REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 
 

 

 

ANTÓNIO AUGUSTO

MARIANTE FURTADO

O Prisioneiro

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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 1

E ele desperta, mas não se atreve a abrir seus olhos; antes, pelo contrário, ele os contrai ainda mais, aproveitando a ocasião para que também amplie a redução do próprio corpo, constrangido em seu retrocesso fetal. E tão logo acorda, como planta crestada, definhante e sedenta, ele se ora e se reza, umedencendo-se de súplica, para que consiga abrir seus olhos, pois isso acontecendo, progressivamente, quase lesma, terá forças para que reassuma a extensão do próprio corpo. A próxima etapa é expulsar-se, por mais um dia, graças a Deus, sempre no compasso do alcoólatra anônimo ou do drogado em reabilitação, da cama que talvez o proteja.

 

2

Ali bem próximo de seu corpo em retrocesso fetal, pois sua cama está repleta de coisas que nunca estão em uso, contribuindo sempre para que ele se deite como pacote, há um caderno velho, e, em suas últimas folhas úteis, ele, com sua caligrafia que sempre sugeriu gafanhotos esmagados, rabiscou uma confissão tardia de afeto, lambuzada de emoções baratas, embora, sob a precariedade do remendo, tenha também justificado que não houvera chance para que esse escrito no depois fosse proferido no antes.

Se houve tempo, porque tempo sempre há, não houve espaço, porque ao invés do suposto afeto proferido, o vazio fora preenchido pelo silêncio efervescente da mágoa e do ressentimento, ambos sempre em dueto, na direção do ódio.

Agora, esse agora de cama abarrotada de tralhas, onde seu corpo amplia seu retrocesso de embrulho, era tarde para o I-love-you das emoções baratas, restando-lhe uma precária nostalgia, convertida em rabiscos sobre folhas de um caderno mastigado pelos anos, que não vai além do desabafo e da impotência. A impotência do irrealizado.

Aliás, ele talvez fosse mestre em só perceber alguém depois que esse alguém estivesse morto ou tivesse desaparecido da sua convivência, pelas mais variadas razões, e aí, em seu resgate inútil, porque talvez soubesse como ninguém chorar sobre um leite derramado, ele seria capaz de erguer um altar íntimo em sua homenagem, idolatrando-o mediante reminiscências pouco racionais.

Seu pai talvez não passasse de mais uma das suas vítimas, provavelmente, sua vítima original, aquela que inaugurou, que deu origem a seu procedimento masturbatório, porque as que o seguiram nada mais foram do que uma sequência que reiterou a prática, transformando-a no que muitos chamam de trato sucessivo, e tudo sempre articulado na composição minuciosa de uma existência interrompida pelo gesso. Mas qualquer gesso se dissolve na água, porque enquanto há vida, sempre há promessa.

E justamente porque chamara a Sra. R., sua esposa, de predicados inabordáveis, atributos nada polidos que jamais fariam parte de seu caráter ou de sua personalidade, além de dar-lhe um safanão que quase a reduziu a um saco de batatas jogado num depósito, ele, caso ela o precedesse na morte, seria macho o suficiente para que se projetasse sobre seu caixão, constrangendo quem quer que assistisse ao espetáculo, imaculando-a pelo rótulo da perfeição, porque só lhe permitiria, como o único amor de sua vida e como mãe de seus filhos, espaço à destra de Maria, a Virgem Santíssima, uma vez que, desde que morta, é claro, a Sra. R. só teria lugar no Céu.

 

3

Entretanto, entre o infelizmente e o pouco me importa, seguindo a linha de conduta do toque-o-foda-se, porque se alguém decide se deitar sobre os trilhos de um trem, o melhor, na maior parte das ocorrências, é abandoná-lo à própria sorte, ele não se permitia liquefazer-se, e o gesso, essa metáfora pouco atrativa, como um calo teimoso, se mantinha de prontidão, sempre zelando pela integridade da sua dor, porque ele, como muitos outros em sua calamidade, só encontrava consolo e gratificação nesse se doer por inteiro, intimando todos seus íntimos a tomarem parte em sua festa. Ele não desejava a presença corrosiva de quem o libertasse de si mesmo, mas a constância fiel e oprimida de um companheiro que o ouvisse, se deixasse abater como muro de lamentações ambulante, reforçando sempre sua autopiedade, batendo em suas costas o ponto diário do pobre coitado e nunca o abandonando momentaneamente sem antes lhe dizer: você está certo.

 

4

Porque houve alguém, oscilante entre a permanência e passagem, que se debruçou sobre ele, desejando liquefazê-lo, principalmente, quando numa noite gélida, ao passar pela confusão de seu quarto, fisgou, por entre o monturo de papéis que sepultavam sua cama, uma carta que despertou seu interesse, prometendo aquele instante de envelope, comunicação e conteúdo qualquer coisa que talvez pusesse ordem naquele galinheiro.

Entretanto, apesar do entusiasmo opaco, e mais do amigo do que dele, nada chegava a indicar algum fiat lux, pois o hábito do franco e expansivo derrotismo sempre parecia falar mais alto do que qualquer vínculo com a esperança, permitindo que a escuridão permanecesse como inevitável constante. Infelizmente, seu jogo do triste, e ele se manifestava sem trégua, desde que estivesse falante e talvez à vontade, acabava quase sempre levando vantagem sobre qualquer fiat lux, permitindo-lhe aderir ao tipo que só oferecia prazer, a quem quer que fosse, desde que estivesse em ausência ou que fosse visto pelas costas.

Mesmo assim, o amigo, determinado pela própria consciência, fez o que a tal carta lhe assoprou como impulso, convencendo-o e arrastando-o até aquela sala ampla e velha, de pé direito muito alto, onde havia certo tempo já se sentara como aluno, encontrando meia dúzia indócil de gatos pingados que padeciam daquela mesma aflição, que aprisionava suas vítimas ao medo de abrir os olhos e deixar suas camas, tão logo acordassem em suas manhãs.

