REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

 

MARCOS DA SILVA VIEIRA

Bolama, mangos e melancolia: análise do poema último da obra Chão de Papel

Trabalho apresentado na cadeira de Literatura Africana. Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2012                                          

 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
Página Principal  
Índice de Autores  
Série Anterior  
SÍTIOS ALIADOS  
TriploII - Blog do TriploV  
Apenas Livros Editora  
O Bule  
Jornal de Poesia  
Domador de Sonhos  
Agulha - Revista de Cultura  
Arte - Livros Editora  
 
 
 
  INTRODUÇÃO
 

Em O Sofrimento do Jovem Werther, o narrador fala sobre um repolho que ele comia e que o remetia não só ao gosto em si, mas ao labor do cultivo, as chuvas, o lavrar a terra, a colheita... Também assim, a literatura nos permite, além de sentir seu gosto estético, enxergar um todo que caminha num movimento infundibuliforme em direção ao texto – montante de uma vida. Logo, o texto, visto como esse funil ao contrário pode ser janela, pois permite ver o mundo que cerca as letras lapidadas. Dessa maneira, pretendemos, por meio do que no cinema chamar-se-ia zoom in, de um plano geral até um plano detalhe, encontrar os sentidos do texto de Maria Estela Guedes.

Falar de um plano geral concernente à Literatura Africana é falar de um confronto, segundo Maria Nazaré de Fonseca e Tereza Taborda Moreira (2007). Afinal, a língua na qual foi escrito o material a ser estudado adiante foi o português. O mesmo idioma que colonizou, escravizou e subjugou o povo e sua cultura; a mesma arma usada pelo algoz destrou a mão do vitimado e este produz o seu revés. Por conseguinte, a construção do texto nos levará à cultura renitente de outrora, uma escrita nostálgica e que busca emergir novamente os costumes; uma escrita que busca desnudar as roupas da modernidade que hoje se usam e que afastam o ser daquilo que ele realmente é.

A autora de Guiné-Bissau, Maria Estela Guedes nos faz ler em seu Chão de Papel, parte de uma infância que, segundo Nicolau Saião na introdução do livro, nos é comum. Um passado que teima voltar, questionar o hoje; um diálogo profundo acerca de valores de outrora que estão eclipsados pela cultura dominante. A dualidade demarca a riqueza da poética de Guedes, explorando a palavra, o oral e o escrito, a ciência e o saber atávico; sons que reverberam numa memória viva, cheiros que perduram, sensações e visões que se materializam no poema. Entrevemos uma menina, ela dialoga com o eu-lírico, adulto, científico.

E é ali, no poema, que podemos sentir a convergência temporal e cultural, a força da África, rebentando, concomitantemente, em nascimento e morte. A vida de antanho desvela, pela reminiscência, que ainda existe, mesmo que latente. A escrita é doença e remédio: tem-se a lembrança tépida da infância, mas também a consciência de sua irreversibilidade; é ao mesmo tempo forma de manter viva a memória. Mas tudo isso é feito com o uso da escrita numa cultura antes oral, numa língua diferente da de outrora: o dialogismo desses conflitos abrigados no Chão de Papel.

   
  CONTEXTO
 

Falar de África, assim como falar de Brasil, é perceber um processo de colonização de anos e que deixou cicatrizes profundas na formação das nações de hoje. Segundo AUGEL (2007), mesmo chamar de nação é algo ainda muito delicado, pois a identidade de cada país ainda foi muito pouco discutida. A Literatura, portanto, inicia essa construção de uma identidade nacional. O tribalismo, pensamento no qual o povo vivia até antes da colonização, ainda está bastante vivo no continente, como podemos perceber na obra Mayombe, de Pepetela. Ou seja, é preciso, além de tudo, conviver com essas diferenças de tribos (historicamente bastante hostis) para a formação de uma unidade nacional.

