A palavra «comboio» tem em si um aspecto
simplificador: dizer «comboio» é mais simples e fácil do que dizer as
palavras «locomotiva» e «carruagem». Mesmo a palavra «automotora» de
cinco sílabas perde a comparação para a palavra «comboio» de três
sílabas apenas.
Não podemos esquecer que a própria ideia de viagem
corresponde a uma metáfora da vida. Também a vida é uma viagem com
início e fim, com paragens e visitas, com gente a entrar e a sair do
compartimento que nos calhou. Tal como na vida, a viagem do comboio
proporciona surpresa e conhecimento, mistério e encontro. Uma educação
sentimental. Uma revelação. Todos temos na nossa vida uma linha, uma
viagem e uma memória.
O poeta João Miguel Fernandes Jorge nasceu no
Bombarral em 1943 e regista uma singular relação com os comboios da
Linha do Oeste no poema 31 do livro «O regresso dos remadores» -
Editorial Presença. Vejamos um excerto:
«O comboio correio das 10 da noite partia da /
minha terra para Lisboa. Fui tantas vezes / com o meu pai levar as
cartas. Esperávamos / na gare. Se havia chuva ouvíamos o apito / quando
passava à Granja vindo de Óbidos e / depois de correr o vale de S.
Mamede. / Anos depois, já de mim se dizia um homenzinho / viajei
nesse comboio das 10. Partia de / Coimbra às cinco horas. / Viajava em
segunda. Vinha para casa no natal».
As três classes em romano nas portas (I, II e III)
levaram Bernardino Machado a afirmar um dia: «Viajo às vezes em terceira
para ouvir o povo e aprender alguma coisa. Com os da primeira já não
aprendo nada…» Era vulgar ouvir há 50 anos uma advertência na estação de
comboio do Montijo com a ideia de perpetuar as divisões da sociedade:
«Os filhos dos motoristas não vão para o Liceu». Foi numa estação de
comboios que mataram o presidente Sidónio Pais, um bagageiro infeliz foi
morto por engano no Rossio pela guarda municipal quando esperava o
comboio das Caldas da Rainha.
Noutra linha José Cardoso Pires (1925-1998) situa a
viagem atribulada de um grupo de soldados a caminho do Cercal Novo em «O
hóspede de Job – Editora Dom Quixote»: «Um clarim, uma igreja abraçada
ao quartel, meia dúzia de casas ao correr da estrada, um delicado traço
de fumo a alastrar sobre a planície». Os operários e camponeses deixam
amigos, enxada e família para se entregarem à triste vida da caserna.
Têm o eco do comboio e as notícias dos seus para os lembrar: «o comboio
é o remorso do prisioneiro e as notícias da família são um segundo
castigo para quem sofre à distância a desgraça dos outros».
Para José Régio (1901-1969) em «Davam grandes
passeios aos Domingos…» - Editorial Inquérito, o comboio desenha o amor
de Rosa Maria e Fernando: «O comboio parara finalmente na estação de
Portalegre. Vêem uma rapariga só… - pensava ela com a sua
psicologia de pouco afeita aos caminhos-de-ferro e aos desembaraços da
mulher moderna». Depois de uma viagem longa na paisagem monótona e árida
(o empregado que grita «Chança! Mata! Crato!») há na estação um encontro
com o primo Fernando: «Chego tarde e ainda por cima lhe prego um susto.
Desculpe!»
Em «A noite da vergonha» de 1963 (Livraria
Bertrand) Mário Ventura (1936-2006) coloca o herói de 24 anos (Ramiro)
numa viagem de comboio de Lisboa para o Porto fazendo (segundo Vítor
Viçoso) do trânsito simbólico do comboio «homólogo do seu percurso de
autognose. O medo, a desconfiança e as precauções codificadas pela
actividade clandestina, justificam a estranheza do protagonista
relativamente ao universo envolvente». Ramiro quebra um dos interditos
da vida clandestina e revela à companheira do comboio (Sílvia) a sua
identidade.
Miguel Torga (1907-1995) em «Vindima» (Editora Dom
Quixote) coloca em oposição duas faces da sociedade portuguesa: de um
lado o senhor Lopes em I classe («desdobrou o jornal na poltrona de
veludo») do outro lado em III classe uma gente «miserável, suja, magra,
numa ânsia dolorosa de viver e de vencer») que, aos poucos, «a ombros, a
pragas, a desculpas e a sorrisos» ia submergindo os direitos dos outros.
Não valia a pena gritar na I classe «Não há lugar!» pois a resposta dos
passageiros de III classe era sempre a mesma: «Vá lamber sabão, ora o
parvo! Com licença…» O comboio pode ser a metáfora possível dum país
dividido agora em três classe (I, II e III) depois de já ter sido antes
dividido em Clero. Nobreza e Povo. |