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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 28 | junho | 2012
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MARCOS DA SILVA VIEIRA
Bolama, mangos e melancolia:
análise do poema último da obra
Chão de Papel |
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Trabalho apresentado na cadeira de
Literatura Africana. Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2012 |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Índice de Autores |
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SÍTIOS ALIADOS |
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Agulha - Revista
de Cultura |
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Arte - Livros Editora |
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INTRODUÇÃO |
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Em O Sofrimento do Jovem Werther, o narrador
fala sobre um repolho que ele comia e que o remetia não só ao gosto em
si, mas ao labor do cultivo, as chuvas, o lavrar a terra, a colheita...
Também assim, a literatura nos permite, além de sentir seu gosto
estético, enxergar um todo que caminha num movimento infundibuliforme em
direção ao texto – montante de uma vida. Logo, o texto, visto como esse
funil ao contrário pode ser janela, pois permite ver o mundo que cerca
as letras lapidadas. Dessa maneira, pretendemos, por meio do que no
cinema chamar-se-ia zoom in, de um plano geral até um plano
detalhe, encontrar os sentidos do texto de Maria Estela Guedes.
Falar de um plano geral concernente à Literatura
Africana é falar de um confronto, segundo Maria Nazaré de Fonseca e
Tereza Taborda Moreira (2007). Afinal, a língua na qual foi escrito o
material a ser estudado adiante foi o português. O mesmo idioma que
colonizou, escravizou e subjugou o povo e sua cultura; a mesma arma
usada pelo algoz destrou a mão do vitimado e este produz o seu revés.
Por conseguinte, a construção do texto nos levará à cultura renitente de
outrora, uma escrita nostálgica e que busca emergir novamente os
costumes; uma escrita que busca desnudar as roupas da modernidade que
hoje se usam e que afastam o ser daquilo que ele realmente é.
A autora de Guiné-Bissau, Maria Estela Guedes nos faz
ler em seu Chão de Papel, parte de uma infância que, segundo
Nicolau Saião na introdução do livro, nos é comum. Um passado que teima
voltar, questionar o hoje; um diálogo profundo acerca de valores de
outrora que estão eclipsados pela cultura dominante. A dualidade demarca
a riqueza da poética de Guedes, explorando a palavra, o oral e o
escrito, a ciência e o saber atávico; sons que reverberam numa memória
viva, cheiros que perduram, sensações e visões que se materializam no
poema. Entrevemos uma menina, ela dialoga com o eu-lírico, adulto,
científico.
E é ali, no poema, que podemos sentir a convergência
temporal e cultural, a força da África, rebentando, concomitantemente,
em nascimento e morte. A vida de antanho desvela, pela reminiscência,
que ainda existe, mesmo que latente. A escrita é doença e remédio:
tem-se a lembrança tépida da infância, mas também a consciência de sua
irreversibilidade; é ao mesmo tempo forma de manter viva a memória. Mas
tudo isso é feito com o uso da escrita numa cultura antes oral, numa
língua diferente da de outrora: o dialogismo desses conflitos abrigados
no Chão de Papel. |
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CONTEXTO |
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Falar de África, assim como falar de Brasil, é
perceber um processo de colonização de anos e que deixou cicatrizes
profundas na formação das nações de hoje. Segundo AUGEL (2007), mesmo
chamar de nação é algo ainda muito delicado, pois a identidade de cada
país ainda foi muito pouco discutida. A Literatura, portanto, inicia
essa construção de uma identidade nacional. O tribalismo, pensamento no
qual o povo vivia até antes da colonização, ainda está bastante vivo no
continente, como podemos perceber na obra Mayombe, de Pepetela.
Ou seja, é preciso, além de tudo, conviver com essas diferenças de
tribos (historicamente bastante hostis) para a formação de uma unidade
nacional.
Diferente do Brasil, o povo africano conseguiu manter
fortes traços de sua cultura, a despeito da colonização portuguesa que,
segundo Darcy Ribeiro, era de extrema exploração e subjugação. No
entanto, de acordo com SANTILLI (1985), só a partir do século XIX que a
África passou a "receber os influxos de fora". A Literatura então se
instrumentou dessa História esfacelada pelo período exploratório e por
diversas guerras, além de servir de arcabouço cultural, numa
contrainvestida aos reflexos da dominação:
"Em nossos países descolonizados, a memória coletiva
e a identidade nacional estão enredadas no trauma colonial. A ocupação
das terras africanas pelos poderes colonialistas desmantelou as
estruturas sociais existentes, embaralhou os sistemas de referências,
aniquilou as bases culturais do continente africano, além de ter
provocado imensas perdas de vidas e de valores materiais. O maniqueísmo
que regeu as relações assimétricas de séculos de confrontação deixou
cicatrizes indeléveis. A opressão gerou a reação anticolonial, as lutas
libertárias criaram uma nova espécie humana, teimosa e insistente. A
descolonização não passa jamais desapercebidas, diz Frantz Fanon, pois
ela modifica totalmente o ser humano, transforma vítimas esmagas em
seres de ações, promove os ‘últimos’ a ‘primeiros’." (AUGEL, 2007. p.21)
A forma em que se configura a escrita em Guiné-Bissau
e outros países africanos "expressava a tensão existente entre dois
mundos e revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar uma
escrita europeia, era um ‘homem-de-dois-mundos’." (FONSECA e MOREIRA,
2007). Tal confronto se estabelece na própria incongruência de se tentar
salvaguardar uma cultura oral por meio da escrita.
Isso, porém não se dá de forma pacífica: a África se mostra na forma,
subversão estrutural e de significantes, as línguas autóctones mescladas
ao português; ou como se expressa Manuel Rui:
Mas agora sinto vontade de me apoderar do teu canhão,
desmontá-lo peça a peça, refazê-lo e disparar ao contra o teu texto não
na intenção de o liquidar mas para exterminar dele a parte que me
agride. Afinal assim identifico-me sempre eu/até posso ajudar-te à busca
de uma identidade em que sejas tu quando eu te olho/em vez de seres
outro. (RUI, 1987)
No intento de "exterminar" essa "parte que agride",
usando as palavras de Manuel Rui, o escritor africano, consequentemente,
deixa um espaço em aberto, um vão preenchido pelo colonizador que inibia
o colonizado a mostrar. Esse lugar a ser ocupado é a parte que precisa
ser construída numa nação. AUGEL (2007) cita partes constitutivas da
História de países como Alemanha, França e mesmo o Brasil. No entanto,
como alicerçar uma casa já de pé sem derrubá-la? Afinal, sem a estrutura
primeira, fica-se a mercê a intempérie pela fragilidade. A independência
recente de Guiné-Bissau gerou a necessidade de se construir essa
História, e nessa difícil empresa a arte tem convergido para o antigo: a
herança oral; e para a aproximação do povo marginalizado, dando voz a
ele:
A incontornável e dolorosa história de opressão
transparece pelo tecido literário guineense, interligado às práticas de
resistência e à arquitetação do futuro. Buscam-se o sagrado e a tradição
ancestral. Os mitos e os símbolos das culturas abafadas ressurgem com
uma vitalidade e são convocados sem subterfúgios as forças espirituais e
os entes protetores. E convincente a solidariedade sentida pelos
subalternos, a empatia pelos marginalizados ou socialmente
desfavorecido. É onipresente e polissêmica a repulsa ao status quo
vigente, a denúncia contra os abusos do poder. (AUGEL, 2007.
p.21-22) |
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DA AUTORA À OBRA |
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Maria Estela Pinto de Almeida Guedes nasceu em
Lamego, Portugal, em 21 de Maio de 1947. Licenciou-se em Literatura pela
Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. Autora de várias obras e diretora do site
TriploV, teve, no tempo que morou em Guiné-Bissau, a matéria-prima para
o livro
Chão de Papel. A origem da
escritora em si já seria um conflito inicial no ambiente: sangue
colonizador na terra colonizada. No entanto, longe de reafirmar ideias,
a autora estabelece um belíssimo diálogo com esse tempo que ela vivera.
O eu-lírico se dirige a alguém localizado no passado, um ser da
reminiscência acalentadora da infância. Assim, com essa interação,
encontramos várias dicotomias que estabelecem a tensão advinda dessa
"dupla nacionalidade": a cultura europeia e a africana, o adulto e a
criança, narrar ou sentir etc.
Sentir.
Chão de Papel remete
primeiramente a um lugar: a tribo dos Papéis, em Bissau, ou seja,
sente-se o concreto da palavra que nomeia, mas também "é um trocadilho"
segundo Nicolau Saião, "um simbolismo feliz". O lugar no qual se inicia
um viagem pelo interior de um povo, também é uma folha de papel em
branco, espaço de criação e provocação à verve e às lembranças que pedem
para serem derramadas ali. Sentir então passa a ser rico, pois engloba a
infância comum de todos que nos faz voltar, num dialogismo memorial, e
porque nos traz sons, cheiros, imagens de uma vida que está mais próxima
do que se imaginava.
O POEMA
BOLAMA
(Maria Estela Guedes)
1. Voltar à Guiné
2. Bissau, a nuvem de morcegos
3. Seguindo o velho vapor
4. De bancos de madeira corridos
5. Até à ilha entre ilhas
6. Bolama
7. A saber a mangos e a melancolia
8. A praia lenta e morna a rodear-te a fatito
9. De banho vermelho.
10. Não tinhas mamas, pernas nem nada
11. Uma criança apenas
12. Com um caracol comprido
13. A cair a cada lado da cara
14. As amigas de então – Pelete se chamavam –
15. Voltaste a vê-las mais tarde
16. E era como se não tivésseis atravessado juntas
17. A adolescência, o Geba e o Atlântico
18. Na direção do mítico arquipélago
19. Dos Bijagós
20. Até Bolama, a ilha
21. A saber a mangos e melancolia
22. Quem ousaria sonhar com férias, praia, hotéis?
23. Nem tal devia existir em Bolama.
24. Talvez uma pensãozinha barata
25. Para passardes a noite, lembra,
26. Éreis tantos
27. Decerto o dono fez desconto,
28. Já a maior parte deles morreu
29. Como o senhor tinha nome de rei mago, como era?
30. – Melchior
31. E morreu de noite, na estrada, a caminho de
Bafatá, onde
32. Morava
33. Um acidente
34. Travou de repente a carrinha
35. Era noite e não via nada
36. Talvez um bando de macacos o tivesse assustado
37. Ou talvez não
38. Talvez soldados tivessem disparado
39. De um lado eram tugas
40. E turras do outro lado
41. Isso aconteceu no entanto
42. Anos depois da ida a
43. Bolama, a ilha
44. A saber a mango e a melancolia
45. Os colegas de liceu que desapareciam
46. E então sussurrava-se
47. A boca encostada à orelha
48. Tinham fugido para o mato
49. Tinham ido para a luta
50. A luta no lado dos turras
51. Pode ter sido isso ou um bando de macacos
52. Ele travou, e então um tampo pesado de mármore
53. Para mesa de cozinha
54. Que levava atrás
55. Deslizou para cima do volante
56. E esmagou-o, ao senhor Melchior
57. Dentro da noite e da carrinha
58. O senhor Melchior
59. Tinha tido uma moto de atrelado à banda
60. E óculos grandes de aviador
61. E certa vez arrancara em jeito febril acrobata
62. Deixando a mulher em terra
63. A Dona Mariazinha
64. Mal agarrada atrás dele
65. Pela cintura
66. Porém isso acontecera
67. Em época anterior ainda à viagem seguida por um
bando
68. De morcegos
69. Até Bolama, a ilha
70. A saber a mangos e a melancolia
71. E o filho também, o Necas,
72. Excelente rapaz,
73. Atrasado um pouco, mentalmente,
74. O que não tinha grande importância
75. Importância tinha a saliva que lhe babava
76. As comissuras da boquinha tenra de jarro
77. Foste com ele num agosto de férias grandes
78. Na ambulância vermelha a abarrotar de balaios
79. Galinhas e porcos no tejadilho
80. E dentro dela
81. As gentes chacoalhando
82. Brancas e pretas aos saltos nos assentos
83. E como ele e elas empurraste a lataria vermelha
84. Para ultrapassar os barrancos
85. Que as chuvas haviam cavado
86. Na terra batida da estrada.
87. Isto num tempo que não havia guerra
88. Anterior à viagem de barco
89. Até à ilha entre ilhas
90. Bocama
91. A saber a mangos e a melancolia.
92. Nesse tempo em que para dois adolescentes
93. O perigo maior era perdeste o lanche
94. Ou a lancha, em Mansoa, a atravessar o rio
95. Pois nunca ali construíram ponte.
96. Também morreu, Necas.
97. Três famílias a passar o fim-de-semana
98. Na praia
99. Em Bolama
100. As casinhas rasas à beira de água,
101. Com um sorriso de madeira pintada
102. A vermelho e amarelo
103. Descascada o bastante para ganhar a patina
104. Da pobreza aconchegante e
105. A água estagnada como bolanha
106. Nem uma vaga na praia
107. Podíeis caminhar pelo mar adentro infinitamente
108. Sem perder o pé
109. Dois dedos de água sobre a vasa
110. À espera de ser plantada com arroz
111. Esses tempos de outrora
112. Ai, são espumas a escorrer dos cabelos..
113. A memória, molhada e tépida, como bivalves
114. Nos pés
115. Espera a sua morte como se tivesse o tempo todo
116. À frente para nele se banhar em incneso
117. Era ali que devias ser sepulta
118. Com tua carga de afectos e ondas pesadas
119. As lembranças
120. O coração fechado num búzio
121. A murmurar palavras sabe ao ouvido
122. Era ali
123. No fundo das águas a tocar
124. O lodo verde e menstrual do Geba...
125. Vai morrer à Guiné se te apraz
126. Num dia de neblina fria sobre as águas
127. Na linha imperceptível que separa a lua
128. Da luz
129. Vogando para o Oriente Eterno
130. Na barca de Rá
131. Depois de passar pela ilha entre ilhas
132. Bolama
133. A saber a mangos e a melancolia. |
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ANÁLISE |
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O poema supracitado encerra o ciclo do livro, seu
título,
Bolama, já nos leva a um lugar.
Bolama é uma cidade litorânea, uma "ilha entre ilhas", como o próprio
poema sugere. "Voltar", na linha 1, já é um convite à ir a um lugar
antes já visitado. Ou seja, estamos nos localizando num passado a ser
rememorado pelo eu-lírico. O meio pelo qual somos entronizados nesse
lugar de outrora é o "velho vapor/ De bancos de madeira corridos". O
vapor representa algo trazido pela colônia e é por ele que o eu-lírico
se dirige à ilha.
Inseridos nesse transporte, por meio de uma narração,
somos enviesados pelo sentimento do eu-lírico acerca de Bolama: "A saber
a mangos e a melancolia". Poder-se-iam citar duas dicotomias presentes
já inicialmente: a narrar x sentir, pois é pelo sentir que o existe um
"eu" que sente e que demonstra sua forma de sentir; o sentimento me se
afigura na próxima oposição, adulto x criança, a alegria e tristeza
representados por "mangos" e "malancolia". Essas duas palavras podem ser
lidas como metáforas, respectivamente de um lugar que traz a alegria de
tempos, como uma fruta doce e reluzente, e a tristeza de sua
irreversibilidade, a impossibilidade de viver aquilo novamente. Seria
uma interessante definição de nostalgia: tristeza e alegria, "A saber a
mangos e a melancolia".
Na linha 8, identificamos a presença de um "tu". A
memória, de tão viva, se personificou num interlocutor, uma "criança
apenas". Ao imiscuir-se nessa reminiscência, pela sinestesia, sentimos e
vemos a "praia lenta e morna": uma lembrança agradável que se desenha
aos olhos do eu-lírico (e aos nossos), a ponto de ela se confundir com a
menina. Isso se apreende no narrar, ora adulto, ora infantil, capaz de
ver os cabelos como "um caracol comprido/ a cair de cada lado da cara".
Criada a interlocutora, o eu-lírico passa a compartilhar fatos e pessoas
de antanho. Há na nostalgia de lembrar uma nuvem de tristeza, pois
evidencia que as coisas mudaram, talvez "as amigas de então", talvez o
próprio eu-lírico, pois "era como se não tivésseis atravessado juntas/ a
adolescência". Afinal, ao olhar para si no passado, como menina, isso já
é uma constatação de algo sem volta; e é exatamente "voltar" a primeira
palavra do poema e que volta na linha 15, dirigindo-se ao "tu", o que
corrobora a tentativa de reviver algo ao "vê-las [as amigas] mais tarde"
ou mesmo ao voltar a Bolama. O encontro do acalanto de outrora e a
clarividência da mudança nos leva de volta à definição da ilha: "a saber
a mangos e a melancolia".
A próxima estrofe começa com uma pergunta e nela a
configuração do conflito entre sua vida atual e a passada. "Sonhar com
férias" em sua infância não faria sentido, no mundo África que ela
viveu; hoje, é o que se sonha. Ao questionar, o eu-lírico responde,
diligenciosamente, narrando. Mas eis que no meio do narrar ela se
imiscui no fato e volta a conversar com o "tu", pedindo que o tu se
lembre com ela. Chegamos em "uma pensãozinha", há mais gente ali; parece
uma lembrança agradável. O eu-lírico, porém, traz uma informação que
quebra a catarse da lembrança, um fato depois ocorrido, que distancia o
passado: "já a maior parte deles morreu". Isso também mostra que a vida
naquele lugar não foi privilégio dela somente, existiu outrem, mas não
existem mais. Mais uma pergunta, esta porém a ser respondida no discurso
direto, como se ouvíssemos mesmo a voz dizer. O nome dito, o dono da tal
"pensãozinha", Melchior, nos remete a outra cultura, à cultura do
colonizador, católica. Também morto, contudo morto no caminho da cidade,
Bafatá, que é sinônimo daquilo que Portugal trouxe. Morreu à noite, não
se sabe bem como, mas há hipóteses, e nelas a evidenciação de um
conflito existente entre "tugas", portugueses, e "turras", terroristas.
O eu-lírico conta, como quando encontramos um velho conhecido, narra o
que aconteceu com Melchior "anos depois da ida a Bolama". É como se ao
reviver uma lembrança, o eu-lírico sentisse a necessidade de enterrá-la
novamente, usando da morte como instrumento para
isso (apesar de parecer redundante): amiúde do
movimento afigurado no refrão "a mangos e a melancolia".
Na estrofe subsequente, notamos que, ao fazer a
digressão sobre a morte de Melchior, o poema segue da direção do
confronto supracitado. É quando "os colegas de liceu desapareciam".
Cochichava-se sobre as razões dos desaparecimentos, ou seja, não se
falava disso abertamente, mas "a boca encostada à orelha", numa
sinestesia irresistível que nos faz quase sentir o tato da boca com sua
respiração quente no ouvido, a respiração alterada do segredo a ser
contado. Existia uma luta que atraía os jovens de então, a luta contra
os "tugas". Cabe também observar que a palavra "liceu", a ideia de
aprender em uma escola foi algo trazido pelo colonizador, portanto o
conhecimento que ali se impunha era o viés europeu. Portanto, ao dizer
"um bando de macacos", o eu-lírico expressa a fala do colonizador, uma
fala pejorativa, acerca de grupos que lutavam então. O narrador volta ao
Melchior com um belíssimo eufemismo da morte: "então um tampo pesado de
mármore/ para mesa de cozinha/ que levava atrás/ deslizou para cima do
volante/ e esmagou-o, ao senhor Melchior/ dentro da noite e da
carrinha", como se, ao morrer ali, o homem já fosse enterrado em sua
lápide.
E é em Melchior que se continua, numa narrativa não
cronológica. O eu-lírico compartilha de estórias ouvidas acerca do dono
da pensão, num tempo anterior à sua chegada. O homem também fora jovem,
cheio de sonhos e vigor, no entanto morrera, ali, no meio do caminho. A
lembrança do eu-lírico é sempre seguida "por um bando/ de morcegos", uma
nuvem obscura que metaforizam a morte das coisas. Ou seja, a vida de
Melchior, feliz e vigorosa, é anterior à obscuridade da chegada dos
morcegos. O filho, Necas, revela a importância das aparências para
sociedade que veio, pois pouco importava que fosse "atrasado um pouco,
mentalmente", mas aquilo que ele aparentava. Nesse momento, a figura do
"tu" volta para compartilhar uma vivência com o eu-lírico com Neco, a
andar de ônibus e ser chacoalhados, a ver que todos usavam o transporte,
gente "brancas e pretas", e suas vicissitudes: empurrar "a lataria
vermelha/ para ultrapassar os barrancos/ que as chuvas haviam cavado/ na
terra batida da estrada". Depois de deleitar-se na narração, o eu-lírico
volta relembrar que esse tempo já passou, "tempo em que não havia
guerra", dizendo dos perigos de outrora que eram perder uma coisa ou
outra no caminho à ilha.
Na última estrofe temos mais uma vez a morte de uma
lembrança, a de Neca, e uma nova surgindo. O fato narrado agora é o um
"fim-de-semana/ na praia", num lugar pobre, de "casinhas rasas à beira
da praia". A personificação do objeto, dando-lhe características humanas
é usada para descrever a casa, mostrar a simplicidade das casas "com um
sorriso de madeira pintada/ a vermelho e amarelo/ descascada o bastante
para ganhar a patina da pobreza aconchegante". Longe de eivar de
tristeza a pobreza de outrora, o eu-lírico tem carinho por aquela
reminiscência demonstrado pela sinestesia, o aconchego da pobreza.
Naquele terreno encharcado do litoral tão comum para o plantio de arroz,
"bolanha", o "tu" volta para caminhar e molhar os pés no mar, numa água
translúcida que permitia anda "sem perder o pé". O eu-lírico se delicia
de tal lembrança até que a realidade lhe preme: como é dolorida a
irreversibilidade da vida. Vida essa metaforizada por algo a escorrer
nos cabelos: no início ao fim, escorrendo até as pontas e depois se
perdendo. As lembranças também ganham, na sinestesia, proximidade com a
pele "molhada e tépida", e mais: torna-se um oásis da vida, um lugar no
qual retornaremos como em um recomeço. Os pés, esse ponto a ser olhado,
envolto em conchas, molhados no lugar do tempo, onde "devias ser
sepulta", o "tu" e o eu se confundem num desejo único de voltar, mas
voltar de maneira perene: a perenidade da morte. As lembranças como
"ondas pesadas" a ir e voltar na mente, pedindo uma entrega, um lançar
nas águas, apontando para um lugar que não mais é: "era ali". O ponto de
vida no fundo do Geba, onde os pés chafurdam num "lodo verde e
menstrual" – o paradoxo formado com isso remonta vida e morte
convergindo para a mesma direção, num convite ao tu à morte.
O final do poema traz imagens, metáforas que nos
imergem numa paisagem noturna, sinestesia que provoca e evoca o "frio",
introduzindo-nos na noite, num ponto para o qual nos dirigimos com o
eu-lírico, a se perder nos pensamentos em direção à "linha imperceptível
que separa a lua/ da luz". O "tu" intermitente na narrativa, desaparece
numa imagem que se vai desvanecendo no "Oriente Eterno", a caminho do
sol representado pela figura de Rá, deus mitológico egípcio. A tristeza
dessas imagens constroem uma representação da cidade de Bolama para o
eu-lírico, na última palavra do poema que, percebe-se, ser o que resta a
ela no presente: "a melancolia". A saber: passado "a mangos" e presente
"a melancolia". |
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS |
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AUGEL, Moreira Parente. O desafio do escombro: nação,
identidades e pós-colonialismo na literatura de Guiné-Bissau. Rio de
Janeiro: Garamound, 2007.
GUEDES, Maria Estela. Chão de Papel. Lisboa: Apenas
Livros, 2009.
MOREIRA, Terezinha Taborda.; FONSECA Maria Nazareth
Soares. Panorama das literaturas africanas de língua portuguesa. Caderno
CESPUC de Pesquisa. Série Ensaios, 2007.
RUI, Manuel. Eu e o outro – O invasor ou Em poucas
três linhas uma maneira de pensar o texto. In MEDINA, Cremilda.
Sonha Mamana
África. São Paulo: Epopeia, 1987.
SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias Africanas:
História e Antologia. São Paulo: Ática, 1985).
http://www.triplov.com |
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Marcos Vieira tem 27 anos, nasceu em São Paulo.
Formado em Realização
Cinematográfica
em 2006 pela Academia Internacional de Letras, atualmente cursa Letras
na
Universidade Nove
de Julho. Além da presente publicação, publicou em 2012 o livro *Manual
de
Sobrevivência no Metrô.
*Ademais, alimenta o blog: *http://oseutoba.blogspot.com.br,
*com crônicas
e notas.
e-mail:
marcos.marcosvieira@gmail.com |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
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