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A "quase-autobiografia" de Fernando Pessoa, que
levanta polémica em especial por parte de pessoanos e de particulares ligados
ao poeta por laços familiares ou de conhecimento mais próximo, chegou-me
às mãos numa tarde em que fui comprar hortaliça ao supermercado. Não era dia
desses descontos formidáveis que a crise já nos ofereceu, para gritos da
produção que suporta a jogada, por isso paguei o preço de capa: 25 euros.
Foi o primeiro sinal de que algo fora do comum acontecia nas letras
portuguesas, em que os poetas não costumam ter lugar nas livrarias, e
muito menos nas grandes superfícies comerciais, ao lado dos aspiradores,
dos produtos de limpeza e da roupa interior de senhora. Um tal impacto
de livros vendidos aproximará o público da obra de Fernando Pessoa? Se
algum dia a poesia pessoana for vendida na quantidade desta
quase-autobiografia de José Paulo Cavalcanti Filho, será o feito
merecedor de um suspiro de alívio, por ter chegado ao fim a crise moral
e intelectual que levou o poder do dinheiro e os políticos corruptos a
mergulharem a Europa, e mesmo a Terra, no estado de alerta pela
sobrevivência em que nos encontramos?
O segundo motivo de estranheza, ao começar a ler,
deveu-se ao estilo de discurso adotado, com o relato constituído em
grande parte por citações: de um lado, a frase nem sempre alcança
correção sintática, por só as aspas marcarem a passagem do discurso na
terceira para a primeira pessoa; de outro, perdendo-se de vista os sinais de citação,
há tendência para considerar a obra uma autobiografia do próprio autor,
que é aliás o que significa o termo "autobiografia": a biografia de José
Paulo Cavalcanti Filho. A sensação de se ler uma autobiografia de
Cavalcanti Filho acentua-se face à intrusão de registos inusitados, como
a presença de sinónimos, entre parêntesis retos, a seguir a certos
vocábulos, e à necessidade de contextualizar tudo, o que leva a ocupar
uma grande parte da obra com episódios da História de Portugal. Em
resumo, uma autobiografia intelectual de Cavalcanti Filho impregna a
biografia que traça de Fernando Pessoa.
O autor empenhou anos de investigação a coligir um
gigantesco somatório de informações que no futuro serão fonte de
consulta obrigatória para todos os investigadores, e fê-lo, em
aparência, de forma original: ele não interpreta os textos à maneira de
João Gaspar Simões, recorrendo ao conhecimento dos passos da vida de
Fernando Pessoa, pelo contrário: parte dos textos para indagar se a
informação neles contida corresponde a factos vividos pelo poeta. Por
isso afirma que a obra é uma quase autobiografia: nos poemas, Fernando
Pessoa conta a sua vida. Esta reversão dos métodos tem efeitos
estranhos, e não deixa de ser tão melindrosa como a exegese
psicologista, pondo em cena a questão da verdade: é verdade que no poema
«Tabacaria», v.g., quando aparecem os versos «Come chocolates, pequena,
come chocolates, olha que não há mais metafísica no mundo senão
chocolates» (cito de cor, pedindo por isso ressalva para qualquer
infidelidade ao texto), é verdade que a pequena que come chocolates é a
nossa colaboradora, sobrinha de Fernando Pessoa, Manuela Nogueira?
