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Navegas por aí, entre o
pontão de uma praia e uma velha fábrica assassinada pelo caos
pós-moderno. Nem sei teu nome, nem se tens namorado ou pais ou irmãos.
Espreitei-te de um café na Foz do Douro e fui-te seguindo, furtivo,
estranhando teu deambular tão inesperado quanto o teu comportamento. Mas
apreciei a tua dança macabra quando resolveste violar o Prado Repouso
naquela sexta-feira à noite. Senti um frémito de fascínio e o medo de me
sentir seduzido por uma louca. Pior: por perceber que queria que fosses
louca para me apaixonar, em segredo, por ti.
Preenches-me as insónias
quando te consigo ver nessas noites. Nas outras sou um vulgar pai de
família a seguir as notícias sobre o “euro 2012” em todas as antenas das
rádios e das televisões. Pai de família sem família. Todos me
abandonaram no dia em que descobriram que além de sida, estava nas
vésperas de cair no desemprego. Foi quando comecei a tentar ler Sartre,
primeiro, e Saramago a seguir. Mas como não percebia as angústias do
primeiro, nem do outro o texto sem a pontuação que o Sr. Martins me
ensinara à reguada, desisti.
Por isso me sinto
obcecado contigo e já me penetraste os sonhos. Acordo a suar, transido
de medo, tu és a Morte e eu estou a beijar-te. Mas quando acordo,
imagino-te nua na banheira, o espelho embaciado e o meu pai, que morreu
há 32 anos, pega-me na mão e adverte-me: “Tem juízo filho, não é mulher
para ti”. Então os teus 30 anos (?) transformam-se nos 90 com que morreu
a minha avó, muito depois do meu pai. E ris-te, atirando a espuma do
banho contra a minha face. E, mesmo assim, fico maravilhado: só me vêm à
memória as imagens das Pirâmides, ilustradas, na sala de espera do
consultório do meu pediatra.
Mas quando acordo, feita
a barba, duche tomado e vestido casualmente, saio para a rua, vou até ao
café na Foz do Douro onde te vislumbrei pela primeira vez e fico a
aguardar-te. A maior parte das vezes não vens e eu sabia-o
perfeitamente. Mas às vezes tenho sorte e sigo-te como um espião de
saudades até as extinguir quando, cruel, me olhas de frente e sorris
antes de dares uma corrida como uma garça. Não tenho pernas para te
acompanhar. Literalmente: deixei-as amalgamadas com uma mina no
Ultramar; e nos braços não tenho força para atingir a velocidade das
tuas pernas, longas, esguias, musculadas. E o cheiro húmido do capim
recorda-me as negras com quem dormi, sem verdadeiro interesse que não
fosse o de fazer colecção ao desafio com o meu Alferes.
Quem serás tu? Anjo ou
demónio? E porque me atrais?
Provavelmente, quando
daqui a instantes, lançarem o primeiro torrão de terra no funeral a que
assisto, sem saber de quem, apareces-me e talvez me beijes. Então, posso
descansar em paz. Tudo acabou e sou teu. Chegou a Eternidade, meu amor
inconfessado! |
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(Jorge) Castro Guedes (Portugal)
Encenador, natural do porto, nascido em 1954. fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93). encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses. director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo). professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril. autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação. acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).
castroguedes9@gmail.com |