Diferente do Brasil, o povo africano conseguiu manter fortes traços de sua cultura, a despeito da colonização portuguesa que, segundo Darcy Ribeiro, era de extrema exploração e subjugação. No entanto, de acordo com SANTILLI (1985), só a partir do século XIX que a África passou a "receber os influxos de fora". A Literatura então se instrumentou dessa História esfacelada pelo período exploratório e por diversas guerras, além de servir de arcabouço cultural, numa contrainvestida aos reflexos da dominação:

"Em nossos países descolonizados, a memória coletiva e a identidade nacional estão enredadas no trauma colonial. A ocupação das terras africanas pelos poderes colonialistas desmantelou as estruturas sociais existentes, embaralhou os sistemas de referências, aniquilou as bases culturais do continente africano, além de ter provocado imensas perdas de vidas e de valores materiais. O maniqueísmo que regeu as relações assimétricas de séculos de confrontação deixou cicatrizes indeléveis. A opressão gerou a reação anticolonial, as lutas libertárias criaram uma nova espécie humana, teimosa e insistente. A descolonização não passa jamais desapercebidas, diz Frantz Fanon, pois ela modifica totalmente o ser humano, transforma vítimas esmagas em seres de ações, promove os ‘últimos’ a ‘primeiros’." (AUGEL, 2007. p.21)

A forma em que se configura a escrita em Guiné-Bissau e outros países africanos "expressava a tensão existente entre dois mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar uma escrita europeia, era um ‘homem-de-dois-mundos’." (FONSECA e MOREIRA, 2007). Tal confronto se estabelece na própria incongruência de se tentar

salvaguardar uma cultura oral por meio da escrita. Isso, porém não se dá de forma pacífica: a África se mostra na forma, subversão estrutural e de significantes, as línguas autóctones mescladas ao português; ou como se expressa Manuel Rui:

Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão, desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar ao contra o teu texto não na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me agride. Afinal assim identifico-me sempre eu/até posso ajudar-te à busca de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho/em vez de seres outro. (RUI, 1987)

No intento de "exterminar" essa "parte que agride", usando as palavras de Manuel Rui, o escritor africano, consequentemente, deixa um espaço em aberto, um vão preenchido pelo colonizador que inibia o colonizado a mostrar. Esse lugar a ser ocupado é a parte que precisa ser construída numa nação. AUGEL (2007) cita partes constitutivas da História de países como Alemanha, França e mesmo o Brasil. No entanto, como alicerçar uma casa já de pé sem derrubá-la? Afinal, sem a estrutura primeira, fica-se a mercê a intempérie pela fragilidade. A independência recente de Guiné-Bissau gerou a necessidade de se construir essa História, e nessa difícil empresa a arte tem convergido para o antigo: a herança oral; e para a aproximação do povo marginalizado, dando voz a ele:

A incontornável e dolorosa história de opressão transparece pelo tecido literário guineense, interligado às práticas de resistência e à arquitetação do futuro. Buscam-se o sagrado e a tradição ancestral. Os mitos e os símbolos das culturas abafadas ressurgem com uma vitalidade e são convocados sem subterfúgios as forças espirituais e os entes protetores. E convincente a solidariedade sentida pelos subalternos, a empatia pelos marginalizados ou socialmente desfavorecido. É onipresente e polissêmica a repulsa ao status quo vigente, a denúncia contra os abusos do poder. (AUGEL, 2007. p.21-22)

   
  DA AUTORA À OBRA
 

Maria Estela Pinto de Almeida Guedes nasceu em Lamego, Portugal, em 21 de Maio de 1947. Licenciou-se em Literatura pela Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa. Autora de várias obras e diretora do site TriploV, teve, no tempo que morou em Guiné-Bissau, a matéria-prima para o livro Chão de Papel. A origem da escritora em si já seria um conflito inicial no ambiente: sangue colonizador na terra colonizada. No entanto, longe de reafirmar ideias, a autora estabelece um belíssimo diálogo com esse tempo que ela vivera. O eu-lírico se dirige a alguém localizado no passado, um ser da reminiscência acalentadora da infância. Assim, com essa interação, encontramos várias dicotomias que estabelecem a tensão advinda dessa "dupla nacionalidade": a cultura europeia e a africana, o adulto e a criança, narrar ou sentir etc.

