REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 30 | agosto | 2012

 
 

 

 

ADELTO GONÇALVES

Canção urbana: suas origens 

AS ORIGENS DA CANÇÃO URBANA, de José Ramos Tinhorão. São Paulo; Editora 34, 224 págs., 2011, R$ 37,00.  E-mails: anapaula@editora34.com.br; imprensa@editora34.com.br

 

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I

 

             Até aqui, a origem mais aceita para o fenômeno das modinhas, que se alastrou pelo Brasil e Portugal a partir do século XVIII, era a erudita. Acreditava-se que seria uma degeneração da ópera italiana que dominou os palcos dos teatros de Lisboa por aqueles anos. Mas essa não passou de uma conclusão precipitada a que haviam chegado historiadores que se valeram apenas da análise da música impressa daquela época.

            É o que mostra o historiador José Ramos Tinhorão em seu último livro, As origens da canção urbana (São Paulo: Editora 34, 2011), em que defende a origem plebeia da modinha, lembrando que o gênero foi levado para Portugal por um mulato brasileiro tocador de viola, Domingos Caldas Barbosa (1739-1800), até há pouco tempo mais conhecido pelos versos jocosos, satíricos e racistas que lhe foram endereçados pelo poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805).

            Segundo Tinhorão, até agora, os historiadores e musicólogos têm desprezado um pormenor fundamental: o de saber se, afinal, canção “a duo” italianizada dos salões chegou a ser cantada a solo nos meios do povo, como autêntica música popular. O pesquisador cita o misterioso inglês A.P.D.G., que residiu em Portugal de 1793 a 1804 e visitou o Rio de Janeiro em 1809, autor do livro Sketches of Portuguese Life, em que é citado um intérprete de modinhas de nome Vidigal que já aparecia como um autêntico compositor-cantor profissional de música popular de moderno estilo, acompanhando-se à viola, tal como fazia o mulato Caldas Barbosa.

            Para Tinhorão, as heranças rítmicas das danças africanas aculturadas no Brasil e em Portugal, se nem sempre apareciam nas interpretações de cantores-instrumentistas mais refinados, certamente, deviam constituir a atração dos tocadores populares, mais despreocupados com elaborações artísticas, até pela pobreza de seus recursos técnicos. Nesse sentido, o autor cita José Daniel Rodrigues da Costa (1757-1832), poeta popular que em vida rivalizou-se em fama com Bocage em Lisboa. José Daniel cita um tal Morgado da Barraca, que vivia da renda que auferia alugando quartos num pardieiro na Cotovia e reforçava seus ganhos com versinhos e modinhas “de tliquitó” que cantava  nas ruas em troca de alguns caraminguás.

            Para quem não sabe – e não adianta o leitor recorrer a dicionários –, a palavra tliquitó, avisa Tinhorão, serve para descrever o personagem antecipador em Portugal dos fadistas do século XIX e que, no Brasil, primeiro, seriam chamados de capadócios e, mais tarde, de malandros, tal como Cassi Jones, o malandrão branco e carioca, a quem a adolescente pobre e mulata Clara dos Anjos entregaria a sua virgindade, como se lê no romance que leva o seu nome de autoria de Lima Barreto (1881-1922). Esse malandrão ofereceria ao seu público popular um som à base de sonoro tliquitó, ou seja, “de cordas alegremente tocadas de rasgado”.   

 

 

 
   
 

II

 

        Pesquisador incansável, Tinhorão neste livro traça o percurso da canção popular – ou seja, a música acompanhada por instrumento harmônico, de cordas – desde os seus primórdios, quando surge em oposição à música de caráter coletivo da Antiguidade e da Idade Média, até chegar a sua consolidação no Portugal setecentista, com a introdução na Corte da modinha e do lundu pelo compositor brasileiro Caldas Barbosa. Como observa Luís Antônio Giron na apresentação que fez para este livro, a música popular urbana nasceu no século XVIII para render dinheiro. De fato, assim era, ainda que fosse para recolher “ao menos a moeda mais pequena” no chapéu virado que o artista passava entre aqueles que se deliciavam com suas apresentações, geralmente nas imediações do Rocio.

            Seu espírito manteve intacto até hoje, como arte voltada ao lucro, feita para agradar ao grande público. Tinhorão aponta José Daniel Rodrigues da Costa como pioneiro produtor desse tipo de literatura de massa. Na verdade, em sua época, José Daniel foi o poeta mais popular de Lisboa, superando em fama até mesmo o grande Bocage, o que talvez explique a fúria satírica com que este se voltou contra ele em versos, chamando-o de “machucho poetarrão”. 

            Se não tinha o talento de Bocage, não seria mau poeta. Sabia como contar uma história em versos e era isso o que importava à turba ululante, sem cultura, que vibrava com suas rimas vendidas pela rua. Pró-miguelista, foi arrumado na prateleira dos vencidos, como disse a professora Maria Luísa Malato Borralho, da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, na introdução que escreveu para O balão aos habitantes da Lua: uma utopia portuguesa (Porto, FLUP, 2006), quinta edição de uma obra que saiu à luz em 1819. José Daniel, o Josino Leiriense, da Nova Arcádia, “tudo capta e de todos os excessos ou novidades troça um pouco, entre o bobo da corte e bobo do vulgo”, diz a professora.

            De José Daniel, Tinhorão descobriu que versos publicados no décimo quinto folheto do Almocreve de Petas, em agosto de 1797, foram repetidos – sem o devido crédito, obviamente, porque assim foram passados por gerações a fio – no lundu “Isto é bom”, de 1902, assinado pelo ator e compositor-cantor Xisto Bahia (1841-1894), gravado em disco de gramofone sob a marca Zon-O-Phone. Como diz Tinhorão, Xisto Bahia, certamente, teria ouvido a quadrinha no seu estado da Bahia como “motivo popular”, tal como o crítico e historiador da literatura brasileira Sílvio Romero (1851-1914) ouvira versos de Domingos Caldas Barbosa repetidos nas ruas e feiras por cantores populares. Conhecendo a quadrinha como herança popular, Xisto Bahia não hesitou em incorporá-la, como sua, na letra do lundu. Eis a quadrinha:

                                   Se eu brigar com meus amores

                                   Não se intrometa ninguém

                                   Que acabados os arrufos

                                   Ou eu vou ou ela vem.

                                  

 
 

III

 

           José Ramos Tinhorão nasceu em Santos-SP em 1928, mas criou-se no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro. Nesta cidade, trabalhou no Jornal do Brasil e em emissoras de televisão como Excelsior, Rio e Globo e na Rádio Nacional. Em 1968, transferiu-se para São Paulo, onde vive até hoje. Foi colaborador da revista Veja, além de assinar duas colunas semanais para o Jornal do Brasil entre 1975 e 1981.

            Fez fama como crítico musical defensor das genuínas raízes da música popular brasileira. Lançou seu primeiro livro em 1966 e, desde então, publicou mais de vinte obras no Brasil e em Portugal sobre música e cultura popular. Grande pesquisador de alfarrábios, reuniu importante coleção de discos, partituras, periódicos, livros e imagens, acervo que se encontra atualmente no Instituto Moreira Salles, inclusive digitalizado e disponibilizado ao público também na internet.

            Voltando à universidade já na idade madura, tornou-se mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) em 1999, com a dissertação A imprensa carnavalesca no Brasil: um panorama da linguagem cômica (São Paulo: Hedra, 2000). Seu grande livro, ao menos na opinião deste articulista, é Os negros em Portugal: uma presença silenciosa (Lisboa: Caminho, 1988: 2ª ed. 1997).

 

 

Jornal InComunidade (Porto)

   
 

 

 

Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br

 

 

© Maria Estela Guedes
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