REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 29 | julho | 2012

 
 

 

 

NICOLAU SAIÃO

 

Alguns poemas

dos quatro cantos

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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MARÍTIMA

 

Pela manhã, flores e águas novas.

Os versos   um verso duro dum sujeito

que nem sequer te é simpático. Pela manhã

a praia. Aromas simples. Ou outra palavra qualquer.

Rosto sobre o redondo, óculos, um riso estranho

- dentes curiosamente agudos, lábios de marioneta -

crítico e professor    muito bem conceituado.

O outro: gordo, bem falante. Uma palavra inglesa.

Flores e

a tal água espanhola: (Fondavilla, Serraña…) um pouco

sobre o mole, talvez calcárea    ligeiramente

acidulada. Os olhares da morena - mas não a gorda - frios.

Poemas baratos   emendo   um preço módico

para quem cálculos renais    ou mesmo azia 

ergueu por sobre os anos. Contra a carne jacente

Olho os telhados: ruínas

varandas, intervalos donde se vê o mar. Dizer

com galhardia: levantemos, confiantes

o nosso rosto de sempre. Mas em qualquer jornal

(ou melhor, pois talvez  isso seja possível

se atentos estivermos) em qualquer oração

há termos  reconhecíveis como em romance ou

conversa fortuita: o pão de cada dia…a tentação…

- palavras que se colhem, um vocábulo

neutro

 

Porque

o que é difícil, manobra quase heróica

é recusar, deixar para trás, banir

sua imensa atracção

de momento final, de cambalhota ágil

de fluxo inenarrável. O terceiro

 

era mais velho: o cabelo já branco, os óculos de aros grossos

- uma espécie de romano moderno em férias -

p’ra começar o dia, p’ra ler bem, sem entraves

p’ra ter tempo que baste, andando com vigor pelas ruas.

 

Ergamo-nos, confiantes… 

   
 

A PALAVRA DEVASTADA

 

Tudo depende, caro senhor, de como

se vai vivendo.

 

O que a certas horas de súbito explode

e pouco a pouco brilha em coisas quotidianas, isso

a fundamenta. Outros diriam: bocados

de mármore, verbos, rostos vagos

pela sua própria condição, ou corpos

pelo contrário nascendo das raízes, das bocas

das frias construções entre o vazio e a ausência.

Nos traços, esses traços assinalados nos campos, nas salas

onde a areia se mistura nos cantos

com resinas e ópios

bem verdade é que a sombra aumenta. Desnecessário

 

colocar a mão sobre o

poema: nada

se vê que o resto não transtorne - seu estranho

coração. E lá

 

de quando em quando tudo desaparece

- a água podre, as flores emurchecidas

e mesmo as memórias que as memórias guardaram

 

nas faces, nas tremuras, nos mistérios perdidos.   

   
 

O PENTE

 

Isto não tem a ver

com o pente

e sim com a cabeça que está por debaixo.

Entretanto, finjamos

que no bolso interior do casaco

há outros mistérios e mundos.

 

Deram-nos algo para segurar

atentamente pela manhã

quando a memória, fresca ainda

vai do cerebelo ao cotovelo

e nada percorre os sujos

cocorutos da angústia

- ou os cabelos que já não temos:

Ele há tanta coisa para recordar!

 

A música num penteado é de somenos

- um retrato dispensa bem colcheias

e semifusas –

embora com os pentes se possam

abrir livros ou fechar namoros

por complacencia, cultura, mansidão.

Nestas coisas deus é que nem sabe

da risca a trajectória sonhada!

 

O pente não falha ocasião

de nos recomendar mais dignidade

e embora saiba que estamos perdidos

não desanima nunca

e espera, espera sempre

que algum dia se tenha mais leve de unto

a melena habitual.

 

Pente que morre será pente

vivo de humano objecto?

 

E um indivíduo sem braços

ainda em pensamento alindará

de vez em quando a marrafa? 

   
  ESPELHO
 

E depois de passada a porta

eis que ao seu encontro vieram

os verbos, o sol, os ventos, o calor

e alguns fantasmas misturados

na imagem e na memória que eles

de si mesmos conservavam

Na cabeça do espírito sobre a matéria

com que são feitas as realidades.

 

Sinais de longos anos imersos

na terra e nos seus céus já calmos

Um pescoço que se ergue lentamente

e roda   e olha com seus olhos lá em cima

e volta para baixo e diz com sua boca

- comer, dormir, acercar-nos da hora

em que todos os minutos que passaram

se banham duas vezes na mesma água dum rio

que mudou de lugar

 

E tudo se detém

e só nos resta ouvir

os ecos do que dissemos antes dessa hora

em que já tudo foi

e será sempre

 

estranho e distante.  

   
  GRAVURA
 

Há coisas repugnantes, bem por

baixo de nós, esperando atentamente.

 

Alegria, a planície e

uma parede pintada de

verde escuro   e uma

jarra jazendo sobre

os corroídos ossos.

 

Haver de tudo uma amostra de

tédio e dor. Os rostos

sobrepostos, voz do dia.

 

As madrugadas mortas

de penumbra e tabaco, ainda

nesse vento branco que se

oferece. De pessoas e

muros distantes

se cumpre o calor do Verão. E

de mãos que a terra

recusou.

 

Contar desse universo

o quê   e quando?