Sentir. Chão de Papel remete primeiramente a um lugar: a tribo dos Papéis, em Bissau, ou seja, sente-se o concreto da palavra que nomeia, mas também "é um trocadilho" segundo Nicolau Saião, "um simbolismo feliz". O lugar no qual se inicia um viagem pelo interior de um povo, também é uma folha de papel em branco, espaço de criação e provocação à verve e às lembranças que pedem para serem derramadas ali. Sentir então passa a ser rico, pois engloba a infância comum de todos que nos faz voltar, num dialogismo memorial, e porque nos traz sons, cheiros, imagens de uma vida que está mais próxima do que se imaginava.

O POEMA

BOLAMA

(Maria Estela Guedes)

1. Voltar à Guiné

2. Bissau, a nuvem de morcegos

3. Seguindo o velho vapor

4. De bancos de madeira corridos

5. Até à ilha entre ilhas

6. Bolama

7. A saber a mangos e a melancolia

8. A praia lenta e morna a rodear-te a fatito

9. De banho vermelho.

10. Não tinhas mamas, pernas nem nada

11. Uma criança apenas

12. Com um caracol comprido

 

13. A cair a cada lado da cara

14. As amigas de então – Pelete se chamavam –

15. Voltaste a vê-las mais tarde

16. E era como se não tivésseis atravessado juntas

17. A adolescência, o Geba e o Atlântico

18. Na direção do mítico arquipélago

19. Dos Bijagós

20. Até Bolama, a ilha

21. A saber a mangos e melancolia

22. Quem ousaria sonhar com férias, praia, hotéis?

23. Nem tal devia existir em Bolama.

24. Talvez uma pensãozinha barata

25. Para passardes a noite, lembra,

26. Éreis tantos

27. Decerto o dono fez desconto,

28. Já a maior parte deles morreu

29. Como o senhor tinha nome de rei mago, como era?

30. – Melchior

31. E morreu de noite, na estrada, a caminho de Bafatá, onde

32. Morava

33. Um acidente

34. Travou de repente a carrinha

35. Era noite e não via nada

36. Talvez um bando de macacos o tivesse assustado

37. Ou talvez não

38. Talvez soldados tivessem disparado

39. De um lado eram tugas

40. E turras do outro lado

41. Isso aconteceu no entanto

42. Anos depois da ida a

43. Bolama, a ilha

44. A saber a mango e a melancolia

45. Os colegas de liceu que desapareciam

46. E então sussurrava-se

47. A boca encostada à orelha

 

48. Tinham fugido para o mato

49. Tinham ido para a luta

50. A luta no lado dos turras

51. Pode ter sido isso ou um bando de macacos

52. Ele travou, e então um tampo pesado de mármore

53. Para mesa de cozinha

54. Que levava atrás

55. Deslizou para cima do volante

56. E esmagou-o, ao senhor Melchior

57. Dentro da noite e da carrinha

58. O senhor Melchior

59. Tinha tido uma moto de atrelado à banda

60. E óculos grandes de aviador

61. E certa vez arrancara em jeito febril acrobata

62. Deixando a mulher em terra

63. A Dona Mariazinha

64. Mal agarrada atrás dele

65. Pela cintura

66. Porém isso acontecera

67. Em época anterior ainda à viagem seguida por um bando

68. De morcegos

69. Até Bolama, a ilha

70. A saber a mangos e a melancolia

71. E o filho também, o Necas,

72. Excelente rapaz,

73. Atrasado um pouco, mentalmente,

74. O que não tinha grande importância

75. Importância tinha a saliva que lhe babava

76. As comissuras da boquinha tenra de jarro

77. Foste com ele num agosto de férias grandes

78. Na ambulância vermelha a abarrotar de balaios

79. Galinhas e porcos no tejadilho

80. E dentro dela

81. As gentes chacoalhando

82. Brancas e pretas aos saltos nos assentos

 

