O assunto é polêmico. E por
inúmeras razões, haja vista que examina um terreno instável e pouco
confortável; trata-se com efeito de um espaço cinzento, de interlúdio,
que já vitimou inúmeros críticos (e talvez uma geração deles) em
diversas ocasiões e que legou sobretudo autores desajustados ao entreato
das verdades chãs e fáceis, a esperar por uma luz adequada para examinar
sua fortuna literária. Caso de Cesário Verde, com absoluta certeza.
Imediatamente devemos definir o
sentido que estamos emprestando ao termo ‘seguidores’ para que tudo
comece a fazer sentido.
Seguidores órficos não se confundem
com os fundadores do movimento. São autores ou artistas que não tiveram
suas colaborações estampadas em nenhum dos dois números epocais da
revista Orpheu.
Considero, pois, seguidores órficos
aqueles autores
que, a partir de 1915 (com publicações antes de 1915, ou não), e até o
advento da revista Presença, em março de 1927, publicaram, no
âmbito da ficção, da lírica, do texto de intervenção ou ensaístico, obra
que de um modo ou de outro venha denotar influência órfica de qualquer
matiz e intensidade. São portanto considerados imediatos porque não
esperaram a natural acomodação dos ismos órficos. Aderiram, mesmo que em
parte, mesmo que em mínima parte, àquelas grandes linhas estéticas que o
movimento do Orpheu assinalou.
Assim, não levo em consideração o grau de fidelidade do autor, expresso
por seu percurso literário ou artístico após 1915, nem antes --, busco
apenas apontar a ocorrência, mesmo que pontual e fortuita, de um e outro
traço órfico na produção édita desse ou daquele autor, entre as datas
assinaladas.
Convém ainda observar que os textos
que comparecem neste ensaio, sempre um de cada autor, têm, por assim
dizer, um mero caráter antológico, pois, diga-se expressamente, não é
meu intuito propiciar ao leitor um contato com o universo de obras de
seguidores órficos, o que exigiria um novo trabalho diferente deste, com
outros objetivos e proporções, mas apenas registrar nomes de autores
que, no período acima demarcado, e a partir de textos arbitrariamente
selecionados, comprovaram haver aderido, mesmo que provisória e
eventualmente, a um ou mais programas de arte órficos.
O primeiro nome que gostaría de
assinalar, iniciando assim o rol de seguidores órficos, é Fernando
Carvalho Mourão cujo poema "Sepultado", dedicado a Antero de Quental,
acusa, já no primeiro verso, indícios de alguma influência da lógica do
paulismo à Sá-Carneiro, embora por detrás desta ressaltem, muito
vibrantes e em todo o poema, semelhanças com Florbela Espanca (mesmo
que fortuitas) – e, claro está, influências também do próprio Antero:
Houve palácios dentro em
mim, quando eu
Erguia os braços para Deus e
via
O olhar do próprio deus,
formando o céu
Azul, daquele azul que canta
o Dia!
Mas quando veio ao mundo a
Noite Escura
Os meus olhos cerraram-se...
ceguei,
E vi como era negra a
Desventura
Que em voo etéreo e louco
abandonei!
Inda quis procurar dentro de
mim
A porta dos dragões, mas o
jardim
Tinha-se transformado num
deserto...
Os palácios, agora
confundidos,
Tombaram todos sobre os meus
sentidos,
E, sob as ruínas, despertei
do Incerto!
A
alterização e uma sensibilidade semelhante àquela de Sá-Carneiro estão
presentes nos versos abaixo de Américo Cortes Pinto que, contudo,
deixam-se impregnar totalmente pelo idealismo religioso característico
dos poetas saudosistas, o que resulta no estiolamento do vertedouro
modernista:
Romeiros de Ideal
Meus gestos peregrinos se
exilaram...
Tiniram luz em longes de
cristal
E em espelhos de mentira se
espelharam..
Contrito,
Minha alma traz
Jesus-Crucificado!
Senhor meu Deus! O meu
desejo em grito
Cegou de luz meus olhos de
abismado...
Orgulhos e vaidades que eu
ergui
Caíram de tão alto aos pés
de ti,
Jesus!
Senhor! Senhor! Tua presença
em mim
Quebrou-me as altas
Torres-de-Marfim
Em estilhaços de luz!