 

5

Mas a coisa não foi tão fácil assim, mesmo que tivessem comparecido a tal palestra, administrada por duas psiquiatras e uma enfermeira, porque ele escolheu o pior trajeto que poderia conduzi-los até a universidade, e o que era para ser trafegado em poucos segmentos de linhas retas, adquiriu a sinuosidade labiríntica e nervosa do parece-que-nunca-chega, sem contar que ele, ao estacionar seu automóvel, submeteu-o a sua habitual meticulosidade preventiva, checando todos os meios disponíveis de segurança que evitassem a cobiça e o logro dos ladrões de ocasião, o que permitiu ao amigo, além de fomentar seu desejo de espancá-lo, a bagatela de ter tempo para que fumasse dois cigarros. E não é possível avaliar se era triste ou patético, vê-lo caminhando indeciso na direção da sala dos meia dúzia de gatos pingados indóceis, seus companheiros de aflição, uma vez que, de quando em quando, ele voltava sua cabeça para o automóvel estacionado, sempre pondo em dúvida o estado da sua segurança.

 

6

E lá pelo refresco do intervalo, porque ele, o amigo, não constava em seus registros de tarja preta, Neurose, Transtorno e Síndrome se apossaram de sua aparição inesperada, desejando saber a que estava vindo, e entre um não-sou-da-família e o estou-como-amigo-apenas-oferecendo-apoio, em círculo, como três graças freudianas, elas, quase em coro, deram-lhe as tintas sobre o fato daquele querido atormentado jamais ter condições de romper os laços com sua medicação necessária, muito menos, abandonar os encontros com seus parceiros de angústia e ansiedade.

É provável que, em certos casos, desgraças comparadas tragam algum benefício a suas vítimas, e elas consigam ir além das ilusões e dos consolos, deparando-se com as cores da esperança, sem contar que um pouco de convencimento acerca de si mesmo, quase uma golfada de autoestima em consórcio, pode também fazer com que o amargurado encontre equilíbrio, desfilando sua cura suspeita, apesar das cicatrizes. Porque ao se perceber, já não tão confuso no meio de confusões mais graves do que a sua, ele talvez adquira coragem para que se enfrente diante do que encontre num espelho e sorria satisfeito e com menos macaquinhos pelo sótão.

E aí, quase num arremedo de conclusão hipotética, talvez seja possível que ele, esse amargurado pusilânime, não mais se considere uma monstruosidade esquiva e ofereça algum descanso a seu automartírio, restando-lhe ainda certas manias, alguns tiques e outros toques, porque a perfeição é sempre o efeito de uma causa anterior, em vias de ser transformado em outra causa - a perfeição é um estado cheio de ansiedade, é um movimento sem parada obrigatória para o repouso, só encontrável pela barra do horizonte.

  

7

E ele, ele que não é ele, mas o outro, o amigo interessado em seus achaques mentais...

Mesmo que tenha se dado conta de que estava em equívoco, pois, até então, considerava Síndrome do Pânico como uma repaginada pós-moderna da velha Histeria, e as três graças freudianas o puseram em seu devido lugar, organizando aquela prateleira de seus conceitos, eventualidade que muito o satisfez, porque seu prazer real só era extraído dos choques do intelecto e das emulações estéticas, passando por cima do resto como mal necessário, porque esse prazer quase refinado era sua forma de não comparecer aos chamados da realidade – e foi justamente esse seu lado essencial, quase uma descarga da própria índole especulativa, que lhe deu o impulso para que se convencesse e arrastasse o atormentado a enfrentar aquela tarde...

Mesmo que tenha prestado atenção no discurso esterilizado de Neurose, Transtorno e Síndrome a respeito da situação de calamidade mental do outro, prometendo-lhes que faria o possível para ajudá-lo, conforme as prescrições lançadas, mas desde que o amigo lhe desse chance e meios...

Mesmo que estivesse por lá, naquele instante de quase tarde completa de junho, justamente numa das salas onde já havia se sentado como aluno, e ele continuava oscilante entre o recheio e os apelos externos, louco para sorver um café e para fumar um cigarro, sem contar que a revisitação esteve longe de se converter em nostalgia...

Enfim, apesar do mesmo que isso ou do mesmo que aquilo - e mais alguns gramas de dispêndio inútil da própria energia em benefício de um terceiro pouco interessado naquilo que talvez tivesse para lhe oferecer -, ele, com alguma tristeza, admitiu, meses depois, que o outro não estava disposto a interromper sua rota de fuga, porque o outro, o que sempre fora problemático, costumava provocar polêmica sem critério, nos tempos da escola anglicana, subindo em classes e clamando contra o mundo e arregalando os olhos numa fúria de anarquista russo, daqueles lindos que distribuíam bombas pelos trens, ávidos por reduzir a pedaços algum aristocrata, o que talvez já estivesse anunciando seu futuro...

E agora, nesse agora do outro, esse agora e a vez de seu amigo e antigo colega de escola, ele acaba caindo na teia da própria memória, vindo a furo a tal escola anglicana, coisa insípida que não estava em seus planos... Ela teria a idade do Titanic, caso também não tivesse sido afundada, mas pela péssima administração, que tudo fez para que fosse fulminada do mapa de uma cidade. Mas ela, existente ou fulminada, dera-lhe chance para que sua mão de quinze anos fosse apertada pelo Arcebispo de Canterbury. E ele era o único, da gente daquela época, gente que ele não fazia a mínima questão de reencontrar, que tinha fixo na experiência o episódio da visita do Arcebispo de Canterbury. E pouco lhe dizia respeito que o objeto de honra não passasse de mais um exemplar do ensombramento britânico, confundindo-se com um espectro cinzento e cordial que tinha a mão gigantesca e gelada. Porque o relevante, e isso apenas para ele, era sentir sua presença, uma vez que, por tabela, quase que por interposta pessoa, aquilo significava se sentir bem próximo de Henrique VIII, de Hampton Court, de Elizabeth Tudor, os cambaus, pois, desde que começara a se perceber, e isso se deu lá pelos onze anos de idade, foi desenvolvendo uma séria, quase obsessiva, inclinação pela Inglaterra, embora não chegasse a afundar no descalabro da hemiplegia, pois sempre soube extrair o que lhe dissesse respeito dos mais variados lugares do mundo, apesar da Inglaterra estar sempre como ponta de lança. Ele também não era muito bem certo. Por essa época, essa outra calamidade, o que começou a se interessar pela Inglaterra, o que quase teve um orgasmo, só porque sua mão foi tocada pelo Arcebispo de Canterbury, também já começava a mostrar suas garras. Cada um no seu jeito, mas todos pela insanidade.

E assim, seguindo a trilha da desilusão para que componha um desfecho, ele passou a desconfiar das alegações do amigo, sempre engatilhando desculpas esfarrapadas, ditas com a convicção dos desajustados, para que não tomasse as pílulas multiformes e não frequentasse as sessões terapêuticas, sempre comprometidas com um salada russa de inibições, traumas, medos e fobias, arranjando mais uma combinatória de variações em torno de mais um tema. E para que a desconfiança saltasse para a total falta de crédito foi num triz, porque a atormentada criatura só sabia dizer que a medicação afetava seus olhos e interrompia o funcionamento de seus testículos, além dele jamais se assumir como responsável pelo que quer que fosse que tivesse dado causa a si mesmo, transferindo, como hábito ou vício, os motivos de suas frustrações para o bode expiatório que estivesse mais próximo, geralmente, sua família.

Portanto – e isso foi aos poucos amadurecendo em seu íntimo, atingindo sua culminância alguns meses após sua incursão sem nostalgia pela sala de aula onde já havia se sentado como aluno e descoberto que estava em equívoco, porque Síndrome do Pânico e Histeria não são a mesma coisa -, só lhe restava abandoná-lo às próprias nuvens, deixando-o deitado sobre os trilhos de um trem, uma vez que o fiat lux jamais se daria naquele espírito, isto porque ele nunca fizera parte de seus planos, e, quanto ao fato de reencontrá-lo, depois de trinta anos de corte e distanciamento, de certa maneira, nada mais lhe oferecia do que observar uma árvore que conhecera como semente.

 

 8

Já estamos no capítulo oito dessa coisa nervosa e emaranhada. Coisa talvez escrita por um louco acerca de outro louco. Um louco que ama outro louco, caso contrário, jamais perderia seu tempo escrevendo sobre ele.

Algo já foi escrito a seu respeito, mas ainda estamos em sua manhã aflita e pusilânime, porque ele ainda não se levantou, ele ainda luta para que deixe sua cama. Ele é lento, sempre foi lento, arrastado, arrastando-se, sempre na iminência de tirar alguém do sério, e seu estado de lesma, mas a lesma do caracol, foi uma das fontes primárias da ruína de seu casamento.

Ele desperta, agita-se e promete alguma ação, mas quando entra em algum surto, põe-se aos berros e maldiz o que sua ira enquadre, podendo também, dependendo do dia, esmurrar armários e bater com sua testa numa parede. Foi numa dessas séries de perda das estribeiras que ele deu um safanão na Sra. R., transformando-a momentaneamente num saco de batatas jogado num depósito.

 

9

A imaginação às vezes abusa das próprias potencialidades e sugere intuição e arqueologia para que se recomponha um início, seja ele qual for. Mas era como se velhos inimigos, inconscientes do desafeto pelo apagamento de cada memória, tivessem se reencontrado, e a atração que um sentiu pelo outro na juventude não passou da armadilha necessária para que dois descuidados provocassem aquele acidente – o desconforto da solidão em dueto.

Sua falta de percepção acerca deles próprios e também da mera natureza das coisas os impedia de observarem sua tortura recíproca como uma forma de experiência a serviço do que alguns chamam de crescimento pessoal. Como não tinham meios para que suportassem certas verdades, só lhes restava que chafurdassem na desordem da própria desunião construída. Com o dinheiro escasso e a falta de perspectiva transcendente o que estava ruim sempre se dirigia na direção do pior. Da sobrevivência, sem muito esforço, conseguiam saltar para o vegetativo.

Não era agradável vê-los em atrito, como duas lavadeiras rancorosas e enraivecidas, embrenhadas pelo cipoal duma competição estéril, trocando desaforos que não os levavam a lugar algum, ainda mais quando seus atritos se originavam de pequenos nadas, denunciando que suas razões de profundidade mostravam-se ocultas, sem chance para a pronúncia que talvez resolvesse de uma vez por todas a calamidade de seu casamento.

Em raros períodos de trégua trêmula, havia silêncio, mas ele era constrangedor, repleto de ruídos nervosos, como um fósforo aceso a desabar sobre um rastro de pólvora, sugerindo a calmaria que sempre antecedia a uma tempestade. Nesses momentos havia furtivos olhares faiscantes de ódio. Se cada um tivesse êxito, conseguindo atingir seu alvo, quase sempre pelas costas, haveria pelo menos um corpo à espera de agentes funerários.

Entre esses dois, chapinhando pelos detritos de um matrimônio, alguém deveria ceder. O que não significava que devessem retornar ao amor – se é que ele havia existido em algum dia de suas vidas sem brilho. Bastava-lhes uma separação sincera, e que cada um seguisse o próprio caminho. Mas ambos, comprometidos com a cegueira de seus rancores e de suas frustrações mútuas, não tinham reservas de inteligência para que se inclinassem diante desse sacrifício. Hipnotizados pelo próprio orgulho ridículo não atinavam que ceder alguns gramas na direção da própria liberdade jamais implicaria humilhações mútuas – muito pelo contrário, pois apenas prova o que muitos chamam de maturidade. Eles ainda não haviam sido afetados por ela – eis a razão de tanto sofrimento em dupla. Eles ainda não estavam percebendo que a vida, em determinadas circunstâncias, compõem-se de ninharias que exigem superação, escombros e vassoura.

Não tenho dúvidas a respeito: certos casamentos mostram-se condenados à dissolução muito antes que aconteçam – basta que um olhar arguto esmiúce as incompatibilidades que existem entre as partes. Entretanto, quando essas mesmas partes incompatíveis têm boa vontade, abdicando da inutilidade do orgulho, mas isso apenas ocorre se ambas forem inteligentes e fortes, o que parecia inconciliável corre o risco de tornar-se complementar, pois instalam-se trocas necessárias, permitindo que um ofereça ao outro aquilo que lhe falta.

Quem os observa e se dá o trabalho de escrever sobre eles, como se estivesse num laboratório a estudá-los como cobaias, percebe que nada, por enquanto, pode fazer-lhes de bem, exceto entregá-los à própria sorte, torcendo para que rompam seu círculo de vício, e que consigam ver que tudo quebra, passa, desaparece, até mesmo, o que insiste em sugerir a composição da eternidade.

 

10

E a lesma, agora já vista como um caracol, desliza, e seus olhos, como um aleijado que tateia por sua bengala, agarram-se à fotografia daquela pobre Virgem, que vela e ignora, porque todas as Virgens são ponderadas e tolerantes, sempre fiéis ao seu exercício de compaixão, a desordem do por onde ele se deita, se enrosca, se oculta, foge e tenta dormir todas as noites, temendo e odiando sempre cada manhã que se insurge.

Ele não era Judy Garland, disso tenho certeza, sequer estava como escravo da MGM, embora, e disso também tenho certeza, caso voltássemos no tempo e ele estivesse por lá, na minha companhia, faria das tripas coração para aproveitá-lo como eletricista ou desenhista de cenários do estúdio, amontoando-se como mais uma das vítimas, de sol a sol, de Culver City. Sim! Sem dúvida, ele não era Judy Garland, mas suportava o mesmo inconveniente, apesar de nunca ter recorrido a pílulas para que dormisse e comprimidos para que aderisse ao ritmo do sempre alerta: deitava-se e custava a pegar no sono; ferrado no sono, custava a se livrar dele, permanecendo nessa letargia protetora o máximo que lhe fosse possível, porque cada despertar era sempre como se fosse constrangido a nascer de novo, sendo-lhe insuportável enfrentar as luzes, os sons e os choques que o condenavam à vida.

 

11

Isso pouco ou nada interessa, pois pode muito bem se confundir com arabescos, e uma coluna dórica sempre leva vantagem sobre as concorrentes, uma vez que o menos sempre será mais.

Mas aquela fotografia em série da Virgem é a representação de um ícone que se projeta na construção de um símbolo, seja de uma hipótese de crença, seja de uma instituição. Mas há algo bem mais espinhoso do que isso, porque sua mensagem piedosa de esperança está calcada na dor, e dores podem sugerir Sade & Masoch, bastando que se observe a expressão amargurada que se fixa em seu rosto. E ele, seu rosto, aflige e irrita qualquer um que possua independência intelectual, lendo o mundo e o além dele pelos palpites da mera natureza das coisas, permitindo-se, portanto, virar a mesa das crenças infundadas, e dizer que se pode, mas sem blasfêmia ou crime contra a honra, enveredar por caminhos menos turvos, mas isso desde que o sujeito tenha olhos de ver.

Entretanto, essa Virgem no papel, arbitrária e de circunstância, presta-lhe algum serviço, todos os dias, porque talvez esteja à sua imagem e semelhança, encaixando-se ambos, como luva e mão, absolutamente feitos um para o outro, pois eles ainda precisam do palpável para que possam acreditar em alguma coisa. A abstração nunca teve êxito em seus pensamentos.

Mas nem tudo pode ser considerado como nulo, perdido ou iníquo em sua intimidade cognitiva, principalmente, porque mais estamos do que somos, sem contar que a retórica sempre nos pode salvar de qualquer abismo: logo, jamais devemos nos esquecer de que estamos, mediante nossas escolhas e nossas atitudes, sempre compatíveis como nosso estágio de mente e de espírito. Portanto, cada um só pode oferecer aquilo que tem. Sem dúvida, a evolução dele precisa daquela Virgem de papel, e mesmo que isso talvez me assuste e quase me ponha para correr, ele merece, sempre e sempre, todo respeito, e que consiga extrair o melhor proveito de toda aquela idolatria, de toda aquela necessária aflição.

 

12

Meretrizando a pobre Virgem da sua devoção, e que Maria de Nazareth me perdoe, porque Maria Madalena é sempre mais interessante do que Tereza d’Ávila, ela sugere marfim e alabastro, merecendo, inclusive, o adjetivo ebúrneo (e quem não o conhece que recorra a um dicionário). Indo adiante, atropelando seu rosto repleto de dores, ele talvez esteja deslocado como veículo de uma Igreja que se afastou da arte, porque esse rosto piedoso, dolorido e Kitsch, desde que fosse violado por Max Factor ou pela Helena Rubinstein, talvez ficasse mais adequado, compondo alguma capa de Vogue dos Anos 20 nova iorquinos, porque ele teria tudo para que se desse muito bem, fazendo footing pela Quinta Avenida, sorvendo dry martinis pelo bar do Plaza ou dançando, até o sol raiar, em algum speakeasy da turma de Lucky Luciano.

Mas é provável que ele, que ainda precisa da Virgem de papel para que saia da própria cama, jamais entenda essa breve meretrização, porque sempre lhe faltou senso de humor.

E tudo se comprime e se empacota, alçando voo do nada para que pouse no coisa alguma, havendo ou não turbulência, porque todos se encontram interrompidos em suas tentativas, permitindo sempre a natividade de um aborto: a fotografia, a Virgem, Neurose, Transtorno e Síndrome, mais o amigo que veio de longe, enfim, todos em consórcio só podem observá-lo, lamentá-lo, rezar por ele, até mesmo, estudá-lo, fugir dele é outra alternativa tentadora, mas nada além disso, pois ele prefere estar como gesso, morrendo de medo das implicações de um fluxo, escolhendo sempre, como ladainha, repetição ou mantra, a sina do patético que se esparrama pelos trilhos de um trem. É sua peculiar forma de dizer SOS.

 

13

Alto e magro, esguio naquilo que se pode considerar como um foco de elegância, porque certas compleições físicas são naturalmente belas, e muitas se mantêm íntegras até o fim – mas também podendo apontar para o poste de iluminação, porque nada é perfeito. Azedo, porque ele também pode indicar alguém que se submeta a uma dieta de fel e vinagre pelo café da manhã. Contrariado, porque talvez em seu imaginário, cheio de desconfiança, o mundo se revele como silenciosa conspiração. Aturdido pelos receios que o interceptam.

Enfim, ele já está fora da cama, e seu primeiro gesto pela semiescuridão, porque nunca abre a janela do quarto, é arrastar-se até o interruptor de luz, porque além da má vontade que o impulsiona a não sair do lugar também corre o risco de tropeçar no que se esparrama pelo chão como arquipélago. De posse do interruptor de luz, ele o tortura com trinta e seis pressões, surpreendendo o quarto com aquele acende-apaga que se confunde com um cacoete.

 

14

Graças a Deus, ou ao motor imóvel de Aristóteles, que ele está livre deles, dos cacoetes. Não se expressa insatisfatoriamente através dessas descargas pouco estéticas. Nunca recorre a piscos frenéticos - aqueles que podem contagiar qualquer cristão, provocando reação em cadeia, desde que você neles se grude por algum tempo. Jamais arregala os olhos, como algum cocainômano aflito, sugerindo que está na iminência de lhe dar uma mordida. Muito menos, seu corpo é acometido por contorções espasmódicas e contínuas, sugerindo a coreografia do epilético.

Limita-se a transferir qualquer chance de tê-los para impulsos externos, que insinuam posse e domínio de objetos, talvez confundidos com atitudes necessárias, que sempre lhe provocam a dúvida bizarra de que irá se sentir incompleto, caso não ceda às exigências de seu comando.

Entretanto, porque alguém está sempre numa situação pior do que a sua, ele pode ensebar, com digitais e gordura íntima, as coisas que toca inúmeras vezes; ele pode ainda, expandindo sua tentação, arrecadar coisas que se aproximam dos despojos e dos escombros, e isso depende sempre do ponto de vista de quem delas se livra ou delas se apossa, descobrindo-as sempre nos lugares mais inusitados e empilhá-las em estoque, sempre dizendo a quem interessar possa que nunca se sabe, pois ainda poderão apresentar alguma utilidade; e ele, como variação do tema anterior, também extrai prazer em guardar caixas, potes e vidros vazios de produtos já consumidos, empilhando-os também em estoque, sempre sob alegação de utilidade incerta num futuro inesperado – mas ele ainda não consome suas energias contando azulejos ou ladrilhos, sequer afunda no descalabro de sair nu, só se permitindo sapatos, meias e gabardine, para que em lusco-fusco se arreganhe na frente de um portão de escola de freiras. A Virgem está sempre lhe impondo limites em seus gestos furtivos de pura tentação e gozo inabordável.

 

15

E assim – sempre interrompido por mil loucurinhas que preenchem as lacunas de seu cotidiano, e elas talvez sejam as arestas das suas idiossincrasias que precisam ser aparadas -, ele mal abandona o interruptor pressionado, e não se sabe como aquela pobre lâmpada seviciada ainda não bateu a caçuleta, e se lança sobre um aparelho de som, cinza rato de tanta poeira, escolhe a música que lhe fale alguma coisa naquele instante, ativa a tecla das repetições, amplia pelo rumo do exagero a intensidade sonora, anunciando à casa que ele existe e que já está de pé - e ela, a música escolhida, será sua trilha sonora, até que ele saia do quarto, cumpra com seus compromissos pelo banheiro e se arraste para mais um dia.

 

16

Interessante – e isso talvez se confunda com sadismo – observar o tipo de relação que ele assume com a música, porque sem ela é difícil viver, pouco importando qual seja o gosto do freguês.

De certa maneira, ele jamais corta o vínculo com aquilo que assimilou pela adolescência, raramente se permitindo agregar coisas novas e desconhecidas, porque é como se elas tivessem poder para desarranjar seu castelo de cartas, fulminando-o como cartas, pois novidades sempre lhe transmitiram o desconforto do desconhecido, e o desconhecido, com sua tendência inevitável ao estranhamento, sempre seria percebido como ameaça.

 

17

Foi isso, esse estado deplorável de insegurança – e a semente talvez tenha brotado no exato momento em que sua mãe lhe disse que ao invés do irmão morto ele é que deveria estar em seu lugar, e a coisa se deu lá pelos seus quatro ou cinco anos de idade, logo após o enterro -, que sempre o interditou às lojas masculinas que julgava inacessíveis a seu bolso. Mas num belo dia ele inoculou coragem e se precipitou pelo interior de uma delas, aproveitando-se do apelo de uma liquidação. E ele constatou que o bicho não era tão medonho quanto lhe parecia, porque ninguém o barrou na entrada, não se sentiu rejeitado enquanto experimentava suas roupas, ganhando a calçada satisfeito com as sacolas que carregava.

 

 18

Frágil e influenciável, porque não se permite o peso e as implicações do autoconhecimento, querendo sempre mais a aprovação de estranhos do que a própria, ele não chega a ser difícil de ser conduzido, aderindo às preferências dos outros e acomodando-as a si mesmo, como se sempre tivessem lhe pertencido. Mas isso acontece desde que não seja pressionado, sendo imprescindível que sempre o deixem à vontade, seguindo o impulso de sua lenta apreensão das coisas do mundo. E assim, delicadamente, ele encontra meios para que enverede por outras plagas e engatinhe na direção de si mesmo, sem medo, sem vergonha e sem culpa.

  

19

Pelas impressões da Sra. R. - mais próximas de um decreto do que de uma simples opinião a respeito de um fato, e tenho certeza de que ela exagera porque está sob o domínio do orgulho ferido e da mágoa, e nessas condições, sem bússola, qualquer um está fadado aos excessos e à injustiça -, ele só teve acesso ao que ouve, e afirma como único e definitivo, devido à convivência, à contaminação ou à lavagem cerebral que recebera de seus sobrinhos. E ele teria se apossado da coisa como se tudo não passasse de geração espontânea, pisoteando e apagando o que quer que tivesse plantado seus referenciais. Determinada pelas convulsões de um ressentimento, a Sra. R. deixa claro que ele nada tem de pêssego ou de abacate, competindo sempre com uma cebola.

  

20

 

Talvez a Sra. R. tenha razão.

Talvez a cebola tenha se constituído aos poucos, camada por camada, e sua semente tenha germinado quando ele ouviu o que lhe fez mal, ferindo-o sem chance para cicatrização: quem devia estar no túmulo era você e nunca seu irmão. E ele se sentiu indesejado, traste e nulidade. Porque ela, a semente, sempre esteve em potência, só aguardando o choque necessário que a fizesse brotar. E assim, como penumbra, insegurança e cegueira, ele se transtornou em paralisação, nostalgia e autossabotagem.

E ela, sempre ela, porque uma cebola é exatamente o que não é um pêssego ou um abacate, abriu-lhe as portas para que ele sempre conspirasse para que nunca crescesse, porque cada polegada de crescimento implicaria dor, desconforto e mudança. Aprisionado num universo raso e restrito, como bunker peculiar, ele não se repaginava, muito menos, se aprofundava naquilo que parecia lhe dizer alguma coisa, cultivando sempre os próprios interesses como alguém que baixa sua febre, mas que não se dá conta de que ela é sintoma de algum foco infeccioso. E talvez o adolescente, sem a interrupção da morte, tenha se tornado adulto apenas da biologia, conhecendo a velhice, mas nunca a maturidade.

Talvez a Sra. R. tenha razão, além de vibrar pelas próprias razões.

 Passando pela vida como se estivesse na pele de uma doença que afeta a imunidade de um corpo, permitindo-lhe o surgimento e o acessório de outros sustos, o adolescente de cinquenta e poucos anos agregou ao medo que o afligia um pessimismo sombrio e corrosivo. Ele lhe garantiu uma visão turva da existência que o fazia tecer prognósticos de derrota, tanto para si como para os outros. Não me esqueço, dentro de seu automóvel, o que ele me disse de uma amiga de infância, quando descobriu que ela doara um de seus rins para uma irmã: ela não vai resistir por muito tempo... Lembro, da mesma forma, do episódio do posto de gasolina de um conhecido, que o convidou, sabendo que estava desempregado, para que assumisse a gerência: ele não aceitou porque não se sentia competente para o cargo. Não era aconselhável a ninguém lhe revelar seus projetos e sonhos, por correria sempre o risco de vê-los fulminados por algo que talvez se confundisse com inveja. Se havia pessimismo, é claro que também o corroia um desânimo irritante. A hiena baixo astral fica engraçadinha gemendo pelo cartoon, mas é sempre inadequada e dispensável como convivência.

Imitando uma criança tímida e assustada, que vai à escola pela primeira vez, comprometida com a postura clássica da criatura conduzida pela mão, ele não conseguia dispensar a presença constante e firme de alguém que o empurrasse na direção de seu necessário. Mas que logo após a façanha, esse infeliz acompanhante continuasse em sua cola, trancando a porta e permanecendo vigilante para que ele não escapasse. Quando se interessou pela Sra. R., uns nove anos mais velha, alegre, extrovertida e dona do próprio nariz, ele talvez estivesse tateando pela mãe que sempre procurara. Mas ela queria um homem para chamar de seu e não um filho sempre grudado na barra de seu avental. Tendo ou não tendo razão, e pouco importando que se mordesse de raiva apenas pelas próprias razões, porque o orgulho ferido e a mágoa às vezes falam mais alto, o fato é que, num belo dia, a Sra. R. jogou a toalha, pediu pausa sem reflexão  e decidiu que, a partir daquele instante, sua cama só teria espaço para um travesseiro.

Como inevitabilidade atrofiante, tudo isso, e mais um pouco em sistema, encontrava meios para lhe arrancar qualquer oportunidade para que desenvolvesse alguma chama de índole especulativa, bloqueando, como decorrência, o ataque da curiosidade sobre as promessas e as ilusões do mundo.

 

21

A forma como ele engendrou seu gosto musical – pelo menos, desde que me deixe conduzir relativamente pelas farpas da Sra. R., e seguir sua rota não significa ciência, mas apenas o olhar fugidio e falseável de uma impressão nervosa – lembra a maneira como um personagem de Frank Capra, lá pelos idos de 1938, tornou-se escritora: alguém, por engano, entregou uma máquina de escrever em sua porta e nunca voltou para reparar o equívoco.

A música em sua vida, em sua composição como preferência, pode ser uma pista para que ele seja observado em sua estrutura profunda. É, talvez, a ponta de seu oculto iceberg. A parte sempre nos leva ao todo. E tudo se pulveriza em arqueologia.

 

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Seu gosto musical – e ele tem todo direito de consumi-lo, polegada por polegada, mesmo que esteja sempre sugerindo um chip implantado, prometendo alienação e desespero – é a música do desbunde e da revolução sexual, mas também da heroína, do psicotrópico e da overdose. Conhecendo ou não Mary Quant, podendo ou não frequentar os preços da Biba, ele veste jeans e bata indiana. Ele trata New Orleans como se nunca tivesse existido, muda-se para Londres e corre risco de vida em Woodstock. Sua Vênus jamais brota da espuma das ondas do mar, mas duma estonteante lufada de marihuana. É a música de um povo que talvez tivesse conhecido o ostracismo e a indiferença, caso não fosse contemplado pela sorte de morrer aos vinte e sete. E essa gente talvez rolasse hoje pelos palcos e pela mídia como escombros do flower Power, principalmente se insistisse em não trocar de roupa, pois sua moda só cai bem nos que estiverem abaixo dos trinta. “Nos que aqui estamos, aqui por vós esperamos” é o que lhes sobraria, embora, além de um túmulo também pudessem se considerar como peças de museu, e isso jamais lhes poderia ser negado, porque o Céu que nos protege é de todos, sem pertencer a ninguém.

Mas talvez o triste nisso tudo seja que ele ouve sem saber muito bem o que está ouvindo, porque além de nunca ter se coçado para que acomodasse um inglês em seu lombo, jamais mostrou interesse em averiguar o terreno onde estava pisando, não tendo consciência do que talvez preenchesse seu prazer e seus dias. E é provável que talvez seja o chip implantado, prometendo alienação e desespero, que o faça se sacudir como tola adolescente pequeno-burguesa que se deixa tatuar, em chinês, crendo que exibe um PAZ ou um AMOR, e o que marca sua pele é apenas Coca Cola, em chinês, claro!, mas Coca Cola.

 

23

O problema nunca residiu em sua ignorância em si.

Ninguém nasce de posse das arbitrariedades e das convenções que acumula pela vida, depois as decidindo como gostos ou aversões. O ponto de partida de cada um é sempre pelo instinto e pela intuição. De um jeito ou de outro, estamos sempre ignorantes sobre alguma coisa. O que não pode ser jamais esquecido é que também estamos ignorantes acerca daquilo que julgamos conhecer. Mas principalmente estamos em total inconsciência a respeito de coisas e situações que sempre existiram e ainda não as percebemos.

O patético e o reprovável é que ele se afogue nela por conta do medo de correr riscos, considerando-se impedido de ir adiante, deixando-se abater como alguém que se sente satisfeito com a própria insatisfação, nunca se permitindo perceber que um homem possa conquistar o mundo, sem nunca ter saído do próprio bairro.

 

24

Enquanto sua personalidade ainda corria riscos que poderiam distorcê-la, perturbando seu desenvolvimento, além da língua que o quis num túmulo, houve também outra farpa, tão poderosa quanto a primeira, e ambas levaram a nocaute sua formação.

Somos o resultado de nossas leituras, mas antes disso, e talvez sejam esses desvios de percurso que nos preparem para nossas leituras, somos o efeito de nossos traumas.

A estupidez humana, o que alguns delicados chamam de cognição precária, pode também ser burocrática. Ela olha, vasculha, analisa, separa e classifica. Ao vigiar, ela aprisiona a si mesma em registros. Graças a ela, a praga notarial pôde, com muita facilidade, conduzir milhões de judeus ao holocausto, definindo e enclausurando homens pela arbitrariedade do direito civil. Quem não esteja em sua lista não existe. Muitos têm permanecido na lista, constando nela pelas exigências práticas e ilusórias do progresso, para que deixem de existir.

E uma palavra escrita num desses espaços definitivos foi suficiente para transtorná-lo pelo resto da vida – e ele se afogou magoado no inesquecível, corroendo-se entre a ofensa e o ressentimento: bastardo.

Ninguém sabe, até hoje, como a tal palavra, que muito atormentava no passado, foi parar na certidão, provocando certo estrago. Não se sabe, até hoje, qual foi o motivo do estrago. Ele pode estar oculto, agasalhado num envelope pardo ou numa pasta de papelão entregue ao desgaste, mas ele ainda está escrito e lateja como estrago. O que talvez possa ser escrito sobre o estrago, e isso não serve de consolo para o que se considera estragado, é que ele parte da falta de atenção de alguns idiotas e vai ao encontro da ironia do acaso ou do destino. O desfecho é que o bastardo que faísca em sua certidão de nascimento feriu-o tanto quanto a fala intempestiva da mãe, cuspindo-lhe na cara que era ele que deveria estar apodrecendo na sepultura e nunca o irmão.

Aliás, essa ofensa da mãe é coisa que merece atenção. Ela deve ser observada com cautela. Emoções baratas e barracos jamais irão salvá-la do crime. Somente o bom senso pode reduzi-la ao desabafo insensato, entregando tudo a um punhado de pó, como se nada tivesse sido pronunciado, exceto uma dor com sérias dificuldades de expressão - alguns sabem falar; outros, não. Quem apodrecia no túmulo era um quase bebê. Nada ainda se sabia dele, exceto que estava existindo. Era apenas uma promessa. Asfixiada pela emoção e pela ira, embora também estivesse na linha das poucas luzes, a mãe, porque também o sabia indócil, teimoso e irritante, nada mais fez do que trocá-lo momentaneamente por uma hipótese. Aquele que vai, e ainda mais sendo um quase bebê, é sempre melhor do que aquele que fica. E a mãe deve tê-lo ensinado a fazer isso, porque ele também idolatrava desaparecidos e mortos em detrimento dos que estivessem a seu lado. Calcada na utopia, a mãe viu no filho morto o filho ideal. Nele, um estorvo indesejável. Mas isso não significava que desejasse na realidade vê-lo também num cemitério. Ele era o que lhe restava de prole. Poderia ofendê-lo como válvula de escape – o escoadouro da sua confusão mental -, mas não estava interessada na sua morte. Do seu jeito, ela faria o possível para sempre ampará-lo, e o futuro lhe provaria isso.

Mas ele não tinha meios para que captasse a mensagem oblíqua, sendo mais confortável se deixar pelo trauma. Quem nasce numa família de dentes rangentes e de tiros linguísticos pouco lisonjeiros, onde a palavra desgraçado ricocheteia pelas paredes, só pode atravessar sua vida ruminando ofensas como vacas constroem seu bolo alimentar.

Mas ele não era um bastardo. E se fosse, faria alguma diferença? O homem, enquanto mente e alma, não vem sempre antes de qualquer documento?

Entretanto, ele não era Erasmo de Rotterdam, onde o bastardo só veio em seu auxílio, impelindo-o, sempre na pele do latinista finório, a se converter em ironia, humor e prudência, a serviço do bom senso. Ele também não era uma Elizabeth Tudor, cuja acusação de bastarda, pelas bocas da Europa católica, só lhe permitiu um rancor positivo, onde sua vingança foi o próprio sucesso, porque soube fazer da sua herança um país respeitável.

Simples e triste, pois sua leitura do mundo era bem outra. Por natureza, ele estava comprometido com a sensibilidade da obstrução. Ela é nociva, porque é contraproducente, permitindo que suas vítimas se abespinhem por qualquer lorota. Ao invés do sacode a poeira e dá a volta por cima, porque o shake it out é sempre bênção e atitude corrosiva contra o engessamento, ela lhe permitiu calo, cuágulo, nódulo e trauma, prestando-lhe o desserviço da estagnação.

 

25

Depois da segunda-feira sempre vem a terça, porque monday, lundi e lunes sempre antecedem tuesday, mardi e martes,  e assim, em quase todas as línguas desse mundo, dando chance, desde que se siga essa lógica tola, para que de um quarto, ao despertar, se salte para um banheiro, pois após o sono poderá haver sempre urina e merda a nossa espera.

E ele, que já esteve em concha, acordou a contra gosto e bebeu coragem para que abrisse os olhos, agora sai das sombras e do falso aconchego para que se embrenhe na luminosidade fria e úmida do seu banheiro. Higiênico, o banho sempre acompanha seu despertar.

Mas antes dele, do banho, há sempre uma tentativa. Ele sabia que precisava, como todo mundo precisa, porque do contrário você posa de carrapato, mas também sabia que com ele não era bem assim, não era nada fácil, porque não era só sentar e, como índia parideira do Solimões, deixar que a coisa saísse pelo próprio impulso.

Não! Com ele tinha sempre de haver muito esforço, caretas e às vezes sangue. Puro sacrifício, rosário, choro e vela. E, desta feita, nesta manhã de calvário, como todas as anteriores, a coisa se mantinha na base da resistência, dizendo-lhe pelo silêncio:

“Eu até saio, mas antes quero vê-lo arregaçado e gemendo, transtornando seu rosto em esgares de sacrifício e súplica. Sim! Eu até saio, porque preciso seguir adiante, porque me acumulo há sete dias e não me construí para que fique por muito tempo pelo seu intestino. Mas antes quero fazê-lo comer o pão que o diabo amassou. E que você não se atreva a me expulsar antes de meu tempo consagrado às suas entranhas putrefatas, usando os artifícios dos purgantes, porque em você me gosto sempre sólida, bem durinha, competindo com a consistência do cimento. Cada um tem sempre os próprios excrementos à sua imagem e semelhança. Sim! Eu sou a merda! A sua própria merda! Exijo respeito! Sou, fique certa disso, uma das provas inequívocas da existência de Deus. Pertenço à falange da dinâmica, da dialética, do movimento, da certeza da impermanência de todas as coisas. Me despedia de Karl Marx, sem lhe dizer adeus, quando o induzi a correr para sua escrivaninha e escrever que ‘tudo o que é sólido se desmancha no ar’. Inspirei Rodin a esculpir seu Pensador. Sou originária das mais variadas e inusitadas combinatórias de nutrição. Sou residual. Ninguém, independente de berço, posição social, condição econômica, credo ou raça, escapa de meu domínio. Sou onipresente, mesmo que sempre negada. Eis uma das minhas sinas! Os homens ainda não têm olhos de ver. De forma oblíqua, fui mencionada por Santo Agostinho, oferecendo humildemente minha contribuição à Escolástica – ‘Nascemos entre fezes e urina’! Também cheguei, e isso porque Deus escreve certo por linhas tortas, pois preciso sempre, de um jeito ou de outro, estar sendo lembrada, a ser transformada, pelo tempo, na boca de meus súditos mais problemáticos, os homens, em interjeição duvidosa: Merda! Os franceses adoram me pronunciar, quase me confundindo com mãe e mar. E esse merda!, polissêmico e poliglota, descreve e expressa, além de desagrado, indignação e espanto, a perplexidade dos que me permitem formação e aborto, diante das surpresas do mundo construído por eles próprios. Sou universal e necessária! Graças a mim, o homem descobriu e aprimorou o perfume. Sem que desejasse, lhe fiz bem e mal. Mas o homem é sempre responsável pelo próprio destino. Se faz cagadas em sua história que não venha me culpar pelo seu infortúnio. Sou real. Suas cagadas são metáforas que me desrespeitam e me ofendem. Porque sou divina também lhe permiti o perfume pela ótica do livre-arbítrio. Eu e Deus jamais chegamos a abandonar o homem à própria sorte. Apenas lhe ensinamos, e a duras penas, o senso de responsabilidade: se dá o peido e se aguenta o cheiro. Sim! Não há dúvida sobre isso. O perfume é uma faca de dois gumes. Minha armadilha. Minha contribuição às ilusões humanas. O homem, em vão, luta contra mim através dele. Mas porque sou natureza, filha digna de Dioniso, tenho sempre a última palavra. Sou a merda!”

E ele, aliviado e sublime, quem sabe, leve como pluma e possuído pela satisfação do dever cumprido, quase cívico, mas dolorido, diga-se de passagem, não sem antes ter contemplado o que lhe oferece a sensação do amor e do ódio, tapa o vazo, não recorre à descarga e se mete no box, em busca do banho daquele dia.  

 

26

Mas talvez houvesse algo sério ainda não percebido, e esse algo imerso em seriedade prometesse que nem tudo estava perdido em sua subjetividade – porque suas repetições obsessivas talvez não fossem meros arabescos minuciosos, sem criatividade, mas gratificações desfocadas exigindo ajuste, pois ao encontrar a nitidez, ele encontraria a si mesmo, e servindo aos outros, serviria, antes de quem quer que fosse, a si mesmo.

Porque sua inteligência o fizera alguém que sabia lidar com uma fechadura, e nesses momentos de tato, paciência e minúcia, toda sua carga de repetições obsessivas vinha em seu auxílio, dando-lhe chance para o milagre da circunstância. Ele teria muito o que conversar com Luís XVI, caso um tivesse tropeçado no outro, e Luís Capeto o conduziria até sua oficina para que discutissem engrenagens, estalos e encaixes, esquecendo ambos da vida, através de combinatórias que abrem e fecham os cadeados do mundo, pois um chaveiro ainda é tão necessário quanto um médico, pouco importando que ele só fale espanhol, estando na Rússia. Um bom chaveiro judeu teria mais chance de sobreviver a Auschwitz do que um professor de literatura.

Além disso, desse saber lidar espontâneo com fechaduras, ele também jamais se intimidava na presença de uma rede elétrica, trocando resistências, revitalizando chuveiros, furungando em fiações que tanto evitavam incêndios quanto livravam donas-de-casa de suas tragédias momentâneas.

Indo mais adiante, bem mais além de qualquer além disso, ele se tornava terrível, largando tudo e se esquecendo de todos, quando se via frente-à-frente com a possibilidade de fragmentar algum motor de automóvel, somente para que talvez assimilasse sua estrutura e seu funcionamento.

Dentro de seu palco, ele talvez estivesse quase íntegro, quase completo, só lhe faltando a descoberta de si mesmo, pois somente ela o habilitaria para sua libertação e seu aprimoramento, garantindo-lhe certeza, determinação e tentativa. Gente assim, mesmo que possa cismar com o pé direito em cada primeiro degrau de uma escada como válvula de escape, ou que tenha, em tenra idade, extraído prazer na retenção das próprias fezes em seu ânus, para só depois desse gozo insólito deixá-las escapar, merece respeito e admiração. Quem não desfila por aí algum transtorno ou jamais frequentou a pensão da paranoia, com toda certeza, não consegue fugir das garras de alguma neurose, porque de perto ninguém é normal, sem contar que a noção de normalidade se encontra sempre em compasso de alargamento.

Mas porque não se sabia, não se deixava conhecer como potencialidade. Esse agente provocador negativo jamais lhe permitiu ver-se além do rebaixamento ou da inferioridade, obrigando-o a sempre comparar-se pelo equívoco. Porque ele poderia oscilar entre a demência e o transtorno, porém tal pêndulo nunca seria marca de mediocridade. Em palavras tristes, ele virava as costas para suas tendências e talentos. Negando os próprios efeitos, pois de certa maneira estamos pelos nossos efeitos, ele sempre antecipava a negação das próprias causas, fulminando temporariamente sua criatura essencial.

 

 

Jornal InComunidade (Porto)

   
 

 

 

Antônio Augusto Mariante Furtado.
Escritor brasileiro, formado em Direito e Letras, com Mestrado em Marques Rebelo

 

 

© Maria Estela Guedes
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