REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

MARIA ESTELA GUEDES

 

Fernando Pessoa sem desconto

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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A "quase-autobiografia" de Fernando Pessoa, que levanta polémica em especial por parte de pessoanos e de particulares ligados ao poeta por laços familiares ou de conhecimento mais próximo, chegou-me às mãos numa tarde em que fui comprar hortaliça ao supermercado. Não era dia desses descontos formidáveis que a crise já nos ofereceu, para gritos da produção que suporta a jogada, por isso paguei o preço de capa: 25 euros. Foi o primeiro sinal de que algo fora do comum acontecia nas letras portuguesas, em que os poetas não costumam ter lugar nas livrarias, e muito menos nas grandes superfícies comerciais, ao lado dos aspiradores, dos produtos de limpeza e da roupa interior de senhora. Um tal impacto de livros vendidos aproximará o público da obra de Fernando Pessoa? Se algum dia a poesia pessoana for vendida na quantidade desta quase-autobiografia de José Paulo Cavalcanti Filho, será o feito merecedor de um suspiro de alívio, por ter chegado ao fim a crise moral e intelectual que levou o poder do dinheiro e os políticos corruptos a mergulharem a Europa, e mesmo a Terra, no estado de alerta pela sobrevivência em que nos encontramos?

O segundo motivo de estranheza, ao começar a ler, deveu-se ao estilo de discurso adotado, com o relato constituído em grande parte por citações: de um lado, a frase nem sempre alcança correção sintática, por só as aspas marcarem a passagem do discurso na terceira para a primeira pessoa; de outro, perdendo-se de vista os sinais de citação, há tendência para considerar a obra uma autobiografia do próprio autor, que é aliás o que significa o termo "autobiografia": a biografia de José Paulo Cavalcanti Filho. A sensação de se ler uma autobiografia de Cavalcanti Filho acentua-se face à intrusão de registos inusitados, como a presença de sinónimos, entre parêntesis retos, a seguir a certos vocábulos, e à necessidade de contextualizar tudo, o que leva a ocupar uma grande parte da obra com episódios da História de Portugal. Em resumo, uma autobiografia intelectual de Cavalcanti Filho impregna a biografia que traça de Fernando Pessoa.

O autor empenhou anos de investigação a coligir um gigantesco somatório de informações que no futuro serão fonte de consulta obrigatória para todos os investigadores, e fê-lo, em aparência, de forma original: ele não interpreta os textos à maneira de João Gaspar Simões, recorrendo ao conhecimento dos passos da vida de Fernando Pessoa, pelo contrário: parte dos textos para indagar se a informação neles contida corresponde a factos vividos pelo poeta. Por isso afirma que a obra é uma quase autobiografia: nos poemas, Fernando Pessoa conta a sua vida. Esta reversão dos métodos tem efeitos estranhos, e não deixa de ser tão melindrosa como a exegese psicologista, pondo em cena a questão da verdade: é verdade que no poema «Tabacaria», v.g., quando aparecem os versos «Come chocolates, pequena, come chocolates, olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates» (cito de cor, pedindo por isso ressalva para qualquer infidelidade ao texto), é verdade que a pequena que come chocolates é a nossa colaboradora, sobrinha de Fernando Pessoa, Manuela Nogueira?

Da parte do leitor distante, é porventura indiferente que seja ou não Manuela Nogueira a pequena dos chocolates. Para mim, é motivo de riso, porque acho graça, e acho graça por este e outros incidentes me religarem inesperadamente a Fernando Pessoa de uma forma familiar. Quando o poeta escreve: «Se eu casasse com a filha da minha lavadeira talvez fosse feliz», não me passaria a mim pela cabeça, se interpretasse o texto, partir para a investigação da vida do poeta a ver se acaso conseguia identificar uma lavadeira dele com filha desejável para esposa. O autor investigou e descobriu mãe e filha. E como estes há inúmeros factos poéticos que a pesquisa revelou corresponderem a realidades vividas, o que de um lado levou o autor a afirmar, num dos programas de Herman José, que neste registo de escrita o poeta não tinha imaginação, e de outro tem como consequência aproximar o discurso de Cavalcanti Filho daquele que habitualmente encontramos nas revistas de fofocas, em que os deuses passam de repente a fazer parte da nossa roda de conhecidos, dotados de pés de barro como qualquer mortal. Ai daqueles que imaginam serem santos os poetas, esperando deles o melhor dos exemplos em virtude! Para indicar melhor compreensão, há várias categorias de pessoas: heróis, santos, super-heróis, fadas e gnomos, e poetas também, não se confundindo estes com nenhum dos outros. O poeta é um ser humano apenas, por acidente pode merecer tomar-se como modelo de cidadania, mas isso não é regra geral. O Fernando Pessoa que surge no livro é uma pessoa terrivelmente infeliz. Se algo devemos pôr num pedestal é a obra que nos deixou e não a história da sua vida.

Porém nem todas as colagens de frase poética à existência são tão inócuas como as duas que dou como exemplo. Outras haverá com gravidade suficiente para ferir susceptibilidades de quem mantém relações de convivência forte com Fernando Pessoa ou sua roda de amigos, caso da família do casal de escritores António Ferro e Fernanda de Castro. Uma escusada e discutível autópsia do prémio em que Fernando Pessoa perdeu, com a Mensagem, o primeiro lugar para um autor cujo nome não fixei nunca, e que só sobrevive na literatura por causa deste episódio, contém decerto matéria, acrescentada à da presença de Fernanda de Castro entre os hipotéticos apaixonamentos do poeta, para irritar profundamente a família. Cito:

Uma quase tragédia

Incongruências nos factos, abuso nas interpretações, algumas mentiras a juntar ao que não é interessante, ou já foi escrito, e todos satisfeitos a aplaudir, a comprar, a entrevistar, a ver passar o blaguer, enfim, a festa do embuste, ou do poder económico, ou do poder político, ou das duas coisas, mais o marketing, que sei eu... Um carnaval bem pago, burlesco, (o mais vendido na feira do livro) e o sr. na tvi, na tvi 24, na sic, na sic notícias, na rtp, no sol, no destak, na tsf, na antena 1, agora nas bibliotecas escolares (o que é preocupante), depois do jornal i e do jô soares e da júlia pinheiro e da revista caras, (não encontro o link) e do herman josé (e hoje aqui, também neste blogue, oh tragédia!) enfim, insólito, dramático, um pouco vergonhoso também. Muito difícil de acompanhar.

Publicado por António Quadros Ferro em Domingo, Maio 20, 2012

http://antonioquadros.blogspot.pt/2012/05/fernando-pessoa-uma-quase-autobiografia.html

A obra vai ficar, sem dúvida, em casa de muitos curiosos e nas bibliotecas escolares. É uma tragédia? A reação depende do grau de proximidade do leitor aos factos.

Mudando totalmente de assunto: é inegável que a obra de Cavalcanti Filho tem um potencial tão grande de prender o leitor como um romance policial. Mas a que é que o leitor fica preso? À poesia pessoana ou aos pormenores infindáveis que constituiram a rotina diária do poeta? Desde as marcas de vinhos e cigarros às dívidas que contraiu e onde, mais os 127 heterónimos (número que dá vontade de rir e deve ter sido o maior erro em que incorreu na vida Fernando Pessoa), receio que nada da vida do poeta tenha ficado desconhecido (seja verdadeiro ou não). Algo porém ficou intocado: o mistério da poesia, a origem do génio deste pequeno homem que é um dos maiores poetas do mundo.

 

Britiande, 28 de maio de 2012

 

 

José Paulo Cavalcanti Filho
Fernando Pessoa, uma quase-autobiografia
A mais completa reconstituição da vida de Pessoa: as angústias, os amores, os heterónimos e a genialidade do maior poeta de língua portuguesa
Porto, Porto Editora, 2012, 712 pgs.

 

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 
 

 

 

© Maria Estela Guedes
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