Cortes
Pinto ainda mais se fasta da herança órfica no poema "Ironia
bucólica", embora busque dessacralizar o lirismo tradicional,
contrapondo ao seu temário a estesia do antilirismo, atitude modernista
por excelência, debruçando-se sobre o banal e o cotidiano, alicerçada
por um enunciado propositadamente coloquial e fingidamente descuidado:
Meus bons amigos: -- o
pensar é uma canseira
Que não vale para vós o
esforço que a produz,
Por isso vou cantar os
gados, a lareira,
O mar e a lavoura, as águas
mais a luz...
Ides ver neste poema
descuidado
Cheirando a madressilva, a
terra e a maresia,
As enxadas cavando e os
sulcos do arado,
E as cartas que um Manel
screveu a uma Maria...
Para escrever canções deste
feitio,
Dão-se férias à cabeça e ao
nervoso,
Basta beber dum trago este
ar sadio
E deixar correr a pena que é
um gozo...
Isto não é sylva
exotérica -- está dito
Mas sempre é bom fazer estes
reparos -
Para os raros apenas
não foi escrito,
Mas sim apenas pros que não
são raros...
Isto é um poema feito num
momento
-- E feito de propósito para
vocês!
Pegai lá -- não precisais de
ter talento
E basta saber ler em
português.
Antonio
Ferro foi um dos editores da revista Orpheu. Talvez o mais jovem
dentre os que deram corpo à revista. Não obstante, só estrearia em 1918,
com o volume poético O ritmo da paisagem.
Três anos depois publicaria um livro de frases, Teoria da
Indiferença,
mas é em Leviana
que encontramos uma forte influência proveniente em parte da produção
órfica de Almada-Negreiros -- e, em grande parte, fruto de um contato
com a prosa de ficção desse autor, entretanto pós-órfica, ou seja, de um
contato com aquelas obras posteriores ao advento de Portugal Futurista,
caso da novela A engomadeira (escrito em 1915 e vindo a lume dois
anos depois), bem como do conto "O cágado" (que foi impresso em 1921).
Assim, em
Leviana iremos revisitar o coloquialismo de Almada, sua
desmistificação escritural, vários outros expedientes narrativos seus
(mormente aqueles que não revelam sua aproximação do futurismo), como o
comentarismo (com suas frequentes interposições de matéria opinativa ou
de sentido moral, em meio ao entretecer ficcional) e o fragmentarismo,
numa disputa sempre acirrada contra a convenção social, em que se serve
do jogo de palavras e de uma propensão para o absurdo (esta, sim,
originada na adesão ao programa futurista). Um trecho da novela de
Antonio Ferro, mesmo porque reproduzi-la na íntegra não seria possível,
pode ilustrar, em parte, o que dizemos:
A Leviana falava muito.
Inundava-me de palavras, de risos, de gestos. Tinha guizos na alma. A
sua boca era um baile de máscaras, um baile de máscaras torpe onde as
palavras, em tangos histéricos, caíam, umas sobre as outras, bêbadas, às
gargalhadas...
Toda ela era movimento. A
sua presença, mesmo quando não falava, era um grito. O seu sorriso era
uma falena de asas salpicadas que, em voo sobre o seu corpo, ora
descansava na papoila sangrenta dos seus lábios, ora no salgueiral
das sobrancelhas a marginar-lhe os olhos, ora nos solitários dos seus
dedos... As suas palavras caíam sobre o meu tédio como uma chuva
miudinha, a refrescá-lo. A sua alegria era um pombal na Hora-Asa em que
as pombas abalam para o céu...
[...]
A Leviana tinha um grande
desprezo pela minha arte: "Sabesfazer versos? Melhor era que aprendesses
a dançar." Esse desprezo, longe de magoar o meu orgulho, lisonjeava-o.
As mulheres que têm relampejado na minha vida, devo-as aos meus versos,
esses versos de que eu não tenho a responsabilidade, que vivem
hospedados na minha alma, como boêmios numa trapeira. Só a Leviana
gostou de mim sem os meus versos que foram, para ela os meus únicos
defeitos, que são, na verdade, os meus únicos defeitos... A Leviana
nunca me tomou a sério, eu nunca tomei a sério a Levina. No entanto, as
nossas bocas abriam-se para rir e fechavam-se num beijo.
A
sensibilidade de Sá-Carneiro parece haver influenciado Salema Vaz,
conquanto o poeta não se defina claramente por um dos inúmeros ismos,
com suas combinações e derivações, preferindo, em "Marcas, olhando os
dedos nus", a difícil lição de combinar a veia ainda do ultrarromantismo
com a sensibilidade decadente que diretamente herdou:
Heráldicas safiras, que vos fiz?
