REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 29 | julho | 2012

 
 

 

 

LEONARDO BOFF

Atitudes  críticas e pro-ativas face à Rio+20

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
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Dir. Maria Estela Guedes  
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    Creio que se impõem três atitudes que precisamos desenvolver diante da Rio+20.

A primeira é conscientizar os tomadores de decisões e toda a humanidade dos riscos a que estão submetidos o sistema-Terra, o sistema-vida e o sistema-civilização. As guerras atuais, o medo do terrorismo e a crise econômico-financeira no coração dos países centrais estão nos fazendo esquecer a urgência da crise ecológica generalizada. Os seres humanos  e o mundo natural estão numa perigosa rota de colisão. De nada vale garantir um desenvolvimento sustentável e verde se não garantirmos primeiramente a sustentabilidade do planeta vivo e de nossa civilização. Esta conscientização deve ser feita em todos os níveis, da escola primária à universidade, da família à fábrica, do campo à cidade.

A segunda atitude tem a ver com um deslocamento e uma implicação que importa operar. Urge deslocar a discussão do tema do desenvolvimento para o tema da sustentabilidade. Se ficarmos no desenvolvimento nos enredamos nas malhas de sua lógica que é crescer mais e mais para oferecer mais e mais produtos de consumo para o enriquecimento de poucos à custa da super-exploração da natureza e da marginalização da maioria da humanidade. A pesquisa séria do Instituto Federal Suíço de Pesquisa Tecnológica (ETH) de 2011 revelou a tremenda concentração de riqueza e de poder em pouquíssimas mãos: são 737 corporações  que controlam 80% do sistema corporativo mundial, sendo que um núcleo duro de  147 controla 40% de todas as corporações, a maioria financeiras. Junto com este poder econômico segue o poder político (influencia os rumos de um pais) e o poder ideológico (impõe pensamentos e comportamentos). A pegada ecológica da Terra revelou que esta já ultrapassou em 30% seus limites físicos. Forçá-los é obrigá-la a defender-se. E o faz com tsunamis, enchentes, secas, eventos extremos, terremotos e o aquecimento global. E também com as crises econômico-financeiras que se incluem no sistema-Terra viva. O tipo de desenvolvimento vigente é insustentável. Vãos são os adjetivos que lhe acrescentemos: humano, verde, responsável e outros. Levá-lo avante a qualquer custo, como ainda propõe o texto-base da ONU, nos aproxima do abismo sem retorno.

Deslocar-se para o tema da sustentabilidade significa criar mecanismos e iniciativas que garantam a vitalidade da Terra, a continuidade da vida, o atendimento das necessidades humanas das presentes e futuras gerações, de toda a comunidade de vida e a garantia de que podemos preservar nossa civilização. Essa compreensão de sustentabilidade é mais vasta do que aquela do desenvolvimento simples e duro.

Para alcançar tal propósito, se faz mister um novo olhar sobre a Terra, um re-encantamento do mundo e um novo sonho. Isto significa  inaugurar um novo paradigma. Se antes, o paradigma era de conquista e de expansão, agora, devido aos altos riscos que corremos, deverá ser de cuidado e de responsabilidade global. Precisamos incorporar a visão da Carta da Terra que propõe tais atitudes no quadro de uma visão holística do universo e da Terra. Ela vê o nosso planeta como vivo, com uma comunidade de vida única. É fruto de um vasto  processo de evolução que já dura 13,7 bilhões de anos. O ser humano comparece como expressão avançada de sua complexidade e interiorização. Este tem a missão de cuidar e de preservar a sustentabilidade da natureza e de seus seres.

Esta visão só será efetiva se for mais que um deslocamento de visões. A ciência não produz sabedoria mas só informações. Quer dizer, não oferece uma visão global e integradora da realidade interior e exterior (sabedoria) que motive para a transformação. Por isso deve vir acompanhada da implicação  de uma emoção  fundamental. Importa fazer uma leitura emocional dos dados científicos, porque é a emoção, a paixão, a razão sensível e cordial que nos moverão a ação. Não basta tomar conhecimento. Precisamos nos conscientizar, no sentido de Paulo Freire, nos munir de indignação  e de compaixão e  por mãos à obra.

Portanto, junto com a razão intelectual, indispensável, que predominou por séculos, cabe resgatar a razão sensível e emocional que fora colocada à margem. Ela é o nicho da ética e dos valores.  Faz-nos sentir a dor da Terra, a paixão dos pobres e o apelo da consciência para superarmos estas situações com uma outra forma de produzir, de distribuir e de consumir.