83. E como ele e elas empurraste a lataria vermelha

84. Para ultrapassar os barrancos

85. Que as chuvas haviam cavado

86. Na terra batida da estrada.

87. Isto num tempo que não havia guerra

88. Anterior à viagem de barco

89. Até à ilha entre ilhas

90. Bocama

91. A saber a mangos e a melancolia.

92. Nesse tempo em que para dois adolescentes

93. O perigo maior era perdeste o lanche

94. Ou a lancha, em Mansoa, a atravessar o rio

95. Pois nunca ali construíram ponte.

96. Também morreu, Necas.

97. Três famílias a passar o fim-de-semana

98. Na praia

99. Em Bolama

100. As casinhas rasas à beira de água,

101. Com um sorriso de madeira pintada

102. A vermelho e amarelo

103. Descascada o bastante para ganhar a patina

104. Da pobreza aconchegante e

105. A água estagnada como bolanha

106. Nem uma vaga na praia

107. Podíeis caminhar pelo mar adentro infinitamente

108. Sem perder o pé

109. Dois dedos de água sobre a vasa

110. À espera de ser plantada com arroz

111. Esses tempos de outrora

112. Ai, são espumas a escorrer dos cabelos..

113. A memória, molhada e tépida, como bivalves

114. Nos pés

115. Espera a sua morte como se tivesse o tempo todo

116. À frente para nele se banhar em incneso

117. Era ali que devias ser sepulta

118. Com tua carga de afectos e ondas pesadas

 

119. As lembranças

120. O coração fechado num búzio

121. A murmurar palavras sabe ao ouvido

122. Era ali

123. No fundo das águas a tocar

124. O lodo verde e menstrual do Geba...

125. Vai morrer à Guiné se te apraz

126. Num dia de neblina fria sobre as águas

127. Na linha imperceptível que separa a lua

128. Da luz

129. Vogando para o Oriente Eterno

130. Na barca de Rá

131. Depois de passar pela ilha entre ilhas

132. Bolama

133. A saber a mangos e a melancolia.

   
  ANÁLISE
 

O poema supracitado encerra o ciclo do livro, seu título, Bolama, já nos leva a um lugar. Bolama é uma cidade litorânea, uma "ilha entre ilhas", como o próprio poema sugere. "Voltar", na linha 1, já é um convite à ir a um lugar antes já visitado. Ou seja, estamos nos localizando num passado a ser rememorado pelo eu-lírico. O meio pelo qual somos entronizados nesse lugar de outrora é o "velho vapor/ De bancos de madeira corridos". O vapor representa algo trazido pela colônia e é por ele que o eu-lírico se dirige à ilha.

Inseridos nesse transporte, por meio de uma narração, somos enviesados pelo sentimento do eu-lírico acerca de Bolama: "A saber a mangos e a melancolia". Poder-se-iam citar duas dicotomias presentes já inicialmente: a narrar x sentir, pois é pelo sentir que o existe um "eu" que sente e que demonstra sua forma de sentir; o sentimento me se afigura na próxima oposição, adulto x criança, a alegria e tristeza representados por "mangos" e "malancolia". Essas duas palavras podem ser lidas como metáforas, respectivamente de um lugar que traz a alegria de tempos, como uma fruta doce e reluzente, e a tristeza de sua irreversibilidade, a impossibilidade de viver aquilo novamente. Seria uma interessante definição de nostalgia: tristeza e alegria, "A saber a mangos e a melancolia".

Na linha 8, identificamos a presença de um "tu". A memória, de tão viva, se personificou num interlocutor, uma "criança apenas". Ao imiscuir-se nessa reminiscência, pela sinestesia, sentimos e vemos a "praia lenta e morna": uma lembrança agradável que se desenha aos olhos do eu-lírico (e aos nossos), a ponto de ela se confundir com a menina. Isso se apreende no narrar, ora adulto, ora infantil, capaz de ver os cabelos como "um caracol comprido/ a cair de cada lado da cara". Criada a interlocutora, o eu-lírico passa a compartilhar fatos e pessoas de antanho. Há na nostalgia de lembrar uma nuvem de tristeza, pois evidencia que as coisas mudaram, talvez "as amigas de então", talvez o próprio eu-lírico, pois "era como se não tivésseis atravessado juntas/ a adolescência". Afinal, ao olhar para si no passado, como menina, isso já é uma constatação de algo sem volta; e é exatamente "voltar" a primeira palavra do poema e que volta na linha 15, dirigindo-se ao "tu", o que corrobora a tentativa de reviver algo ao "vê-las [as amigas] mais tarde" ou mesmo ao voltar a Bolama. O encontro do acalanto de outrora e a clarividência da mudança nos leva de volta à definição da ilha: "a saber a mangos e a melancolia".

A próxima estrofe começa com uma pergunta e nela a configuração do conflito entre sua vida atual e a passada. "Sonhar com férias" em sua infância não faria sentido, no mundo África que ela viveu; hoje, é o que se sonha. Ao questionar, o eu-lírico responde, diligenciosamente, narrando. Mas eis que no meio do narrar ela se imiscui no fato e volta a conversar com o "tu", pedindo que o tu se lembre com ela. Chegamos em "uma pensãozinha", há mais gente ali; parece uma lembrança agradável. O eu-lírico, porém, traz uma informação que quebra a catarse da lembrança, um fato depois ocorrido, que distancia o passado: "já a maior parte deles morreu". Isso também mostra que a vida naquele lugar não foi privilégio dela somente, existiu outrem, mas não existem mais. Mais uma pergunta, esta porém a ser respondida no discurso direto, como se ouvíssemos mesmo a voz dizer. O nome dito, o dono da tal "pensãozinha", Melchior, nos remete a outra cultura, à cultura do colonizador, católica. Também morto, contudo morto no caminho da cidade, Bafatá, que é sinônimo daquilo que Portugal trouxe. Morreu à noite, não se sabe bem como, mas há hipóteses, e nelas a evidenciação de um conflito existente entre "tugas", portugueses, e "turras", terroristas. O eu-lírico conta, como quando encontramos um velho conhecido, narra o que aconteceu com Melchior "anos depois da ida a Bolama". É como se ao reviver uma lembrança, o eu-lírico sentisse a necessidade de enterrá-la novamente, usando da morte como instrumento para

isso (apesar de parecer redundante): amiúde do movimento afigurado no refrão "a mangos e a melancolia".

Na estrofe subsequente, notamos que, ao fazer a digressão sobre a morte de Melchior, o poema segue da direção do confronto supracitado. É quando "os colegas de liceu desapareciam". Cochichava-se sobre as razões dos desaparecimentos, ou seja, não se falava disso abertamente, mas "a boca encostada à orelha", numa sinestesia irresistível que nos faz quase sentir o tato da boca com sua respiração quente no ouvido, a respiração alterada do segredo a ser contado. Existia uma luta que atraía os jovens de então, a luta contra os "tugas". Cabe também observar que a palavra "liceu", a ideia de aprender em uma escola foi algo trazido pelo colonizador, portanto o conhecimento que ali se impunha era o viés europeu. Portanto, ao dizer "um bando de macacos", o eu-lírico expressa a fala do colonizador, uma fala pejorativa, acerca de grupos que lutavam então. O narrador volta ao Melchior com um belíssimo eufemismo da morte: "então um tampo pesado de mármore/ para mesa de cozinha/ que levava atrás/ deslizou para cima do volante/ e esmagou-o, ao senhor Melchior/ dentro da noite e da carrinha", como se, ao morrer ali, o homem já fosse enterrado em sua lápide.

E é em Melchior que se continua, numa narrativa não cronológica. O eu-lírico compartilha de estórias ouvidas acerca do dono da pensão, num tempo anterior à sua chegada. O homem também fora jovem, cheio de sonhos e vigor, no entanto morrera, ali, no meio do caminho. A lembrança do eu-lírico é sempre seguida "por um bando/ de morcegos", uma nuvem obscura que metaforizam a morte das coisas. Ou seja, a vida de Melchior, feliz e vigorosa, é anterior à obscuridade da chegada dos morcegos. O filho, Necas, revela a importância das aparências para sociedade que veio, pois pouco importava que fosse "atrasado um pouco, mentalmente", mas aquilo que ele aparentava. Nesse momento, a figura do "tu" volta para compartilhar uma vivência com o eu-lírico com Neco, a andar de ônibus e ser chacoalhados, a ver que todos usavam o transporte, gente "brancas e pretas", e suas vicissitudes: empurrar "a lataria vermelha/ para ultrapassar os barrancos/ que as chuvas haviam cavado/ na terra batida da estrada". Depois de deleitar-se na narração, o eu-lírico volta relembrar que esse tempo já passou, "tempo em que não havia guerra", dizendo dos perigos de outrora que eram perder uma coisa ou outra no caminho à ilha.