   
  ÓCULOS
 

Primos pobres do telescópio. Cunhados

do microscópio. De várias qualidades

sensíveis

como o vidro. Podemos imaginar sem esforço

Afrodite com óculos: mais nos excitaria. Os deuses

sofrem frequentemente, segundo é voz corrente

de miopia ou astigmatismo. Uns óculos

em frente duma janela

que por sua vez está em frente da noite, do dia:

prolonguemos o prazer perverso de ver

tudo a multiplicar-se.  Os óculos vulgares

funcionam como viajantes destemidos, para todos

os efeitos: houve quem os visse

no Saara, entre povos estranhos, ou entre

ondas de sangue.

Contam-se a propósito de óculos

tantas anedotas, que até nos apetece

limpá-los muitas vezes: há sempre um

ou dois

pingos de lama

e de miséria

na sua superfície. Cometas transparentes

cruzando o firmamento

da vida

repousam nas montras

das farmácias

como no jardim zoológico

 

os outros animais constelados. 

   
  LEVANTAMENTO DE RANCHO
 

O meu sargento desculpe mas ali não havia sonhos

Nem sequer daquele arroz que a prima Maria fazia

Doce como os sonhos o meu sargento desculpe

Mas é tão estúpido tão escalabitano tão

A norte de Bafatá ou mesmo

Castelo Branco o meu sargento é um nabo

Sonhos de ovos em castelo misturados na farinha

O meu coronel desculpe mas tive de o abater

O gajo não entendia que os sonhos eram os outros

Eu não ia gastar na tropa recordações de noites várias

E já agora também lhe digo que na bolanha entre as árvores

Há um ar em silencio extremamente melancólico

O meu capitão desculpe mas não chamei a amargura

De quando conheci a Domingas uma vez encontrei-a

Já havia muitos meses que me lavava a roupa

Junto ao mercado do Pidjiguiti   chorava

Era sofrida como uma mulher

Doce e tão calada como um objecto partido

O meu capitão desculpe mas tive que o abater

É uma coisa que me chateia entrarem-me nos afectos

O que é que você sua besta sabia da ternura em comissão

De serviço   o senhor que olhava de alto os taratas e os mancarras

O meu major desculpe mas era chegada a hora

Tantos anos depois ficaram todos em fila

A vingança é o que mais mora numa cabeça de soldado

Pensa-se nisso sempre quando se passa à peluda

De modo que foi assim   fiz levantamento de memórias

E o melhor de tudo foi que já não me podiam tocar

Eram nabos frios como o esparguete o arroz sensaborão

Ficaram todos em fila pois então

Mesmo que em sonhos   e agora estes não são

De ovos e farinha como almejava nesse tempo

Quando aguardava sem chegar uma encomenda familiar

Os olhos antigos tão fundos como o pego do rio Geba

E já agora que estamos com a mão na outra massa

Que é como quem diz com a pata na G3

O meu general vá à fava   palavra de civil tão sem galões

O meu general é um nabo   como na caserna se dizia.

   
  O ANIMAL
 

É só uma questão de começar: o animal começa

o rosto erguido,  o olhar cego de terra

- que a sua santidade é a mais oculta de todas

inevitavelmente mudando e recompondo

as alavancas, o absurdo respirar das máquinas

na treva.

O animal sobe, pois

com o ombro reluzindo na madrugada

imenso, minúsculo

mais pequeno que o tempo impiedoso

cheirando a tojo e canela, a voz

inenarrável dos séculos. Talvez os nossos pais

alcancem ver a trémula

luz da lampada ao longe, talvez

tudo seja de repente claro e sóbrio

- arquitectura, objectos perpétuos, um sinal

de apaziguante secura, a fresca

lembrança da larga dependencia onde guardavam

os frutos e a escuridão. Talvez

para eles haja choros e piedade, a semente

do silencio.

 

E contudo o animal aspira o leve cheiro

que o circunda

a chama impenetrável de muitos anos presos

à sua recordação

O animal percorre agora os quartos e as salas

o perfil doloroso das montanhas

o animal vai existindo no mundo

é o torso do mundo

o animal penetra no elemento novo

fala com as palavras obscuras que se escondem

numa gaveta duma cidade destruída.

O animal tem dentro de si vestígios

de turva dissipação. O animal

sente o vento nas barbas, contenta-se

com um logro, um afago, um charco de sangue.

O animal arqueja, enquanto

a música se propaga entre os muros e as estátuas.

 

Talvez seja, quem sabe, uma aparencia

verdadeiramente santa e tenebrosa. Por enquanto

a sua memória cobre-se de cicatrizes

parte copos, perde-se na contemplação

da alegria, como se

o animal existisse. É o calor

o êxtase de reconhecer, visível e subtil

de si mesmo. O animal

 

passa de um lugar a outro, simplesmente

e recompõe tenaz e sabiamente

a sua imagem destroçada.   

 

 

 

 

NICOLAU SAIÃO [FRANCISCO GARÇÃO]
 [
Monforte do Alentejo,1949, Portugal]
Poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico. Efectuou palestras e participou em mostras de Mail Art e exposições em diversos países. Livros: “Os objectos inquietantes”, “Flauta de Pan”, “Os olhares perdidos”, “Passagem de nível”, “O armário de Midas”, “Escrita e o seu contrário” (a publicar). Tem colaboração dispersa por jornais e revistas nacionais e estrangeiros (Brasil, França, E.U.A. Argentina,
Cabo Verde...).
CONTACTO: nicolau49@yahoo.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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