A terceira atitude é de trabalho crítico e criativo dentro do sistema. Já se disse: os velhos deuses (a conquista e dominação) não acabam de morrer e os novos (cuidado e responsabilidade) não acabam de nascer. Somos obrigados a viver num entre-tempo: com um pé dentro do velho sistema, trabalhar e ganhar nossa vida no âmbito das possibilidades que nos são oferecidas;  e com outro pé  dentro do novo que está despontando por todos os lados e que assumimos como nosso. Há muitas iniciativas que podem ser implementadas e que apontam para o novo.

Fundamentalmente importa recompor o contrato natural. A Terra é nossa grande Mãe, como o aprovou a ONU a 22 de abril de 2009. Ela nos dá tudo o que precisamos para viver. A contrapartida de nossa parte seria o agradecimento na forma de cuidado, veneração e respeito. Hoje precisamos reaprender a respeitar o todo da Terra, os ecossistemas e cada ser da natureza, pois possuem valor intrínseco independentemente do uso que fizermos dele como o enfatiza a Carta da Terra. Essa atitude é quase inexistente nas práticas produtivas e nos comportamentos humanos. Mas podemos ressuscitar esse sentido de amor, de autolimitação de nossa voracidade e de respeito a tudo o que existe e vive. Ele diminuiria a agressão à natureza e faria de nossas atitudes mais eco-amigáveis.

Defender a dignidade e os direitos da Terra, os direitos da natureza, dos animais, da flora e da fauna, pois todos formamos a grande comunidade terrenal.

Apoiar o movimento internacional por um pacto social mundial ao redor daquilo que pode unir a todos, pois todos dependem dele: a água, com um bem comum natural, vital e insubstituível. Criar uma cultura da água, não desperdiçá-la (só 0,7% dela é acessível ao uso humano) e torná-la um direito inalienável para todos os seres humanos e para a comunidade de vida.

Reforçar a agroecologia, a agricultura  familiar, a permacultura, as ecovilas, a micro e pequena empresa de alimentos,  livres de pesticidas e de transgênicos.

Buscar de forma crescente energias alternativas às fósseis, como a hidrelétrica, a eólica, a solar, a de biomassa e outras.

Insistir no reconhecimento dos bens comuns da Terra e da humanidade. Entre esses se contam  o ar, a atmosfera, a água, os rios, os oceanos os lagos, os aquíferos, a biodiversidade, as sementes, os parques naturais, as muitas línguas, as paisagens, a memória, o conhecimento, a internet, as informações  genéticas e outros.

            O mais importante de tudo, no entanto, é formar uma coalizão de forças com o maior número possível de grupos, movimentos, igrejas e instituições ao redor de valores e princípios coletivamente partilhados, como os expressos na Carta da Terra, nas Metas do Milênio, na Declaração dos Direitos da Mãe Terra  e no ideal do Bem Viver das culturas originárias das Américas.

            Por fim, precisamos estar conscientes de que o tempo da abundância material acabou, feita à custa do desrespeito dos limites do planeta e na falta de solidariedade e de piedade para com as vítimas de um tipo de desenvolvimento predatório, individualista e hostil à vida. O crescimento econômico não pode ser  um fim em si mesmo. Está a serviço do pleno desenvolvimento do ser humano, de suas potencialidades intelectuais, morais e espirituais. A economia verde inclusiva, a proposta brasileira para a Rio+20, não muda a natureza do desenvolvimento vigente porque não questiona a relação para com a natureza, o modo de produção, o nível de consumo dos cidadãos e as grandes desigualdades sociais.  Um crescimento ilimitado não é suportado por um planeta limitado. Temos que mudar de rota, de mente e de coração. Caso contrário, o destino dos dinossauros poderá ser o nosso destino.

Finalmente, meu sentimento do mundo me diz  que não estamos diante de uma tragédia anunciada. Mas diante de uma gravíssima e generalizada crise de civilização. Contém muitos riscos, mas, se quisermos, serão evitáveis. Pode significar  a dor de parto de um novo paradigma e o sacrifício a ser  pago para um salto de qualidade rumo a uma civilização mais  reverente da Terra, mais respeitosa da vida, mais amiga dos seres humanos e mais irmanada com todos os demais seres da natureza.

 

 

 

 

Leonardo Boff (Brasil)
Teólogo, filósofo, da Comissão Iniciativa da Carta da Terra, autor de Proteger a Terra e cuidar da vida: como evitar o fim do mundo, Record 2011.

 

 

© Maria Estela Guedes
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