Da parte do leitor distante, é porventura indiferente
que seja ou não Manuela Nogueira a pequena dos chocolates. Para mim, é
motivo de riso, porque acho graça, e acho graça por este e outros
incidentes me religarem inesperadamente a Fernando Pessoa de uma forma
familiar. Quando o poeta escreve: «Se eu casasse com a filha da
minha lavadeira talvez fosse feliz», não me passaria a mim pela cabeça,
se interpretasse o texto, partir para a investigação da vida do poeta a
ver se acaso conseguia identificar uma lavadeira dele com filha
desejável para esposa. O autor investigou e descobriu mãe e filha. E
como estes há inúmeros factos poéticos que a pesquisa revelou
corresponderem a realidades vividas, o que de um lado levou o autor a
afirmar, num dos programas de Herman José, que neste registo de
escrita o poeta não tinha imaginação, e de outro tem como consequência aproximar
o discurso de Cavalcanti Filho daquele que habitualmente encontramos nas revistas de fofocas,
em que os deuses passam de repente a fazer parte da nossa roda de
conhecidos, dotados de pés de barro como qualquer mortal. Ai daqueles
que imaginam serem santos os poetas, esperando deles o melhor dos
exemplos em virtude! Para indicar melhor compreensão, há várias
categorias de pessoas: heróis, santos, super-heróis, fadas e gnomos, e
poetas também, não se confundindo estes com nenhum dos outros. O poeta é
um ser humano apenas, por acidente pode merecer tomar-se como modelo de
cidadania, mas isso não é regra geral. O Fernando Pessoa que surge no
livro é uma pessoa terrivelmente infeliz. Se algo devemos pôr num
pedestal é a obra que nos deixou e não a história da sua vida.
Porém nem todas as colagens de frase poética à
existência são tão inócuas como as duas que dou como exemplo. Outras
haverá com gravidade suficiente para ferir susceptibilidades de quem
mantém relações de convivência forte com Fernando Pessoa ou sua roda de
amigos, caso da família do casal de escritores António Ferro e Fernanda
de Castro. Uma escusada e discutível autópsia do prémio em que Fernando
Pessoa perdeu, com a Mensagem, o primeiro lugar para um autor
cujo nome não fixei nunca, e que só sobrevive na literatura por causa deste
episódio, contém decerto matéria, acrescentada à da presença de Fernanda
de Castro entre os hipotéticos apaixonamentos do poeta, para irritar
profundamente a família. Cito:
Uma quase tragédia
Incongruências nos factos, abuso nas interpretações, algumas mentiras a
juntar ao que não é interessante, ou já foi escrito, e todos satisfeitos
a aplaudir, a comprar, a entrevistar, a ver passar o blaguer, enfim, a
festa do embuste, ou do poder económico, ou do poder político, ou das
duas coisas, mais o marketing, que sei eu... Um carnaval bem pago,
burlesco, (o mais vendido na feira do livro) e o sr. na tvi, na tvi 24,
na sic, na sic notícias, na rtp, no sol, no destak, na tsf, na antena 1,
agora nas bibliotecas escolares (o que é preocupante), depois do jornal
i e do jô soares e da júlia pinheiro e da revista caras, (não encontro o
link) e do herman josé (e hoje aqui, também neste blogue, oh tragédia!)
enfim, insólito, dramático, um pouco vergonhoso também. Muito difícil de
acompanhar.
Publicado por
António Quadros Ferro em Domingo, Maio 20, 2012
http://antonioquadros.blogspot.pt/2012/05/fernando-pessoa-uma-quase-autobiografia.html
A obra vai ficar, sem dúvida, em casa de muitos
curiosos e nas bibliotecas escolares. É uma tragédia? A reação depende
do grau de proximidade do leitor aos factos.
Mudando totalmente de assunto: é inegável que a obra
de Cavalcanti Filho tem um potencial tão grande de prender o leitor como
um romance policial. Mas a que é que o leitor fica preso? À poesia
pessoana ou aos pormenores infindáveis que constituiram a rotina diária
do poeta? Desde as marcas de vinhos e cigarros às dívidas que contraiu e
onde, mais os 127 heterónimos (número que dá vontade de rir e deve ter
sido o maior erro em que incorreu na vida Fernando Pessoa), receio que
nada da vida do poeta tenha ficado desconhecido (seja verdadeiro ou
não). Algo porém ficou intocado: o mistério da poesia, a origem do génio
deste pequeno homem que é um dos maiores poetas do mundo. |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011;
"Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira.
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