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1
E ele desperta, mas não se atreve a abrir seus olhos; antes, pelo
contrário, ele os contrai ainda
mais, aproveitando a ocasião para que também amplie a redução do próprio
corpo, constrangido em seu retrocesso fetal. E tão logo acorda, como
planta crestada, definhante e sedenta, ele se ora e se reza,
umedencendo-se de súplica, para que consiga abrir seus olhos, pois isso
acontecendo, progressivamente, quase lesma, terá forças para que
reassuma a extensão do próprio corpo. A próxima etapa é expulsar-se, por
mais um dia, graças a Deus, sempre no compasso do alcoólatra anônimo ou
do drogado em reabilitação, da cama que talvez o proteja.
2
Ali bem próximo de seu corpo em retrocesso fetal, pois sua cama está
repleta de coisas que nunca estão em uso, contribuindo sempre para que
ele se deite como pacote, há um caderno velho, e, em suas últimas
folhas úteis, ele, com sua caligrafia que sempre sugeriu gafanhotos
esmagados, rabiscou uma confissão tardia de afeto, lambuzada de emoções
baratas, embora, sob a precariedade do remendo, tenha também justificado
que não houvera chance para que esse escrito no depois fosse proferido
no antes.
Se houve tempo, porque tempo sempre há, não houve espaço, porque ao
invés do suposto afeto proferido, o vazio fora preenchido pelo silêncio
efervescente da mágoa e do ressentimento, ambos sempre em dueto, na
direção do ódio.
Agora, esse agora de cama abarrotada de tralhas, onde seu corpo amplia
seu retrocesso de embrulho, era tarde para o
I-love-you
das emoções baratas, restando-lhe uma precária nostalgia, convertida em
rabiscos sobre folhas de um caderno mastigado
pelos anos, que não vai além do
desabafo e da impotência. A impotência do irrealizado.
Aliás, ele talvez fosse mestre em só perceber alguém depois que esse
alguém estivesse morto ou tivesse desaparecido da sua convivência, pelas
mais variadas razões, e aí, em seu
resgate inútil, porque talvez soubesse como ninguém chorar sobre um
leite derramado, ele seria capaz de erguer um altar íntimo em sua
homenagem, idolatrando-o mediante reminiscências pouco racionais.
Seu pai talvez não passasse de mais uma das suas
vítimas, provavelmente, sua vítima original, aquela que inaugurou, que
deu origem a seu procedimento masturbatório, porque as que o seguiram
nada mais foram do que uma sequência que reiterou a prática,
transformando-a no que muitos chamam de trato sucessivo, e tudo sempre
articulado na composição minuciosa de uma existência interrompida pelo
gesso. Mas qualquer gesso se dissolve na água, porque enquanto há vida,
sempre há promessa.
E justamente porque chamara a Sra. R., sua esposa, de predicados
inabordáveis, atributos nada polidos
que jamais fariam parte de seu caráter ou de sua personalidade, além de
dar-lhe um safanão que quase a reduziu a um saco de batatas jogado num
depósito, ele, caso ela o precedesse na morte, seria macho o suficiente
para que se projetasse sobre seu caixão, constrangendo quem quer que
assistisse ao espetáculo, imaculando-a pelo rótulo da perfeição, porque
só lhe permitiria, como o único amor de sua vida e como mãe de seus
filhos, espaço à destra de Maria, a Virgem Santíssima, uma vez que,
desde que morta, é claro, a Sra. R. só teria lugar no Céu.
3
Entretanto, entre o infelizmente e o pouco me importa, seguindo a linha
de conduta do toque-o-foda-se, porque se alguém decide se deitar sobre
os trilhos de um trem, o melhor, na maior parte
das ocorrências, é abandoná-lo à própria sorte, ele não se permitia
liquefazer-se, e o gesso, essa metáfora pouco atrativa, como um calo
teimoso, se mantinha de prontidão, sempre zelando pela integridade da
sua dor, porque ele, como muitos outros em sua calamidade, só encontrava
consolo e gratificação nesse se doer por inteiro, intimando todos seus
íntimos a tomarem parte em sua festa. Ele não desejava a presença
corrosiva de quem o libertasse de si mesmo, mas a constância fiel e
oprimida de um companheiro que o ouvisse, se deixasse abater como muro
de lamentações ambulante, reforçando sempre sua autopiedade, batendo em
suas costas o ponto diário do pobre coitado e nunca o abandonando
momentaneamente sem antes lhe dizer: você está certo.
4
Porque houve alguém, oscilante entre
a permanência e passagem, que se debruçou sobre ele, desejando
liquefazê-lo, principalmente, quando numa noite gélida, ao passar pela
confusão de seu quarto, fisgou, por entre o monturo de papéis que
sepultavam sua cama, uma carta que despertou seu interesse, prometendo
aquele instante de envelope, comunicação e conteúdo qualquer coisa que
talvez pusesse ordem naquele galinheiro.
Entretanto, apesar do entusiasmo opaco, e mais do amigo do que dele,
nada chegava a indicar algum
fiat lux,
pois o hábito do franco e expansivo derrotismo sempre parecia falar mais
alto do que qualquer vínculo com a esperança, permitindo que a escuridão
permanecesse como inevitável constante. Infelizmente, seu jogo do
triste, e ele se manifestava sem trégua, desde
que estivesse falante e talvez à vontade, acabava quase sempre levando
vantagem sobre qualquer
fiat lux,
permitindo-lhe aderir ao tipo que só oferecia prazer, a quem quer que
fosse, desde que estivesse em ausência ou que fosse visto pelas costas.
Mesmo assim, o amigo, determinado pela própria consciência, fez o que a
tal carta lhe assoprou como impulso, convencendo-o
e
arrastando-o
até aquela sala ampla e velha, de pé direito muito alto, onde havia
certo tempo já se sentara como aluno, encontrando
meia dúzia indócil de gatos pingados
que padeciam daquela mesma aflição, que aprisionava suas vítimas ao medo
de abrir os olhos e deixar suas camas, tão logo acordassem em suas
manhãs.
5
Mas a coisa não foi tão fácil assim, mesmo que tivessem comparecido
a tal palestra, administrada por
duas psiquiatras e uma enfermeira, porque ele escolheu o pior trajeto
que poderia conduzi-los até a universidade, e o que era para ser
trafegado em poucos segmentos de linhas retas, adquiriu a sinuosidade
labiríntica e nervosa do parece-que-nunca-chega, sem contar que ele, ao
estacionar seu automóvel, submeteu-o
a sua habitual meticulosidade preventiva, checando todos os meios
disponíveis de segurança que evitassem a cobiça e o logro dos ladrões de
ocasião, o que permitiu ao amigo,
além de fomentar seu desejo de espancá-lo, a bagatela de ter tempo para
que fumasse dois cigarros. E não é possível avaliar se era triste ou
patético, vê-lo caminhando indeciso na direção da sala dos meia dúzia de
gatos pingados indóceis, seus companheiros de aflição, uma vez que, de
quando em quando, ele voltava sua cabeça para o automóvel estacionado,
sempre pondo em dúvida o estado da sua segurança.
6
E lá pelo refresco do intervalo, porque ele, o amigo, não constava em
seus registros de tarja preta,
Neurose, Transtorno e Síndrome se apossaram de sua aparição inesperada,
desejando saber a que estava vindo, e entre um não-sou-da-família e o
estou-como-amigo-apenas-oferecendo-apoio, em círculo, como três graças
freudianas,
elas, quase em coro,
deram-lhe
as tintas sobre o fato daquele querido atormentado jamais ter condições
de romper os laços com sua medicação necessária, muito menos, abandonar
os encontros com seus parceiros de angústia e ansiedade.
É provável que, em certos casos, desgraças comparadas
tragam algum benefício a suas vítimas, e elas consigam ir além das
ilusões e dos consolos, deparando-se com as cores da esperança, sem
contar que um pouco de convencimento acerca de si mesmo, quase uma
golfada de autoestima em consórcio, pode também fazer com que o
amargurado encontre equilíbrio, desfilando sua cura suspeita, apesar das
cicatrizes. Porque ao se perceber, já não tão confuso no meio de
confusões mais graves do que a sua, ele talvez adquira coragem para que
se enfrente diante do que encontre num espelho e sorria satisfeito e com
menos macaquinhos pelo sótão.
E aí, quase num arremedo de conclusão hipotética, talvez seja possível
que ele, esse amargurado pusilânime, não mais se considere uma
monstruosidade esquiva e ofereça algum descanso a
seu automartírio, restando-lhe
ainda certas manias, alguns tiques e outros toques, porque a perfeição é
sempre o efeito de uma causa anterior, em vias de ser transformado em
outra causa - a perfeição é um estado cheio de ansiedade, é um movimento
sem parada obrigatória para o
repouso, só encontrável pela barra do horizonte.
7
E ele, ele que não é ele, mas o outro, o amigo interessado em seus
achaques mentais...
Mesmo que tenha
se dado conta de que estava em equívoco, pois, até então, considerava
Síndrome do Pânico
como uma repaginada pós-moderna da velha
Histeria,
e as três graças freudianas o puseram em seu devido lugar, organizando
aquela prateleira de seus conceitos, eventualidade que muito o satisfez,
porque seu prazer real só era extraído dos choques
do intelecto e das emulações estéticas, passando por cima do resto como
mal necessário, porque esse prazer quase refinado era sua forma de não
comparecer aos chamados da realidade – e foi justamente esse seu lado
essencial, quase uma descarga da própria índole especulativa, que lhe
deu o impulso para que se convencesse e arrastasse o atormentado a
enfrentar aquela tarde...
Mesmo que tenha
prestado atenção no discurso esterilizado de Neurose, Transtorno e
Síndrome a respeito da situação de calamidade mental
do outro, prometendo-lhes que faria o possível para ajudá-lo, conforme
as prescrições lançadas, mas desde que o amigo lhe desse chance e
meios...
Mesmo que estivesse
por lá, naquele instante de quase tarde completa de junho, justamente
numa das salas onde já havia se
sentado como aluno, e ele continuava oscilante entre o recheio e os
apelos externos, louco para sorver um café e para fumar um cigarro, sem
contar que a revisitação esteve longe de se converter em nostalgia...
Enfim, apesar do
mesmo que
isso ou do
mesmo que
aquilo - e mais alguns gramas de dispêndio inútil da própria energia em
benefício de um terceiro pouco interessado naquilo que talvez tivesse
para lhe oferecer -, ele, com alguma tristeza, admitiu, meses depois,
que o outro não estava disposto a
interromper sua rota de fuga, porque o outro, o que sempre fora
problemático, costumava provocar polêmica sem critério, nos tempos da
escola anglicana, subindo em classes e clamando contra o mundo e
arregalando os olhos numa fúria de anarquista russo, daqueles lindos que
distribuíam bombas pelos trens, ávidos por reduzir a pedaços algum
aristocrata, o que talvez já estivesse anunciando seu futuro...
E agora, nesse agora do outro, esse agora e a vez de seu amigo e antigo
colega de escola, ele acaba caindo
na teia da própria memória, vindo a furo a tal escola anglicana, coisa
insípida que não estava em seus planos... Ela teria a idade do
Titanic,
caso também não tivesse sido afundada, mas pela péssima administração,
que tudo fez para que fosse fulminada
do mapa de uma cidade. Mas ela, existente ou fulminada, dera-lhe chance
para que sua mão de quinze anos fosse apertada pelo
Arcebispo de Canterbury.
E ele era o único, da gente daquela época, gente que ele não fazia a
mínima questão de reencontrar, que
tinha fixo na experiência o episódio da visita do
Arcebispo de Canterbury.
E pouco lhe dizia respeito que o objeto de honra não passasse de mais um
exemplar do
ensombramento
britânico,
confundindo-se com um espectro cinzento e cordial que tinha a mão
gigantesca e gelada. Porque o relevante, e isso apenas para ele, era
sentir sua presença, uma vez que, por tabela, quase que por interposta
pessoa, aquilo significava se sentir bem próximo de
Henrique VIII,
de
Hampton Court,
de
Elizabeth Tudor,
os cambaus, pois, desde que começara
a se perceber, e isso se deu lá pelos onze anos de idade, foi
desenvolvendo uma séria, quase obsessiva, inclinação pela Inglaterra,
embora não chegasse a afundar no descalabro da hemiplegia, pois sempre
soube extrair o que lhe dissesse respeito dos mais variados lugares do
mundo, apesar da Inglaterra estar sempre como ponta de lança. Ele também
não era muito bem certo. Por essa época, essa outra calamidade, o que
começou a se interessar pela Inglaterra, o que quase teve um orgasmo, só
porque sua mão foi tocada pelo
Arcebispo de
Canterbury,
também já começava a mostrar suas garras. Cada um no seu jeito, mas
todos pela insanidade.
E assim, seguindo a trilha da desilusão para que componha um desfecho,
ele passou a desconfiar das alegações
do amigo, sempre engatilhando desculpas esfarrapadas, ditas com a
convicção dos desajustados, para que não tomasse as pílulas multiformes
e não frequentasse as sessões terapêuticas, sempre comprometidas com um
salada russa de inibições, traumas, medos e fobias, arranjando mais uma
combinatória de variações em torno de mais um tema. E para que a
desconfiança saltasse para a total falta de crédito foi num triz, porque
a atormentada criatura só sabia dizer que a medicação afetava seus olhos
e interrompia o funcionamento de seus testículos, além dele jamais se
assumir como responsável pelo que quer que fosse que tivesse dado causa
a si mesmo, transferindo, como hábito ou vício, os motivos de suas
frustrações para o bode expiatório que estivesse mais próximo,
geralmente, sua família.
Portanto – e isso foi aos poucos amadurecendo em seu íntimo, atingindo
sua culminância alguns meses após sua incursão sem nostalgia pela sala
de aula onde já havia se sentado como aluno e descoberto que estava em
equívoco, porque
Síndrome do Pânico
e
Histeria
não são a mesma coisa -, só lhe restava abandoná-lo às próprias nuvens,
deixando-o deitado sobre os trilhos de um trem, uma vez que o
fiat lux
jamais se daria naquele espírito, isto porque ele nunca fizera parte de
seus planos, e, quanto ao fato de
reencontrá-lo, depois de trinta anos de corte e distanciamento, de certa
maneira, nada mais lhe oferecia do que observar uma árvore que conhecera
como semente.
8
Já estamos no capítulo oito dessa coisa nervosa e emaranhada. Coisa
talvez escrita por um louco acerca de outro louco. Um louco que ama
outro louco, caso contrário, jamais perderia seu tempo escrevendo sobre
ele.
Algo já foi escrito a seu respeito, mas ainda estamos em sua manhã
aflita e pusilânime, porque ele ainda não
se levantou, ele ainda luta para que
deixe sua cama. Ele é lento, sempre foi lento, arrastado, arrastando-se,
sempre na iminência de tirar alguém do sério, e seu estado de lesma, mas
a lesma do caracol, foi uma das fontes primárias da ruína de seu
casamento.
Ele desperta,
agita-se
e promete alguma ação, mas quando entra em algum surto, põe-se aos
berros e maldiz o que sua ira enquadre, podendo também, dependendo do
dia, esmurrar armários e bater com sua testa numa parede. Foi numa
dessas séries de perda das
estribeiras que ele deu um safanão na Sra. R., transformando-a
momentaneamente num saco de batatas jogado num depósito.
9
A imaginação às vezes abusa das próprias potencialidades e sugere
intuição e arqueologia para que se recomponha um início, seja ele
qual for. Mas era como se velhos
inimigos, inconscientes do desafeto pelo apagamento de cada memória,
tivessem se reencontrado, e a atração que um sentiu pelo outro na
juventude não passou da armadilha necessária para que dois descuidados
provocassem aquele acidente – o desconforto da solidão em dueto.
Sua falta de percepção acerca deles próprios e também da mera natureza
das coisas os impedia de observarem sua tortura recíproca como uma forma
de experiência a serviço do que alguns chamam de crescimento pessoal.
Como não tinham meios para que suportassem certas verdades, só lhes
restava que chafurdassem na desordem da própria desunião construída. Com
o dinheiro escasso e a falta de perspectiva transcendente o que estava
ruim sempre se dirigia na direção do pior. Da sobrevivência, sem muito
esforço, conseguiam saltar para o vegetativo.
Não era agradável vê-los em atrito, como duas lavadeiras rancorosas e
enraivecidas, embrenhadas pelo cipoal duma competição estéril, trocando
desaforos que não os levavam a lugar
algum, ainda mais quando seus atritos se originavam de pequenos nadas,
denunciando que suas razões de profundidade mostravam-se ocultas, sem
chance para a pronúncia que talvez resolvesse de uma vez por todas a
calamidade de seu casamento.
Em raros períodos de trégua trêmula,
havia silêncio, mas ele era constrangedor, repleto de ruídos nervosos,
como um fósforo aceso a desabar sobre um rastro de pólvora, sugerindo a
calmaria que sempre antecedia a uma tempestade. Nesses momentos havia
furtivos olhares faiscantes de ódio. Se cada um tivesse êxito,
conseguindo atingir seu alvo, quase sempre pelas costas, haveria pelo
menos um corpo à espera de agentes funerários.
Entre esses dois, chapinhando pelos detritos de um matrimônio, alguém
deveria ceder. O que não significava
que devessem retornar ao amor – se é que ele havia existido em algum dia
de suas vidas sem brilho. Bastava-lhes uma separação sincera, e que cada
um seguisse o próprio caminho. Mas ambos, comprometidos com a cegueira
de seus rancores e de suas frustrações mútuas, não tinham reservas de
inteligência para que se inclinassem diante desse sacrifício.
Hipnotizados pelo próprio orgulho ridículo não atinavam que ceder alguns
gramas na direção da própria liberdade jamais implicaria humilhações
mútuas – muito pelo contrário, pois apenas prova o que muitos chamam de
maturidade. Eles ainda não haviam sido afetados por ela – eis a razão de
tanto sofrimento em dupla. Eles ainda não estavam percebendo que a vida,
em determinadas circunstâncias, compõem-se de ninharias que exigem
superação, escombros e vassoura.
Não tenho dúvidas a respeito: certos casamentos mostram-se condenados à
dissolução muito antes que aconteçam – basta que um olhar arguto esmiúce
as incompatibilidades que existem entre as partes. Entretanto,
quando essas mesmas partes incompatíveis têm boa vontade, abdicando da
inutilidade do orgulho, mas isso apenas ocorre se ambas forem
inteligentes e fortes, o que parecia inconciliável corre o risco de
tornar-se complementar, pois instalam-se trocas necessárias, permitindo
que um ofereça ao outro aquilo que lhe falta.
Quem os observa e se dá o trabalho de escrever sobre eles, como se
estivesse num laboratório a estudá-los como cobaias, percebe que nada,
por enquanto, pode fazer-lhes de bem, exceto entregá-los
à própria sorte, torcendo para que rompam seu círculo de vício, e que
consigam ver que tudo quebra, passa, desaparece, até mesmo, o que
insiste em sugerir a composição da eternidade.
10
E a lesma, agora já vista como um caracol, desliza,
e seus olhos, como um aleijado que tateia por sua bengala, agarram-se à
fotografia daquela pobre Virgem, que vela e ignora, porque todas as
Virgens são ponderadas e tolerantes, sempre fiéis ao seu exercício de
compaixão, a desordem do por onde ele se deita, se enrosca, se oculta,
foge e tenta dormir todas as noites, temendo e odiando sempre cada manhã
que se insurge.
Ele não era
Judy Garland,
disso tenho certeza, sequer estava como escravo da
MGM,
embora, e disso também tenho certeza, caso voltássemos no tempo
e ele estivesse por lá, na minha companhia, faria das tripas coração
para aproveitá-lo como eletricista ou desenhista de cenários do estúdio,
amontoando-se como mais uma das vítimas, de sol a sol, de
Culver City.
Sim! Sem dúvida, ele não era
Judy Garland,
mas suportava o mesmo inconveniente, apesar de nunca ter recorrido a
pílulas para que dormisse e comprimidos para que aderisse ao ritmo do
sempre alerta: deitava-se e custava a pegar no sono; ferrado no sono,
custava a se livrar dele, permanecendo nessa
letargia protetora o máximo que lhe fosse possível, porque cada
despertar era sempre como se fosse constrangido a nascer de novo,
sendo-lhe insuportável enfrentar as luzes, os sons e os choques que o
condenavam à vida.
11
Isso pouco ou nada interessa, pois
pode muito bem se confundir com arabescos, e uma coluna dórica sempre
leva vantagem sobre as concorrentes, uma vez que o menos sempre será
mais.
Mas aquela fotografia em série da Virgem é a representação de um ícone
que se projeta na construção de um
símbolo, seja de uma hipótese de crença, seja de uma instituição. Mas há
algo bem mais espinhoso do que isso, porque sua mensagem piedosa de
esperança está calcada na dor, e dores podem sugerir
Sade & Masoch,
bastando que se observe a expressão amargurada
que se fixa em seu rosto. E ele, seu rosto, aflige e irrita qualquer um
que possua independência intelectual, lendo o mundo e o além dele pelos
palpites da mera natureza das coisas, permitindo-se, portanto, virar a
mesa das crenças infundadas, e dizer que se pode, mas sem blasfêmia ou
crime contra a honra, enveredar por caminhos menos turvos, mas isso
desde que o sujeito tenha olhos de ver.
Entretanto, essa Virgem no papel, arbitrária e de circunstância,
presta-lhe algum serviço, todos os dias, porque talvez
esteja à sua imagem e semelhança, encaixando-se ambos, como luva e mão,
absolutamente feitos um para o outro, pois eles ainda precisam do
palpável para que possam acreditar em alguma coisa. A abstração nunca
teve êxito em seus pensamentos.
Mas nem tudo pode ser considerado
como nulo, perdido ou iníquo em sua intimidade cognitiva,
principalmente, porque mais estamos do que somos, sem contar que a
retórica sempre nos pode salvar de qualquer abismo: logo, jamais devemos
nos esquecer de que estamos, mediante nossas escolhas e nossas atitudes,
sempre compatíveis como nosso estágio de mente e de espírito. Portanto,
cada um só pode oferecer aquilo que tem. Sem dúvida, a evolução dele
precisa daquela Virgem de papel, e mesmo que isso talvez me assuste e
quase me ponha para correr, ele merece, sempre e sempre, todo respeito,
e que consiga extrair o melhor proveito de toda aquela idolatria, de
toda aquela necessária aflição.
12
Meretrizando a pobre Virgem da sua devoção, e que
Maria de Nazareth
me perdoe, porque Maria Madalena é
sempre mais interessante do que Tereza d’Ávila, ela sugere marfim e
alabastro, merecendo, inclusive, o adjetivo ebúrneo (e quem não o
conhece que recorra a um dicionário). Indo adiante, atropelando seu
rosto repleto de dores, ele talvez esteja deslocado como veículo de uma
Igreja que se afastou da arte, porque esse rosto piedoso, dolorido e
Kitsch,
desde que fosse violado por
Max Factor
ou pela
Helena Rubinstein,
talvez ficasse mais adequado, compondo alguma capa de
Vogue
dos Anos 20 nova iorquinos, porque
ele teria tudo para que se desse muito bem, fazendo
footing
pela
Quinta Avenida,
sorvendo
dry martinis
pelo bar do
Plaza
ou dançando, até o sol raiar, em algum
speakeasy
da turma de
Lucky Luciano.
Mas é provável que ele, que ainda precisa da
Virgem de papel para que saia da própria cama, jamais entenda essa breve
meretrização, porque sempre lhe faltou senso de humor.
E tudo se comprime e se empacota, alçando voo do nada para que pouse no
coisa alguma, havendo ou não turbulência, porque todos
se encontram interrompidos em suas tentativas, permitindo sempre a
natividade de um aborto: a fotografia, a Virgem, Neurose, Transtorno e
Síndrome, mais o amigo que veio de longe, enfim, todos em consórcio só
podem observá-lo, lamentá-lo, rezar por ele, até mesmo, estudá-lo, fugir
dele é outra alternativa tentadora, mas nada além disso, pois ele
prefere estar como gesso, morrendo de medo das implicações de um fluxo,
escolhendo sempre, como ladainha, repetição ou mantra, a sina do
patético que se esparrama pelos trilhos de um trem. É sua peculiar forma
de dizer SOS.
13
Alto e magro, esguio naquilo que se pode considerar como um foco de
elegância, porque certas compleições físicas são naturalmente belas, e
muitas se mantêm íntegras até o fim – mas também podendo
apontar para o poste de iluminação, porque nada é perfeito. Azedo,
porque ele também pode indicar alguém que se submeta a uma dieta de fel
e vinagre pelo café da manhã. Contrariado, porque talvez em seu
imaginário, cheio de desconfiança, o mundo se revele como silenciosa
conspiração. Aturdido pelos receios que o interceptam.
Enfim, ele já está fora da cama, e seu primeiro gesto pela
semiescuridão, porque nunca abre a janela do quarto,
é arrastar-se até o interruptor de luz, porque além da má vontade que o
impulsiona a não sair do lugar também corre o risco de tropeçar no que
se esparrama pelo chão como arquipélago. De posse do interruptor de luz,
ele o tortura com trinta e seis pressões, surpreendendo o quarto com
aquele acende-apaga que se confunde com um cacoete.
14
Graças a Deus, ou ao
motor imóvel
de
Aristóteles,
que ele está livre deles, dos cacoetes. Não se expressa
insatisfatoriamente através dessas descargas pouco estéticas.
Nunca recorre a piscos frenéticos - aqueles que podem contagiar qualquer
cristão, provocando reação em cadeia, desde que você neles se grude por
algum tempo. Jamais arregala os olhos, como algum cocainômano aflito,
sugerindo que está na iminência de lhe dar uma mordida. Muito menos, seu
corpo é acometido por contorções espasmódicas e contínuas, sugerindo a
coreografia do epilético.
Limita-se a transferir qualquer chance de tê-los para impulsos externos,
que insinuam posse e domínio de objetos, talvez confundidos
com atitudes necessárias, que sempre lhe provocam a dúvida bizarra de
que irá se sentir incompleto, caso não ceda às exigências de seu
comando.
Entretanto, porque alguém está sempre numa situação pior do que a sua,
ele pode ensebar, com digitais e
gordura íntima, as coisas que toca inúmeras vezes; ele pode ainda,
expandindo sua tentação, arrecadar coisas que se aproximam dos despojos
e dos escombros, e isso depende sempre do ponto de vista de quem delas
se livra ou delas se apossa, descobrindo-as sempre nos lugares mais
inusitados e empilhá-las em estoque, sempre dizendo a quem interessar
possa que nunca se sabe, pois ainda poderão apresentar alguma utilidade;
e ele, como variação do tema anterior, também extrai prazer em guardar
caixas, potes e vidros vazios de produtos já consumidos, empilhando-os
também em estoque, sempre sob alegação de utilidade incerta num futuro
inesperado – mas ele ainda não consome suas energias contando azulejos
ou ladrilhos, sequer afunda no descalabro de sair nu, só se permitindo
sapatos, meias e gabardine, para que em lusco-fusco se arreganhe na
frente de um portão de escola de freiras. A Virgem está sempre lhe
impondo limites em seus gestos furtivos de pura tentação e gozo
inabordável.
15
E assim – sempre interrompido por
mil loucurinhas que preenchem as lacunas de seu cotidiano, e elas talvez
sejam as arestas das suas idiossincrasias que precisam ser aparadas -,
ele mal abandona o interruptor pressionado, e não se sabe como aquela
pobre lâmpada seviciada ainda não bateu a caçuleta, e se lança sobre um
aparelho de som, cinza rato de tanta poeira, escolhe a música que lhe
fale alguma coisa naquele instante, ativa a tecla das repetições, amplia
pelo rumo do exagero a intensidade sonora, anunciando à casa que ele
existe e que já está de pé - e ela, a música escolhida, será sua trilha
sonora, até que ele saia do quarto, cumpra com seus compromissos pelo
banheiro e se arraste para mais um dia.
16
Interessante – e isso talvez se confunda com sadismo – observar o tipo
de relação que ele assume com a
música, porque sem ela é difícil viver, pouco importando qual seja o
gosto do freguês.
De certa maneira, ele jamais corta o vínculo com aquilo que assimilou
pela adolescência, raramente se permitindo agregar coisas novas e
desconhecidas, porque é como se elas
tivessem poder para desarranjar seu castelo de cartas, fulminando-o como
cartas, pois novidades sempre lhe transmitiram o desconforto do
desconhecido, e o desconhecido, com sua tendência inevitável ao
estranhamento, sempre seria percebido como ameaça.
17
Foi isso, esse estado deplorável de insegurança –
e a semente talvez tenha brotado no exato momento em que sua mãe lhe
disse que ao invés do irmão morto ele é que deveria estar em seu lugar,
e a coisa se deu lá pelos seus quatro ou cinco anos de idade, logo após
o enterro -, que sempre o interditou às lojas masculinas que julgava
inacessíveis a seu bolso. Mas num belo dia ele inoculou coragem e se
precipitou pelo interior de uma delas, aproveitando-se do apelo de uma
liquidação. E ele constatou que o bicho não era tão medonho quanto lhe
parecia, porque ninguém o barrou na entrada, não se sentiu rejeitado
enquanto experimentava suas roupas, ganhando a calçada satisfeito com as
sacolas que carregava.
18
Frágil e influenciável, porque não se permite o peso e as implicações do
autoconhecimento, querendo sempre mais a aprovação de estranhos do que a
própria, ele não chega a ser difícil de ser conduzido, aderindo às
preferências dos outros e acomodando-as a si
mesmo, como se sempre tivessem lhe pertencido. Mas isso acontece desde
que não seja pressionado, sendo imprescindível que sempre o deixem à
vontade, seguindo o impulso de sua lenta apreensão das coisas do mundo.
E assim, delicadamente, ele encontra meios para que enverede por outras
plagas e engatinhe na direção de si mesmo, sem medo, sem vergonha e sem
culpa.
19
Pelas impressões da Sra. R. - mais próximas de um decreto do que de uma
simples opinião a respeito de um fato, e tenho certeza de que ela exagera
porque está sob o domínio do orgulho ferido e da mágoa, e nessas
condições, sem bússola, qualquer um está fadado aos excessos e à
injustiça -, ele só teve acesso ao que ouve, e afirma como único e
definitivo, devido à convivência, à contaminação ou à lavagem cerebral
que recebera de seus sobrinhos. E ele teria se apossado da coisa como se
tudo não passasse de geração espontânea, pisoteando e apagando o que
quer que tivesse plantado seus referenciais. Determinada pelas
convulsões de um ressentimento, a Sra. R. deixa claro que ele nada tem
de pêssego ou de abacate, competindo sempre com uma cebola.
20
Talvez a Sra. R. tenha razão.
Talvez a cebola tenha se constituído aos poucos, camada por camada, e
sua semente tenha germinado quando ele ouviu o que lhe
fez mal, ferindo-o sem chance para cicatrização: quem devia estar no
túmulo era você e nunca seu irmão. E ele se sentiu indesejado, traste e
nulidade. Porque ela, a semente, sempre esteve em potência, só
aguardando o choque necessário que a fizesse brotar. E assim, como
penumbra, insegurança e cegueira, ele
se
transtornou em paralisação, nostalgia e autossabotagem.
E ela, sempre ela, porque uma cebola é exatamente o que não é um pêssego
ou um abacate, abriu-lhe as portas para que ele sempre conspirasse para
que nunca crescesse, porque cada polegada de crescimento implicaria dor,
desconforto e mudança. Aprisionado num universo raso e restrito, como
bunker
peculiar, ele não se repaginava, muito menos, se aprofundava naquilo que
parecia lhe dizer alguma coisa,
cultivando sempre os próprios interesses como alguém que baixa sua
febre, mas que não se dá conta de que ela é sintoma de algum foco
infeccioso. E talvez o adolescente, sem a interrupção da morte, tenha se
tornado adulto apenas da biologia, conhecendo a velhice, mas nunca a
maturidade.
Talvez a Sra. R. tenha razão, além de vibrar pelas próprias razões.
Passando pela vida como se estivesse na pele de uma doença que afeta a
imunidade de um corpo, permitindo-lhe o surgimento e o acessório de
outros sustos, o adolescente de
cinquenta e poucos anos agregou ao medo que o afligia um pessimismo
sombrio e corrosivo. Ele lhe garantiu uma visão turva da existência que
o fazia tecer prognósticos de derrota, tanto para si como para os
outros. Não me esqueço, dentro de seu automóvel, o que ele me disse de
uma amiga de infância, quando descobriu que ela doara um de seus rins
para uma irmã: ela não vai resistir por muito tempo... Lembro, da mesma
forma, do episódio do posto de gasolina de um conhecido, que o convidou,
sabendo que estava desempregado, para que assumisse a gerência: ele não
aceitou porque não se sentia competente para o cargo. Não era
aconselhável a ninguém lhe revelar seus projetos e sonhos, por correria
sempre o risco de vê-los fulminados por algo que talvez se confundisse
com inveja. Se havia pessimismo, é claro que também o corroia um
desânimo irritante. A hiena baixo astral fica engraçadinha gemendo pelo
cartoon,
mas é sempre inadequada e dispensável como convivência.
Imitando uma criança tímida e assustada, que vai à escola pela primeira
vez, comprometida com a postura clássica da criatura conduzida pela mão,
ele não conseguia dispensar a presença constante e firme de alguém que o
empurrasse na direção de seu necessário.
Mas que logo após a façanha, esse infeliz acompanhante continuasse em
sua cola, trancando a porta e permanecendo vigilante para que ele não
escapasse. Quando se interessou pela Sra. R., uns nove anos mais velha,
alegre, extrovertida e dona do próprio nariz, ele talvez estivesse
tateando pela mãe que sempre procurara. Mas ela queria um homem para
chamar de seu e não um filho sempre grudado na barra de seu avental.
Tendo ou não tendo razão, e pouco importando que se mordesse de raiva
apenas pelas próprias razões, porque o orgulho ferido e a mágoa às vezes
falam mais alto, o fato é que, num belo dia, a Sra. R. jogou a toalha,
pediu pausa sem reflexão e decidiu que, a partir daquele instante, sua
cama só teria espaço para um travesseiro.
Como inevitabilidade atrofiante,
tudo isso, e mais um pouco em sistema, encontrava meios para lhe
arrancar qualquer oportunidade para que desenvolvesse alguma chama de
índole especulativa, bloqueando, como decorrência, o ataque da
curiosidade sobre as promessas e as ilusões do mundo.
21
A forma como ele engendrou seu gosto musical – pelo menos, desde que me
deixe conduzir relativamente pelas farpas da Sra. R., e seguir sua rota
não significa ciência, mas apenas o olhar fugidio e falseável de uma
impressão nervosa – lembra a maneira
como um personagem de
Frank Capra,
lá pelos idos de 1938, tornou-se
escritora: alguém, por engano, entregou uma máquina de escrever em sua
porta e nunca voltou para reparar o equívoco.
A música em sua vida, em sua composição como preferência, pode
ser uma pista para que ele seja
observado em sua estrutura profunda. É, talvez, a ponta de seu oculto
iceberg. A parte sempre nos leva ao todo. E tudo se pulveriza em
arqueologia.
22
Seu gosto musical – e ele tem todo direito de consumi-lo, polegada por
polegada, mesmo que esteja sempre sugerindo um
chip
implantado, prometendo alienação e desespero – é a música do desbunde e
da revolução sexual, mas também da heroína, do psicotrópico e da
overdose.
Conhecendo ou não
Mary Quant,
podendo ou não frequentar os preços
da
Biba,
ele veste
jeans
e bata indiana. Ele trata
New Orleans
como
se nunca tivesse existido,
muda-se
para Londres e corre risco de vida em
Woodstock.
Sua Vênus jamais brota da espuma das ondas do mar, mas duma estonteante
lufada de marihuana. É a música de
um povo que talvez tivesse conhecido o ostracismo e a indiferença, caso
não fosse contemplado pela sorte de morrer aos vinte e sete. E essa
gente talvez rolasse hoje pelos palcos e pela mídia como escombros do
flower Power,
principalmente se insistisse em não
trocar de roupa, pois sua moda só cai bem nos que estiverem abaixo dos
trinta.
“Nos que aqui estamos, aqui por vós esperamos”
é o que lhes sobraria, embora, além de um túmulo também pudessem se
considerar como peças de museu, e isso jamais
lhes poderia ser negado, porque o Céu que nos protege é de todos, sem
pertencer a ninguém.
Mas talvez o triste nisso tudo seja que ele ouve sem saber muito bem o
que está ouvindo, porque além de nunca ter se coçado para que acomodasse
um inglês em seu lombo, jamais
mostrou interesse em averiguar o terreno onde estava pisando, não tendo
consciência do que talvez preenchesse seu prazer e seus dias. E é
provável que talvez seja o
chip
implantado, prometendo alienação e desespero, que o faça se sacudir como
tola adolescente pequeno-burguesa
que se deixa tatuar, em chinês, crendo que exibe um
PAZ
ou um
AMOR,
e o que marca sua pele é apenas
Coca Cola,
em chinês, claro!, mas
Coca Cola.
23
O problema nunca residiu em sua ignorância em si.
Ninguém nasce de posse das
arbitrariedades e das convenções que acumula pela vida, depois as
decidindo como gostos ou aversões. O ponto de partida de cada um é
sempre pelo instinto e pela intuição. De um jeito ou de outro, estamos
sempre ignorantes sobre alguma coisa. O que não pode ser jamais
esquecido é que também estamos ignorantes acerca daquilo que julgamos
conhecer. Mas principalmente estamos em total inconsciência a respeito
de coisas e situações que sempre existiram e ainda não as percebemos.
O patético e o reprovável é que ele
se afogue nela por conta do medo de correr riscos, considerando-se
impedido de ir adiante, deixando-se abater como alguém que se sente
satisfeito com a própria insatisfação, nunca se permitindo perceber que
um homem possa conquistar o mundo, sem nunca ter saído do próprio
bairro.
24
Enquanto sua personalidade ainda corria riscos que poderiam distorcê-la,
perturbando seu desenvolvimento, além da língua que o quis num túmulo,
houve também outra farpa, tão
poderosa quanto a primeira, e ambas levaram a nocaute sua formação.
Somos o resultado de nossas leituras, mas antes disso, e talvez sejam
esses desvios de percurso que nos preparem para nossas leituras, somos o
efeito de nossos traumas.
A estupidez humana, o que
alguns
delicados chamam
de cognição precária, pode também ser burocrática. Ela olha, vasculha,
analisa, separa e classifica. Ao vigiar, ela aprisiona a si mesma em
registros. Graças a ela, a praga notarial pôde, com muita facilidade,
conduzir milhões de judeus ao holocausto, definindo
e enclausurando homens pela arbitrariedade do direito civil. Quem não
esteja em sua lista não existe. Muitos têm permanecido na lista,
constando nela pelas exigências práticas e ilusórias do progresso, para
que deixem de existir.
E uma palavra escrita num desses
espaços definitivos foi suficiente para transtorná-lo pelo resto da vida
– e ele se afogou magoado no inesquecível, corroendo-se entre a ofensa e
o ressentimento: bastardo.
Ninguém sabe, até hoje, como a tal palavra, que muito atormentava no
passado, foi parar na certidão,
provocando certo estrago. Não se sabe, até hoje, qual foi o motivo do
estrago. Ele pode estar oculto, agasalhado num envelope pardo ou numa
pasta de papelão entregue ao desgaste, mas ele ainda está escrito e
lateja como estrago. O que talvez possa ser escrito sobre o estrago, e
isso não serve de consolo para o que se considera estragado, é que ele
parte da falta de atenção de alguns idiotas e vai ao encontro da ironia
do acaso ou do destino. O desfecho é que o bastardo que faísca em sua
certidão de nascimento feriu-o tanto quanto a fala intempestiva da mãe,
cuspindo-lhe na cara que era ele que deveria estar apodrecendo na
sepultura e nunca o irmão.
Aliás, essa ofensa da mãe é coisa que merece atenção. Ela deve ser
observada com cautela. Emoções
baratas e barracos jamais irão salvá-la do crime. Somente o bom senso
pode reduzi-la ao desabafo insensato, entregando tudo a um punhado de
pó, como se nada tivesse sido pronunciado, exceto uma dor com sérias
dificuldades de expressão - alguns sabem falar; outros, não. Quem
apodrecia no túmulo era um quase bebê. Nada ainda se sabia dele, exceto
que estava existindo. Era apenas uma promessa. Asfixiada pela emoção e
pela ira, embora também estivesse na linha das poucas luzes, a mãe,
porque também o sabia indócil, teimoso e irritante, nada mais fez do que
trocá-lo momentaneamente por uma hipótese. Aquele que vai, e ainda mais
sendo um quase bebê, é sempre melhor do que aquele que fica. E a mãe
deve tê-lo ensinado a fazer isso, porque ele também idolatrava
desaparecidos e mortos em detrimento dos que estivessem a seu lado.
Calcada na utopia, a mãe viu no filho morto o filho ideal. Nele, um
estorvo indesejável. Mas isso não significava que desejasse na realidade
vê-lo também num cemitério. Ele era o que lhe restava de prole. Poderia
ofendê-lo como válvula de escape – o escoadouro da sua confusão mental
-, mas não estava interessada na sua morte. Do seu jeito, ela faria o
possível para sempre ampará-lo, e o futuro lhe provaria isso.
Mas ele não tinha meios para que
captasse a mensagem oblíqua, sendo mais confortável se deixar pelo
trauma. Quem nasce numa família de dentes rangentes e de tiros
linguísticos pouco lisonjeiros, onde a palavra
desgraçado
ricocheteia pelas paredes, só pode atravessar sua
vida ruminando ofensas como vacas constroem seu bolo alimentar.
Mas ele não era um bastardo. E se fosse, faria alguma diferença? O
homem, enquanto mente e alma, não vem sempre antes de qualquer
documento?
Entretanto, ele não era
Erasmo de Rotterdam,
onde o bastardo só veio em seu
auxílio, impelindo-o, sempre na pele do latinista finório, a se
converter em ironia, humor e prudência, a serviço do bom senso. Ele
também não era uma
Elizabeth Tudor,
cuja acusação de bastarda, pelas bocas da Europa católica, só
lhe permitiu um rancor positivo,
onde sua vingança foi o próprio sucesso, porque soube fazer da sua
herança um país respeitável.
Simples e triste, pois sua leitura do mundo era bem outra. Por natureza,
ele estava comprometido com a sensibilidade da obstrução.
Ela é nociva, porque é contraproducente, permitindo que suas vítimas se
abespinhem por qualquer lorota. Ao invés do
sacode a poeira e dá a volta por cima,
porque o
shake it out
é sempre bênção e atitude corrosiva contra o engessamento, ela lhe
permitiu
calo, cuágulo,
nódulo e trauma, prestando-lhe o desserviço da estagnação.
25
Depois da segunda-feira sempre vem a terça, porque
monday, lundi
e
lunes
sempre antecedem
tuesday, mardi
e
martes,
e assim, em quase todas as línguas desse mundo, dando chance,
desde que se siga essa lógica tola, para que de um quarto, ao despertar,
se salte para um banheiro, pois após o sono poderá haver sempre urina e
merda a nossa espera.
E ele, que já esteve em concha, acordou a contra gosto e bebeu coragem
para que abrisse os olhos, agora sai
das sombras e do falso aconchego para que se embrenhe na luminosidade
fria e úmida do seu banheiro. Higiênico, o banho sempre acompanha seu
despertar.
Mas antes dele, do banho, há sempre uma tentativa. Ele sabia que
precisava, como todo mundo precisa,
porque do contrário você posa de carrapato, mas também sabia que com ele
não era bem assim, não era nada fácil, porque não era só sentar e, como
índia parideira do
Solimões,
deixar que a coisa saísse pelo próprio impulso.
Não! Com ele tinha sempre de haver
muito esforço, caretas e às vezes sangue. Puro sacrifício, rosário,
choro e vela. E, desta feita, nesta manhã de calvário, como todas as
anteriores, a coisa se mantinha na base da resistência, dizendo-lhe pelo
silêncio:
“Eu até saio, mas antes quero
vê-lo arregaçado e gemendo, transtornando seu rosto em esgares de
sacrifício e súplica. Sim! Eu até saio, porque preciso seguir adiante,
porque me acumulo há sete dias e não me construí para que fique por
muito tempo pelo seu intestino. Mas antes
quero fazê-lo comer o pão que o diabo amassou. E que você não se atreva
a me expulsar antes de meu tempo consagrado às suas entranhas
putrefatas, usando os artifícios dos purgantes, porque em você me gosto
sempre sólida, bem durinha, competindo com a consistência do cimento.
Cada um tem sempre os próprios excrementos à sua imagem e semelhança.
Sim! Eu sou a merda! A sua própria merda! Exijo respeito! Sou, fique
certa disso, uma das provas inequívocas da existência de Deus. Pertenço
à falange da dinâmica, da dialética, do movimento, da certeza da
impermanência de todas as coisas. Me despedia de Karl Marx, sem lhe
dizer adeus, quando o induzi a correr para sua escrivaninha e escrever
que ‘tudo o que é sólido se desmancha no ar’. Inspirei Rodin a esculpir
seu Pensador. Sou originária das mais variadas e inusitadas
combinatórias de nutrição. Sou residual. Ninguém, independente de berço,
posição social, condição econômica, credo ou raça, escapa de meu
domínio. Sou onipresente, mesmo que sempre negada. Eis uma das minhas
sinas! Os homens ainda não têm olhos de ver. De forma oblíqua, fui
mencionada por Santo Agostinho, oferecendo humildemente minha
contribuição à Escolástica – ‘Nascemos entre fezes e urina’! Também
cheguei, e isso porque Deus escreve certo por linhas tortas, pois
preciso sempre, de um jeito ou de outro, estar sendo lembrada, a ser
transformada, pelo tempo, na boca de meus súditos mais problemáticos, os
homens, em interjeição duvidosa: Merda! Os franceses adoram me
pronunciar, quase me confundindo com mãe e mar. E esse merda!,
polissêmico e poliglota, descreve e expressa, além de desagrado,
indignação e espanto, a perplexidade dos que me permitem formação e
aborto, diante das surpresas do mundo construído por eles próprios. Sou
universal e necessária! Graças a mim, o homem descobriu e aprimorou o
perfume. Sem que desejasse, lhe fiz bem e mal. Mas o homem é sempre
responsável pelo próprio destino. Se faz cagadas em sua história que não
venha me culpar pelo seu infortúnio. Sou real. Suas cagadas são
metáforas que me desrespeitam e me ofendem. Porque sou divina também lhe
permiti o perfume pela ótica do livre-arbítrio. Eu e Deus jamais
chegamos a abandonar o homem à própria sorte. Apenas lhe ensinamos, e a
duras penas, o senso de responsabilidade: se dá o peido e se aguenta o
cheiro. Sim! Não há dúvida sobre isso. O perfume é uma faca de dois
gumes. Minha armadilha. Minha contribuição às ilusões humanas. O homem,
em vão, luta contra mim através dele. Mas porque sou natureza, filha
digna de Dioniso, tenho sempre a última palavra. Sou a merda!”
E ele, aliviado e sublime, quem sabe, leve como pluma e possuído pela
satisfação do dever cumprido, quase cívico, mas dolorido, diga-se de
passagem, não sem antes ter contemplado o que lhe oferece a sensação do
amor e do ódio, tapa o vazo, não
recorre à descarga e se mete no box, em busca do banho daquele dia.
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Mas talvez houvesse algo sério ainda não percebido, e esse algo imerso
em seriedade prometesse que nem tudo estava perdido em sua subjetividade
– porque suas repetições obsessivas
talvez não fossem meros arabescos minuciosos, sem criatividade, mas
gratificações desfocadas exigindo ajuste, pois ao encontrar a nitidez,
ele encontraria a si mesmo, e servindo aos outros, serviria, antes de
quem quer que fosse, a si mesmo.
Porque sua inteligência o fizera alguém que sabia lidar com uma
fechadura, e nesses momentos de tato, paciência e minúcia, toda sua
carga de repetições obsessivas vinha em seu auxílio, dando-lhe chance
para o milagre da circunstância. Ele
teria muito o que conversar com
Luís XVI,
caso um tivesse tropeçado no outro, e
Luís Capeto
o conduziria até sua oficina para que discutissem engrenagens, estalos e
encaixes, esquecendo ambos da vida, através de combinatórias que abrem e
fecham os cadeados do mundo, pois um
chaveiro ainda é tão necessário quanto um médico, pouco importando que
ele só fale espanhol, estando na Rússia. Um bom chaveiro judeu teria
mais chance de sobreviver a
Auschwitz
do que um professor de literatura.
Além disso, desse saber lidar
espontâneo com fechaduras, ele também jamais se intimidava na presença
de uma rede elétrica, trocando resistências, revitalizando chuveiros,
furungando em fiações que tanto evitavam incêndios quanto livravam
donas-de-casa de suas tragédias momentâneas.
Indo mais adiante, bem mais além de qualquer além disso, ele se tornava
terrível, largando tudo e se esquecendo de todos, quando se via
frente-à-frente com a possibilidade de fragmentar algum motor de
automóvel, somente para que talvez assimilasse sua
estrutura e seu funcionamento.
Dentro de seu palco, ele talvez estivesse quase íntegro, quase completo,
só lhe faltando a descoberta de si mesmo, pois somente ela o habilitaria
para sua libertação e seu aprimoramento, garantindo-lhe certeza,
determinação e tentativa. Gente
assim, mesmo que possa cismar com o pé direito em cada primeiro degrau
de uma escada como válvula de escape, ou que tenha, em tenra idade,
extraído prazer na retenção das próprias fezes em seu ânus, para só
depois desse gozo insólito deixá-las escapar, merece respeito e
admiração. Quem não desfila por aí algum transtorno ou jamais frequentou
a pensão da paranoia, com toda certeza, não consegue fugir das garras de
alguma neurose, porque de perto ninguém é normal, sem contar que a noção
de normalidade se encontra sempre em compasso de alargamento.
Mas porque não se sabia, não se deixava conhecer como potencialidade.
Esse agente provocador negativo jamais lhe permitiu ver-se além do
rebaixamento ou da inferioridade, obrigando-o a sempre comparar-se
pelo equívoco. Porque ele poderia oscilar entre a demência e o
transtorno, porém tal pêndulo nunca seria marca de mediocridade. Em
palavras tristes, ele virava as costas para suas tendências e talentos.
Negando os próprios efeitos, pois de certa maneira estamos pelos nossos
efeitos, ele sempre antecipava a negação das próprias causas, fulminando
temporariamente sua criatura essencial. |