Esmeraldas d'esperança, onde vos pus?
De astrais brilhantes, que é da casta luz?
E onde sangrais, meus bélicos rubis?
Perdi-vos para sempre! A sorte o quis!
Choram por vós meus pobres dedos nus...
Como um vitral precioso nos seduz
De Laura o lácteo corpo onde fulgis!
Tudo o que eu tinha, Amor, tudo te dei.
Sou pobre como Job e como um Rei
Fui pródigo de bens e d"Honrarias!...
Hoje... ai de mim!... Quisera reaver
Meu coração, que tu levaste, a arder,
Por entre coruscantes pedrarias!
O longo
poema sensacionista-interseccionista-futurista "Manucure", de
Sá-Carneiro, terá sido, muito provavelmente, um dos modelos, se não o
principal, que Fortunato Velez tomou de empréstimo para compor a
estridente melodia antilírica, de vozes e ruídos citadinos, tecido esse
que vai urdir o poema "Paris de França; excerto de Paris movimento e
cor":
Que raiva! tanta gente
emerva! Mais ainda: encoleriza, enfarta!
Vá mais depressa! passe...
Não passa! Um raio a parta!
Ora o estupor da velha, aqui a pisar ovos!
................................................................................
Não compro! Não me mace!
-- Clemenceaus com movimento...
Que tal está o do invento! -
.................................................................................
E a pescar rapazes novos...
Croia velha! Canastrão!
"L'Intran...sigeant..."
Quatro"sous"! Ora o ladrão!
Vê-se bem que sou estrangeiro...
E esta! Sempre a esbarrar com "poilus"!
Vitrines de latão com trapos de cem cores...
Apliquem-lhe o letreiro:
TARTARINS METRALHADORES
COM QUATRO ANOS DE CAÇA,
QUEREM SER ADMIRADOS
POR TODA A GENTE QUE PASSA.
Nanja eu que os admire.
....................................................................................
"Viens..."
....................................................................................
Qual "viens" nem meio "viens", deixa-te disso!
...................................................................................
E as luzes do boulevard,
via-láctea burguesa
de lamparinas a par!
E o Louvre a evocar uma tragédia obscura...
-- Lupanar dos Valois
com exposição de pintura! -
"Oh! pardon Monsieur..."
Arre que é bruto!
Não se pode parar ao pé desta canalha!
A tal senhora de luto
lá foi sentar-se agora no Café...
-- Aquele velho no Braibant, não falha! --
Vamos lá sentar também
para ver como isto é.
.............................................................................
"Garçon, vite!"
A beberagem não presta,
e a madame... "Je m'en vais".
Gosta mais de Americanos,
os tais soldados guerreiros
da marca U. S. A.
Os Sem-Pavor das máquinas Smith,
Cavaleiros da Ordem do Guindaste
que vai estendendo o braço para cá.
..................................................................................
Zut! Zut!
o "autobus"
apesar da ligeireza
faz um garulho infame de Babel!
Mas digam lá com franqueza,
- se isso é coisa que lhes sobra --
daqui, não les parece a torre Eiffel
um exemplar de ferro e aço em obra?
Também pode lembrar
um monstruoso A sobre alveneis
realizando a forma
dum grande pesa-papeis.
.................................................................................
"Oh c'est rigolot!"
-- Um árabe a passar de manto e de turbante. -
..................................................................................
"C'est rigolot..." a dona sirigaita
nada conhece além do paletot.
Julga que o mundo é a França ou é farsante.
Odeio tudo isto! É bem de ver,
se já não tenho na algibeira um "sou"
nem um cigarro!
Oh Portugal! Café Martinho! Oh Tu!...
Que horrível ditadura esta "purée"!
Agonizo no sonho e no bulício...
Escorreu-me a sorte sem deixar resquício!
Entro na sombra enfim do Chatelet.
.....................................................................................
Do Chatelet!...
Não teríamos ouvido em algumas passagens ecos do turbilhão parisiense
que Laforgue registrou assim propiciando que Sá-Carneiro também o
fizesse em "Manucure"?
No mesmo
ano de 1922, Castelão D'Almeida publica "Canção rubra", de um lirismo
sensacionista que em vertigem labora na direção da fragmentação do eu,
e explora a alteridade e a inconsciência, para finalmente se revelar
como um ser de excessão, semelhante ao que já antecipara o sujeito
lírico de muitos dos poemas de Mário de Sá-Carneiro, vindo esse autor,
inclusive, a explorar muitos dos estilemas cardosianos, sua atração pela
ambientação exótica, pelo tema da loucura, pela outridade (e como no
poeta órfico, circunvagando sobre uma percepção difusa e percuciente de
uma singularidade humana, pessoal, a ser decifrada e acolhida).
De um
longo poema de Castelo D'Almeida, registramos alguns trechos
ilustrativos.
Vibra a pandeireta em
contorções lascivas.
Em requebros fulvos, curvas
sucessivas.
Bailarinas nuas
arabescamente,
Num cantar dolente
Todo rendilhado em
movimentos mágicos,
Têm amargos trágicos
No enrugar das bocas.
Bailarinas loucas,
bailarinas loucas,
Com sapateados no mourisco
pátio.
[...]
Silêncio sepulcral.
Alheamento
Do meu pensamento
Das coisas naturais.
Ouço as passadas imateriais
Da multidão silenciosa.
Nos lábios brancos da
vaporosa,
Etérea bailarina,
Pôs nódoas negras a
nicotina.
Não existo por mim, nem para
mim:
Tenho alma de Arlequim.
Serpentinas de fogo,
azul-violetas,
Adejam sobre mim quais
borboletas
Sugando-me a razão de ser
Alguém.
Beijos perdidos no anseio do
Além;
Alma perdida no Vago.
Lágrimas caem no mistério
mago
Da face estoica. Esfíngico
martírio!...
Adoro as espirais do meu
delírio:
Nas asas do seu doido
espiralar,
Estou dentro de mim, sem me
alcançar.
Fox trot infernal;
destrambelhados
Sons de violinos maguados;
Contatos sensuais da minha
carne virgem
Com as filhas sanguíneas da
vertigem.
[...]
Esqueço tudo ao querer
lembar-me tudo;
Apenas tenho braços como
escudo.
[...]
Eu, já não sinto o bulício
Da loucura humana:
Todo Eu sou um Outro, que se
irmana
Comigo em negra
inconsciência.
Brilha em meus olhos a
fosforescência
Do cadáver do meu Eu.
O coração adormeceu.
[...]
Meus irmãos; eu sou o
Singular,
O Imperfeito, o Ímpar, o
Sem-par;
O Vagabundo, o Peregrino;
O que nasceu sem Destino...
Eu sou a noite dum sonho;
Nem de mim próprio disponho
[...].
Em 1923,
Bruges D'Oliveira publica o poema "Duas canções". A plasticidade
pictural dos primeiros versos, em que os substantivos "luar", "rua",
"céu" e "olhar" se interpenetram, fundindo planos espaciais e induzindo
um novo sentido antinatural ao quadro, ilustra uma vez mais o
fato de o simultaneísmo e o interseccionismo serem membros diferentes
mas de uma mesma família.
I
O luar inunda a rua
E a mim inunda-me o luar:
A rua o luar da lua
E a mim a do teu olhar.
Então, minha alma estremece!
E eu não sei, Aluz do luar,
Se é do céu que o luar
desce,
Ou sobe do teu olhar...
II
Nesta ausência e nesta dor,
Ó bem do meu coração,
Mais do que amor, este amor,
É uma religião.
Creio em ti, ó rosa triste.
Como um cristão quando crê
Em Deus, que sabe que existe
Mas no entanto não vê...
No início
de 1924, Adelino de Palma Carlos imprime, em um número de Alma Nova,
o poema "Ascensão", em que lampejos do léxico interseccionista de
Sá-Carneiro aparecem aqui e ali ("sinto que beijo a ânsia doutro beijo";
"olhos-auroras"; "preces ruivas"):
Creditam beijos, delirantes,
vagos,
Na doida orquestração do meu
desejo...
E quando beijo os teus
cabelos magos
Sinto que veijo a ânsia
doutro beijo...
Agora cresce a ronda dos
afagos,
Vagos e Magos -- Triunfal
cortejo!
E teus olhos-auroras são
dois lagos
Onde se espelha o teu amor,
sem pejo!...
Hóstia de carne, alçada nos
meus braços.
Num ritual bizarro, em que
os abraços
São preces ruivas de missal
antigo,
Ergo-te assim numa ascensão
de glória,
E o nosso amor é grito de
vitória
Nos meus lábios famintos de
mendigo!...
José
Castelo de Morais imprime "Névoa",
também em 1924, poema em prosa. Sua sensibilidade é tributária em parte
das correntes preparatórias do modernismo, a elas acrescentando um tom
alucinatório que comunica ligeiramente com o vertigismo dislexical de
Raul Leal, uma de suas influência no âmbito do Orpheu e
concomitantemente impregnado, ele também, de estilemas cardosianos, e de
modo muito evidente, e. g.: "Na sombra do meu Hoje vi a minha
alma antiga como um farrapo de seda, todo vincado ainda a oiro de
brosladuras",
ou adiante, "sonho heráldico vincado a ouro e glória, fugia-me, subia
[...]. Gêmeas da minha ânsia eram agora as árvores bracejando na bruma
negras". Castelo de Morais, ainda, explora as palavras em maiúsculas, de
origem símbolo-paúlicas, as correspondências horizontais e a
alterização, procedimentos visitados pelos órficos.
Manuel de
Souza Mendes Pinheiro, que utilizava o pseudônimo de Gil Vaz, traz a
lume, no mesmo ano, 'Quatro sonetos' onde o ser depara às vezes a
inexequibilidade da relação amorosa, como em "Redoma", em que entre os
amantes "pesa o silêncio como nuvem densa" e "o medo se levanta",
prenunciando um dos topoi da lírica moderna: a
incomunicabilidade; outras, como em "Amor", a entrega é um vórtice onde
os amantes se afogam como náufragos; nesses momentos Gil Vaz resvala
pelo ultrarromantismo. Será contudo com "Espectros", outro poema
incluído nesse quarteto, que o autor visitará, conquanto sem
persistência, o sensacionismo de matiz semelhante ao de Sá-Carneiro:
Inundam-se os meus olhos, onde mora
A tua sombra esfíngica de ausente,
E o teu sangue do teu sangue me devora
Este corpo em delírio eternamente.
No céu azul o sol é uma espora
D'oiro rútilo; e sabe toda a gente
Como o tempo galopa sem demora,
E o coração, que o acompanha, sente.
O tempo foge, alguma coisa fica
Que nos vem perturbar de quando em quando
Como um perfume de madeira rica.
Cego que foste, és hoje cinza e Deus;
E, ao lembrar os teus olhos, vou lembrando
As cegueiras que pairam sobre os meus!
Mário
Saa, sempre em 1924, estampa 2 poemas na revista Athena, dentre
os quais destacamos "Versos frios", 27 quadras que recordam o
coloquialismo conceitualista almadiano, com a consequente desliricização
e banalização do poema. Um trecho:
Todo o retrato pintado
é pra nós uma visão,
que pode ser ilusão
no caso de o retratado
não ser de nós conhecido;
que, quando a gente o
cohece,
o seu retrato aparece
como um retrato obtido.
Mas se a gente nunca o viu,
sobre o retrato tecemos
uma coisa que não vemos,
que pra nós nunca existiu.
Deste modo o retratado
é um vulto pressentido
mas nunca por nós sentido;
portanto pra nós errado;
que pode ser verdadeiro
ou coisa nunca existente
um nada que de
repente
existisse por inteiro;
um nada que nos
surgisse,
que a gente visse e não viu,
um vulto que se sumiu
e nunca mais se sumisse(..)
Gil Vaz
realizará, contudo, no soneto "Inverno", publicado em 1926, uma mais bem
sucedida aproximação com Orpheu, explorando aí a estesia da anulação do
eu, cuja consciência se dissipa no esquecimento pleno. Ademais,,
eis o leitor diante novamente de um discípulo de Mário de Sá-Carneiro,
cuja influência fica muito nítida nos versos dos dois tercetos:
Os calendários mentem! Afinal
Tudo morreu... E a dança de S. Vito,
Dos ramos nus, fez-te soltar um grito
Que vibrando varou todo o cristal.
Tens surpresas, és muito desigual.
Ninguém me vê alegre nem aflito:
Indiferente, apenas acredito
Que tudo nesta vida é natural.
Já me não prende a mais festiva palma.
São manequins os sonhos que desmembro
E se dissipam nesta fria calma.
Dia de crepes, luto de Novembro...
O fim do mundo, aqui, na minha alma.
-- Já não devo sofrer porque não lembro!
Por
último, assinalamos o poema "A cor dos sons", de Judith Teixeira,
impresso na Contemporânea em maio de 1926. Nele a autora acolhe a
máxima pessoana que defende que "a base de toda arte é a sensação".
Mesmo embalada por este mote, a lira da autora congemina rimas óbvias e
descamba para um tom rebarbativo de pieguismo amoroso. Registremos,
apesar disso, alguns versos:
Só ontem surpreendi
a cor dos sons
Enquanto eu dançava,
leve, grácil, turbada e
radiosa
na tua face gloriosa
acendiam-se flamas dos mais
vivos tons!
Recordo-me de notas tão
ardentes
como flavas abelhas,
Tão rúbidas e escarlates
que as curvas airosas dos
meus longos braços
lembravam-me açafates
de rosas vermelhas!
Os violinos subiam
crispando queixas
(..)
E em redor tombava,
roxamente,
a cor arrefecida
do cinzento rosmaninho
algente e maguada...
A tua cabeça heráldica
pendia
numa saudade esguia,
estilizada!
Findara tudo...
Saímos
muito enlaçadas
[...].
Depois, no silêncio morno
da minha alcova,
as minhas mãos trêmulas e
nuas,
perdidamente presas às tuas,
... luarentas e alongadas.
[...].
Já no
desfecho deste ensaio, havendo arrolado pouco mais de uma dezena de
nomes, -- na maioria das vezes, convenhamos, eventuais visitantes da
lira órfica -- podemos de imediato concluir que o Orpheu não ecoou, nos
anos que se seguiram a sua desmobilização, tão fortemente como parecia
vocacionado.
Isso se
deveu a vários fatores. O primeiro deles diz respeito às mortes trágicas
de inúmeros integrantes, de capital importância para o sucesso do
movimento, como Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Souza-Cardoso. O
segundo diz respeito ao fato que seus grandes mentores remanescentes,
como Almada e Pessoa, tomaram caminhos diversos. O último, depusera
notoriamente suas armas após a morte do melhor amigo e se voltava para a
construção e organização de sua poderosa obra poética. Almada-Negreiros,
na posição de último porta-voz do Orpheu, embora impetuoso e de
personalidade cintilante, estava absorvido pelo Futurismo; sua obra
seguia caminho diverso da de Fernando Pessoa, com quem poderia unir
forças. Há ainda um terceiro fato e que diz respeito à evicção quase que
imediata, e em massa, dos demais membros do movimento, logo após a
iminente descontinuidade da publicação da revista Orpheu:
faltavam forças de aglutinação para manter orfistas unidos que, em
decorrência disso, ou apesar disso, demandavam rumos literários menos
revolucionários e combativos. Claro está que o suicídio de Mário de
Sá-Carneiro se insere na historiografia do Orpheu como um trágico
divisor de águas. Depois de sua morte, a voz mais evidentemente
moderna, cujos relevos estéticos, em vista da forte exposição do
sujeito lírico ao feroz jogo em que se debatiam seu mundo sentimental,
de um lado, e o manejo formal para além dos padrões costumeiros do signo
poético, de outro, essa voz deixa de se manifestar (mas seus efeitos
perdurarão).
Ao
relermos estas páginas -- e convidamos o leitor a fazê-lo --, é possível
facilmente constatar em que medida Sá-Carneiro fora a referência
imediata mais incisiva do movimento no processo de rescaldo que se
seguiu imediatamente após seu passamento -- e a explicação para esse
fato é simples: a estesia de Mário era a que possuía os mais claros
relevos para o olhar menos treinado do aprendiz de modernidade, o que
não resulta em acréscimo a suas enormes qualidades poéticas, nem em
demérito àquelas de seus pares. Aliás, da mesma forma, haveremos de
concordar que a herança pessoana ocupou a cena poética portuguesa de
modo mais marcante que a de seus pares a partir da década de 30 e
depois, já se sabe, ganhou o mundo.
De
qualquer modo, fica claro que a influência do Orpheu enquanto formador
de poética se atenua muito nos primeiros anos após a interrupção da
revista que abrigou sua produção, de sorte que o orfismo teve que
esperar vários anos para ser analisado, compreendido e reabsorvido; mais
precisamente até surgir no horizonte o movimento literário que se
articularia a partir de 1927 em redor da revista Presença,
movimento este dotado de um vigor ensaístico, de uma maturidade crítica
e de um entusiasmo pela modernidade que seriam benéficos para a fixação
definitiva do momento do Orpheu na vida artística e literária de
Portugal.
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