se levou muito a sério, de alguma forma ficou pelos aspectos
exteriores e formais da mesma __ é o que eu quero dizer ao referir-me à
rama das coisas, à superfície das ondas. Suponho que terá sido mais por
humildade do que por provocação, eis como concluiria. Mas eu não creio
que o poeta tenha razão em reivindicar tamanha modéstia para o seu
trabalho.
Ele domina bem o
verso __ e poucos poetas se poderão gabar de terem escrito um poema, em
estrofe única, com 239 versos, como é o caso de « Há mais de cinquenta
anos __ para o Chambel ». ( Mas este poema nem sequer é o mais extenso
de todo o livro: « Já Bocage não sou… », de páginas 59 a 70, espraia-se
por 311 ainda que, é certo, o mesmo seja dividido em quatro partes, e
dentro de cada uma destas haja uma outra, numerosa e variada,
sub-divisão. ) Os poemas não são regulares quanto à organização
estrófica, mas já o são muito mais no que à extensão do verso diz
respeito. O efeito musical advém-lhes, em muitos casos, da repetição de
palavras e de versos, qual refrão que a espaços se repete. Mas também a
rima, entendida na sua forma mais clássica, aqui comparece __ e em
alguns poemas mesmo com muita frequência. E decerto que Carlos Garcia de
Castro está bem consciente dos efeitos literários que assim se
potenciam.
Além da lição de
Caeiro, que é fonte em que todos bebemos, encontro ainda nos seus versos
muito conhecimento, e porventura homenagem, a Teixeira de Pascoaes. O
poema sobre o Nevoeiro, já atrás citado ( Há mais de cinquenta anos __
para o Chambel ), é o que me parece mais eloquente no capítulo dessa
devoção. Quem assim escreve é, claramente, um poeta, ainda que bem
conhecedor da vacuidade de muitos aspectos da vida, dando testemunho do
espanto que esta muitas vezes lhe suscita.
É facto, ao menos é
essa uma primeira impressão, que ele não se terá envolvido na poesia com
a intensidade com que outros o fizeram, sobretudo com a certeza de que a
respectiva obra ficaria, a própria sucessão cronológica da sua
publicação nos permitiria supô-lo. Desse ponto de vista Carlos Garcia de
Castro está a léguas desses poetas __ « convencidos », digamos assim, e
mais ou menos reconhecidos, nesse convencimento, pela posteridade, única
entidade certificadora legítima.
Cumpre reconhecer
que algo se repete, muitas vezes o visitam os netos, em muitos casos é
prosaico e chão, olha para si próprio com bonomia e desprendimento. Ele
trouxe para o domínio da literatura temas da decadência física a que
ela não estaria muito habituada. O acima citado « Já Bocage não sou… » é
uma antecipada crónica da expectativa do fim, do « descuido inapto » que
ele antecipou logo no primeiro poema e que, no geral, se pode observar
nos lares ditos da terceira idade; e cumpre reconhecer que o poeta ainda
vê a coisa __ talvez porque, apesar de tudo, está do lado de fora __
com uma razoável, e saudável, auto-ironia.
Também outros poemas
são pequenas histórias em que o tom descritivo abunda. É muito
consolador alguém verificar que, embora pouco fazendo ( « mas sempre vai
fazendo » ), não lhe dava jeito morrer agora! Podem ser simples e
comezinhos os seus préstimos __ não se esquecer das chaves, pôr o lixo,
descer as persianas no final do dia, recados e compras __ mas podem crer
que são numerosos. E de tudo isto fazer poesia podem crer que é obra!
O Editor, José
Carlos Marques, na nota introdutória que escreveu para este livro,
navega nas mesmas águas. Partindo de idêntico espanto inicial, e
descontando a ironia que a fórmula possa conter, ele afirma que estes
poemas constituem « uma aproximação à poesia, capaz, não apenas de
oferecer o desfrute do que por si contém como realização poética, mas
ainda de nos desafiar a uma reavaliação do estado da poesia em geral ».
E mais à frente, estabelecendo uma certa diferença com a « poesia mais
difícil e mais « culta » formula o voto de que esta não – poesia , «
penetrada toda ela de uma cultura desprovida de exibicionismo cultural
», possa contribuir para uma certa « reconciliação entre a poesia e o
seu público potencial, tornando-o mais amplo do que ele é hoje ». Sábias
palavras às quais de todo o coração me associo! E bem compreensíveis na
boca de um editor de poesia __ e bem informado poeta que José Carlos
Marques também é.
Para terminar
permitam-me uma informação de carácter mais concreto. Em Gloria Victis
reunem-se 33 poemas distribuídos por seis sucessivas secções, a saber:
Provocatória ( 3 ); Analítica ( 5 ); Consistório ( 4 ); Militância ( 5
); Katabolé ( 11 ); In dubio, pro reo ( 5 ). O que queira significar o
termo de katabolé, de ressonâncias aparentemente gregas, francamente não
sei, ainda que sejam sobretudo poemas sobre o estado de expectativa e
antecipação da morte os que ali se encontram. Também me parece que há ao
longo do livro referências cifradas a pessoas e situações __ bem como
nomes de medicamentos, estes em itálico __ cujo conhecimento deverá ser
exclusivo do poeta que as viveu.
Para quem, ainda que
a alguma distância, vinha acompanhando a obra de Carlos Garcia de
Castro, estes poemas não são uma surpresa. Pessoalmente, de alguns deles
recordava-me de os ter lido nas páginas da SOL XXI, uma Revista
Literária em que ambos tivemos ocasião de colaborar, por vezes nos
mesmos números. Em pelo menos dois casos os poemas com que agora aqui
nos deparamos são a re-escrita de outros que haviam figurado no seu
livro anterior, « Rato do Campo… », editado pela Colibri em Abril de
1998.
O penúltimo poema da
secção Analítica, páginas 35 a 40, retoma, digamos assim,
conservando-lhe a data, o que no livro anterior, sob o explícito título
de « Não poema em decassílabos », era o primeiro da secção final « Post
scriptum ». Por sua vez o segundo poema da secção final desse livro, «
In dubio pro reo », datado de Janeiro de 1997 e dedicado, na epígrafe
final, à memória de António Silva Pinto, comparece agora, com a
designação « Ad marginem », integrado na secção final de Gloria Victis,
genericamente designada, toda ela, por « In dubio pro reo ». O poema
perdeu a dedicatória __ mas ganhou a indicação de que foi reescrito em
2001.
A atenção de Carlos
Garcia de Castro a esta realidade não é pois de agora, eis o que
poderemos concluir __ e é forçoso encerrar mesmo este pequeno exercício.
Se houvesse de exemplificar com um poema a minha admiração por esta
poesia escolheria, sem hesitar, « Os melros », o segundo poema da secção
Katabolé __ até porque não sendo muito extenso seria mais facilmente
citável… ( É curioso como a referência a essas aves entronca, na nossa
poesia, pelo menos em Junqueiro. Mas o paralelo termina aí.)
Mas isso me
obrigaria, também, a registar, e lamentar, a falta de correspondência
que existe entre a paginação efectivamente inscrita no livro __ e a que
depois consta do Índice que o encerra. Basta dizer que Gloria Victis,
tem, verificadamente, 126 páginas __ mas o Índice atribui o início do
último poema, « Retrato psicológico de Kant », à página 138. « Os melros
», para melhor exemplificar, ocupa as páginas 89/90 __ enquanto no
Índice é reportado às páginas 101/102. Estes lapsos vêm, praticamente,
desde o início do livro, com altos e baixos __ sendo pois de lamentar a
ineficácia da revisão final que ( não ) houve.
Mas o que importa é
a poesia. (Se tanto me alonguei nestas minudências foi tão só para me
certificar de que não faltou nenhum poema dos referenciados na tábua
final. ) Quanto a esta o meu apreço é claro, consciente e definitivo.
Vária que a poesia felizmente é, casa de muitas janelas como um outro
Pessoa a todos nos ensinou, não creio que nenhum leitor, minimamente
sensível, mesmo que não muito informado, de mim discorde assim a
classificando, no final da leitura dos belos poemas que, por esta forma,
desejaria incentivar. E no fundo creio que o próprio Carlos Garcia de
Castro não deixará de nos acompanhar. Parabéns, senador
Cristino Cortes |
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Cristino Cortes nasceu em Fiães (1953), uma pequena aldeia do concelho de Trancoso. Licenciado em Economia,
reside em Lisboa desde 1971. A sua actividade profissional decorreu,
quase toda, no Ministério da Cultura. Fundamentalmente poeta, publicou
10 livros desde 1985.Havendo de destacar alguns citaremos: Ciclo do
Amanhecer, por ter sido o primeiro; 33 Sonetos de Amor e Circunstância,
em 1987, por ter tido uma segunda edição em 1993; Poemas de Amor e
Melodia, em 1999, pela mesma razão, dez anos mais tarde, em versão
aumentada e definitiva; O Livro do Pai, em 2001, por ter sido traduzido
em francês ( 2006 ) e em castelhano ( 2011 ), tendo tido uma segunda
edição bilingue no primeiro caso; Sonetos (In)temporais, em 2004, por
ser uma edição exclusivamente para o Brasil; e Música de Viagem, em
2008, por ter sido o último.
Tem, também, versado outras modalidades ( o conto, a crónica, o artigo
de opinião, a página de diário ) em vários jornais e revistas, nacionais
e estrangeiras, tendo reunido alguns desses trabalhos em quatro livros.
Para a Universitária Editora organizou, ainda, duas antologias.
Apresentou publicamente livros e proferiu conferências. A sua obra tem
tido algum eco em países estrangeiros ( Espanha e França, sobretudo, mas
ultimamente também na Alemanha, na Bélgica e no Brasil ) e ele próprio,
tem traduzido e publicado poemas em francês. Os seus livros tiveram
apresentações públicas em diversos locais do País.
Está representado em várias antologias e livros colectivos. A sua obra
tem sido objecto de alguma atenção crítica destacando-se, em forma de
livro, José Fernando Tavares, Júlio Conrado e Isabel Gouveia. |