Na última estrofe temos mais uma vez a morte de uma lembrança, a de Neca, e uma nova surgindo. O fato narrado agora é o um "fim-de-semana/ na praia", num lugar pobre, de "casinhas rasas à beira da praia". A personificação do objeto, dando-lhe características humanas é usada para descrever a casa, mostrar a simplicidade das casas "com um sorriso de madeira pintada/ a vermelho e amarelo/ descascada o bastante para ganhar a patina da pobreza aconchegante". Longe de eivar de tristeza a pobreza de outrora, o eu-lírico tem carinho por aquela reminiscência demonstrado pela sinestesia, o aconchego da pobreza. Naquele terreno encharcado do litoral tão comum para o plantio de arroz, "bolanha", o "tu" volta para caminhar e molhar os pés no mar, numa água translúcida que permitia anda "sem perder o pé". O eu-lírico se delicia de tal lembrança até que a realidade lhe preme: como é dolorida a irreversibilidade da vida. Vida essa metaforizada por algo a escorrer nos cabelos: no início ao fim, escorrendo até as pontas e depois se perdendo. As lembranças também ganham, na sinestesia, proximidade com a pele "molhada e tépida", e mais: torna-se um oásis da vida, um lugar no qual retornaremos como em um recomeço. Os pés, esse ponto a ser olhado, envolto em conchas, molhados no lugar do tempo, onde "devias ser sepulta", o "tu" e o eu se confundem num desejo único de voltar, mas voltar de maneira perene: a perenidade da morte. As lembranças como "ondas pesadas" a ir e voltar na mente, pedindo uma entrega, um lançar nas águas, apontando para um lugar que não mais é: "era ali". O ponto de vida no fundo do Geba, onde os pés chafurdam num "lodo verde e menstrual" – o paradoxo formado com isso remonta vida e morte convergindo para a mesma direção, num convite ao tu à morte.

O final do poema traz imagens, metáforas que nos imergem numa paisagem noturna, sinestesia que provoca e evoca o "frio", introduzindo-nos na noite, num ponto para o qual nos dirigimos com o eu-lírico, a se perder nos pensamentos em direção à "linha imperceptível que separa a lua/ da luz". O "tu" intermitente na narrativa, desaparece numa imagem que se vai desvanecendo no "Oriente Eterno", a caminho do sol representado pela figura de Rá, deus mitológico egípcio. A tristeza dessas imagens constroem uma representação da cidade de Bolama para o eu-lírico, na última palavra do poema que, percebe-se, ser o que resta a ela no presente: "a melancolia". A saber: passado "a mangos" e presente "a melancolia".

   
  REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
 

AUGEL, Moreira Parente. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura de Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamound, 2007.

GUEDES, Maria Estela. Chão de Papel. Lisboa: Apenas Livros, 2009.

MOREIRA, Terezinha Taborda.; FONSECA Maria Nazareth Soares. Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa. Caderno CESPUC de Pesquisa. Série Ensaios, 2007.

RUI, Manuel. Eu e o outro – O invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o texto. In MEDINA, Cremilda. Sonha Mamana África. São Paulo: Epopeia, 1987.

SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias Africanas: História e Antologia. São Paulo: Ática, 1985).

http://www.triplov.com

 

 

 

 

Marcos Vieira tem 27 anos, nasceu em São Paulo. Formado em Realização
Cinematográfica em 2006 pela Academia Internacional de Letras, atualmente cursa Letras na Universidade Nove de Julho. Além da presente publicação, publicou em 2012 o livro *Manual de Sobrevivência no Metrô.
*Ademais, alimenta o blog: *http://oseutoba.blogspot.com.br, *com crônicas
e notas.
e-mail:
marcos.marcosvieira@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL