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A recepção em Portugal da Semana de Arte
Moderna de São Paulo traz-nos à memória um casal de jornalistas e
escritores, e muito mais do que isso, pois, no caso dele, António Ferro,
trata-se de um dos raros elementos positivos da política do Estado Novo.
Antes de afastado por Salazar, António Ferro desempenhou importantes
funções na Cultura, e nessa qualidade promoveu grandes acontecimentos e
grandes artistas da modernidade
A arte é tecida de relações, um livro é
um retalho desse tecido de diálogos, conhecimentos, leituras, espantos e
descobertas da nossa experiência, que constituem o suporte da criação.
Por isso não surpreende que este depoimento complete um anel na minha
rede de afetos e práticas de exegese modernistas. Esse anel passa pela
Guiné-Bissau, nas cercanias da Primeira Grande Guerra, e por Cascais,
nos anos 70, para se fechar aí – ou aqui -, na Universidade Santa
Cecília, em 2012.
Foi Fernanda de Castro, esposa de
António Ferro, quem viveu em Bolama, nessa época capital da Guiné
Portuguesa. Da experiência guineense deixou um belo poema, África
Raiz, e romances que encantaram a nossa infância e adolescência:
Mariazinha em África e Novas aventuras de Mariazinha.
Ora estava eu há dias a pensar, depois
de ter metido no correio três cartas de um dos filhos do casal, António
Quadros, com destino à Fundação do seu nome, que as minhas ligações
intelectuais e artísticas mais fortes se estabelecem com o Modernismo e
movimentos conexos. Uma delas, criou-a precisamente António Quadros,
quer com a sua presença amistosa, na casa de Cascais, onde tive o gosto
de o conhecer pessoalmente, quer com os seus livros, em especial sobre
modernistas. A ação desenvolvida em nós por relações destas não se
circunscreve à hora de apresentação ou visionamento, nem aos dias de
leitura: ela penetra e perdura em nós muito tempo. Assim a Semana de
Arte Moderna de São Paulo não se cingiu aos dias 11-18 de Fevereiro de
1922: o seu espírito já vinha da própria vontade de alguns artistas
brasileiros, de outras partes do mundo, e durará para além de hoje.
É num ambiente esfuziante de alegria,
provocador das mentalidades tacanhas, que o casal é recebido pelos
artistas organizadores e participantes do evento, isto ao longo de
vários meses, não apenas em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro, em
Belo Horizonte e outras cidades do Brasil. Uma peça de teatro de António
Ferro, Mar Alto, andava pelos palcos brasileiros, acompanhada por
conferências do autor e declamação de poemas de Fernanda de Castro.
Ocasião excelente para travar novos conhecimentos e permutar
experiências, quer do lado português, quer brasileiro. Porém acredito
que a principal repercussão no casal de escritores portugueses, e
portanto em Portugal, desta longa semana de arte, tenha sido um fruto
humaníssimo em carne e osso. Eles tinham casado por procuração, estava
António Ferro no Brasil, onde chegara uns três meses depois da Semana de
Arte Moderna. Foi sua testemunha um herói futurista, bem integrado na
épica urbana da velocidade e do progresso, Gago Coutinho. O Brasil
homenageava o audaz piloto que, com Sacadura Cabral, acabava de realizar
a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, integrada, como a Semana de
Arte Moderna de São Paulo, nas comemorações do I Centenário da
Independência do Brasil. Fernanda de Castro partiu então ao encontro do
marido, e logo nos primeiros meses de vida conjugal geraram o menino que
viria a nascer em Lisboa a 14 de Julho de 1923: António Quadros, seu
primeiro filho.
Como se sabe, o grito de Ipiranga nas
artes lusas foi soltado, oficialmente, em 1915, com a publicação da
revista Orpheu, editada por António Ferro. A Semana de Arte
Moderna de São Paulo tem na Orpheu algumas das suas raízes, pois
a revista foi concebida como ponte entre os dois países. Daí ter dois
diretores, Luís de Montalvor em Portugal e Ronald de Carvalho no Brasil.
Com os seus dezoito anos à época, António Ferro foi escolhido para
editor por ser menor de idade, e por isso «irresponsável», como eles
gostam de reafirmar – óbvia provocação à caduca responsabilidade
académica, atacada por Almada Negreiros no Manifesto anti-Dantas.
Aliás a atitude provocatória e desafiadora mantinha-se no comportamento
social dos artistas da modernidade no Brasil de 1922. Por isso mesmo
Fernanda de Castro foi aclamada «Rainha da Semana de Arte Moderna»: por
se ter apresentado suja de lama, de meias rotas, vestido
escandalosamente encolhido pela chuva até acima do joelho, na sequência
de um acidente de automóvel. Feitos acrescidos à missão de declamar
poemas em casa de D. Olívia Penteado, senhora riquíssima e chiquérrima,
famosa por no seu jardim funcionar o que então se designava por
«primeira Academia Livre de São Paulo». Isto conta Fernanda de Castro no
primeiro volume das suas Memórias, o que mostra o poder da
Academia de D. Olívia Penteado: ao proclamarem Fernanda de Castro
«Rainha da Semana de Arte Moderna», os artistas presentes proclamavam ao
mesmo tempo que há semanas com muito mais de sete dias. Por algum motivo
eles se consideravam os relógios do futuro, e gritavam que era a Hora! -
Hora presente, de ação contra as vaias dos defensores da arte
convencional.
António Ferro participou na Semana de
Arte Moderna de modos variados, pelas relações de amizade que já tinha e
criou depois com os artistas brasileiros e por ter colaborado na revista
Klaxon, publicada pela Semana de Arte Moderna. No número 3
podemos ler o seu texto Nós, ou, de forma talvez mais acessível,
no volume Intervenção Modernista, que colige umas dezenas de
trabalhos seus. Nós é qualquer coisa como um sketch para
teatro, com duas personagens, «Eu» e a «Multidão».
Outros contributos para a implantação do
Modernismo no Brasil resultam das suas conferências, levadas ao Rio de
Janeiro, a Belo Horizonte, ao Teatro Municipal de São Paulo e a mais
auditórios. A atuação de António Ferro, recebido em especial como autor
de Leviana, uma inovadora novela em fragmentos, e sobretudo as
suas palavras, traziam a febre e o frenesi do futurismo: «A idade do
Jazz-band» teve lugar a 12 de Setembro no Teatro Municipal de São Paulo,
com apresentação de Guilherme de Almeida, e no Trianon do Rio de
Janeiro, com apresentação de Ronald de Carvalho.
O jazz era a grande descoberta da
Europa, e sobretudo de Paris, o que significa, mais uma vez, que a arte
é feita de relações, de dádivas e de recepções, pois trata-se do
contributo afro-americano para o estabelecimento da modernidade, o que
aliás ainda não aconteceu por completo. Os movimentos mais renovadores
da arte ainda esbarram com uma mentalidade rural que sobrevive nas
populações de todos os países, mais sintonizadas com os paradigmas da
representação, o que quer dizer, em termos singelos, que a maior parte
das pessoas só é sensível a práticas estéticas realistas e românticas.
No Brasil, invoca-se o parnasianismo como principal baluarte da arte
académica, em guerra contra os modernos.
Os artistas da Semana de Arte Moderna
(tal como os de hoje) foram por isso aplaudidos e zurrados, convidados a
internarem-se nos hospícios para doidos, e António Ferro não escapou aos
varapaus. Era muito jovem ainda, muito empolgado, muito provocador, não
só nas palavras como na encenação das conferências: «A idade do
jazz-band», por exemplo, era interrompida aqui e ali por trechos de jazz
e terminou, como o conferencista solicitava em remate de texto, com um
solo de tambor. «A arte de bem morrer», quando foi proferida em São
Paulo, em Dezembro de 1922, teve apresentação de Menotti del Picchia.
As melhores recordações que Fernanda de
Castro guarda das várias visitas ao Brasil são as relativas à «semana
revolucionária», como ela mesma escreve. Foi pintada pelos pintores
modernistas do Brasil, criou no Brasil novas amizades, foi no Brasil que
passou a lua de mel, acontecimentos realmente inesquecíveis, de que fala
nas Cartas para além do tempo e sobretudo nos livros de
Memórias. É através dela que apresento o documento oficial de
recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo, redigido
por António Ferro. Delego por isso em Fernanda de Castro o epílogo deste
depoimento.
Eis o que o António escreveu a propósito desta memorável
semana:
«Graça Aranha, na Tribuna do Teatro Municipal,
proclamava a independência da Literatura Brasileira, os direitos do
Escritor. Iniciava-se a semana da Arte Moderna de São Paulo, semana
Revolucionária, à qual se seguiu uma verdadeira época de terror, no
mundo das ideias feitas; Mário de Andrade vestiu-se de Arlequim na sua
Pauliceia Desvairada. Oswald de Andrade, papão de burgueses,
manifestava os primeiros apetites da sua antropofagia. Menotti tinha
acabado de pintar, de modelar, de orquestrar o seu Juca Mulato.
Cassiano Ricardo sonhava já com o seu Martim Cerêrê. Joca Tatu
acabava de nascer, de ser dado à luz no Urupés, de Monteiro
Lobato. E até a Poesia do meu querido Guilherme de Almeida, admirável
retrato lírico do Brasil, se encontrava em rebelião contra si própria,
desencaminhada, tresnoitada virando boémia [...j.»
«Foi neste acampamento revolucionário, neste
Far-West de imagens que desembarquei certo dia, atraído por esse
empolgante barulho, por essas pistolas, esses bacamartes que disparavam
estrelas! Com um Jazz-Band inteiro na malinha de mão, com o meu
escandaloso Mar Alto, menos peça de teatro do que peça de
artilharia, fui logo festivamente recebido pelos meus camaradas de São
Paulo, pelos cow-boys do planalto, tanto mais que vinha colaborar
alegremente na sua algazarra, na sua gritaria, aumentar a confusão
geral.
«Fazendo ruído, assaltando reputações frágeis que
passavam ao nosso alcance, vivi quatro meses com esses bons
companheiros, numa camaradagem íntima de todas as horas, numa boémia de
espírito que nunca mais esqueço.»
Fernanda de Castro, Ao fim da memória, pp.
184-185
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011;
"Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |