REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 29 | julho | 2012

 
 

 

 

CASTRO GUEDES

Apocalipse meu

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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Navegas por aí, entre o pontão de uma praia e uma velha fábrica assassinada pelo caos pós-moderno. Nem sei teu nome, nem se tens namorado ou pais ou irmãos. Espreitei-te de um café na Foz do Douro e fui-te seguindo, furtivo, estranhando teu deambular tão inesperado quanto o teu comportamento. Mas apreciei a tua dança macabra quando resolveste violar o Prado Repouso naquela sexta-feira à noite. Senti um frémito de fascínio e o medo de me sentir seduzido por uma louca. Pior: por perceber que queria que fosses louca para me apaixonar, em segredo, por ti.

Preenches-me as insónias quando te consigo ver nessas noites. Nas outras sou um vulgar pai de família a seguir as notícias sobre o “euro 2012” em todas as antenas das rádios e das televisões. Pai de família sem família. Todos me abandonaram no dia em que descobriram que além de sida, estava nas vésperas de cair no desemprego. Foi quando comecei a tentar ler Sartre, primeiro, e Saramago a seguir. Mas como não percebia as angústias do primeiro, nem do outro o texto sem a pontuação que o Sr. Martins me ensinara à reguada, desisti.

Por isso me sinto obcecado contigo e já me penetraste os sonhos. Acordo a suar, transido de medo, tu és a Morte e eu estou a beijar-te. Mas quando acordo, imagino-te nua na banheira, o espelho embaciado e o meu pai, que morreu há 32 anos, pega-me na mão e adverte-me: “Tem juízo filho, não é mulher para ti”. Então os teus 30 anos (?) transformam-se nos 90 com que morreu a minha avó, muito depois do meu pai. E ris-te, atirando a espuma do banho contra a minha face. E, mesmo assim, fico maravilhado: só me vêm à memória as imagens das Pirâmides, ilustradas, na sala de espera do consultório do meu pediatra.

Mas quando acordo, feita a barba, duche tomado e vestido casualmente, saio para a rua, vou até ao café na Foz do Douro onde te vislumbrei pela primeira vez e fico a aguardar-te. A maior parte das vezes não vens e eu sabia-o perfeitamente. Mas às vezes tenho sorte e sigo-te como um espião de saudades até as extinguir quando, cruel, me olhas de frente e sorris antes de dares uma corrida como uma garça. Não tenho pernas para te acompanhar. Literalmente: deixei-as amalgamadas com uma mina no Ultramar; e nos braços não tenho força para atingir a velocidade das tuas pernas, longas, esguias, musculadas. E o cheiro húmido do capim recorda-me as negras com quem dormi, sem verdadeiro interesse que não fosse o de fazer colecção ao desafio com o meu Alferes.

Quem serás tu? Anjo ou demónio? E porque me atrais?

Provavelmente, quando daqui a instantes, lançarem o primeiro torrão de terra no funeral a que assisto, sem saber de quem, apareces-me e talvez me beijes. Então, posso descansar em paz. Tudo acabou e sou teu. Chegou a Eternidade, meu amor inconfessado!

 

 

 

 

(Jorge) Castro Guedes (Portugal)
Encenador, natural do porto, nascido em 1954. fundador e director artístico do tear (1977/1989), estagiou com jorge lavelli no théâtre national de la coline (paris) na temporada 88/89, autor e apresentador do magazine teatral "dramazine" na rtp2, onde foi consultor de teatro (90/93). encenador convidado no teatro nacional dona maria II, serviço acart/gulbenkian, casa da comédia, teatro aberto/novo grupo, teatro villaret/morais e castro, teatro villaret/raul solnado, cendrev, filandorra, teatro universitário do porto, cenateca, plebeus avintenses. director artístico do cdv - centro dramático de viana, companhia profissional residente no teatro municipal sá de miranda (viana do castelo). professor convidado da escola superior de teatro e cinema (lisboa), escola superior de música e artes do espectáculo (porto), escola superior artística do porto, academia contemporânea do espectáculo (porto), convenção teatral europeia (lisboa), escola superior de hotelaria e turismo do estoril. autor de "à esquerda do teu sorriso", peça em um acto, editora campo das letras; e de outras à espera de publicação. acidentalmente copywritter na mccann/erikcson (90/92).

castroguedes9@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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