O objeto da Comissão da
Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados
pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária.
Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem
pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a
lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de
vítimas. Mais ainda, deixa claro o trauma nacional que significou viver
sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.
Neste sentido, vítimas não foram
apenas os que sentiram em seus corpos e nas suasmentes a truculência dos
agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação
brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e
satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o
período do regime militar.
Importa assinalar claramente que o
assalto ao poder foi um crime contra a constituição. Configurou uma
ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles,
montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo
estado de terror.
Bastava a suspeita de alguém ser
subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por
engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e
torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato.
Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos esquecidos que
foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979.
O que os militares cometeram
foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de uma guerra civil, um
lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem
democrática. Esta alegação não se sustenta. O comunismo nunca
representou entre nós uma ameaça real. Na histeria do tempo da
guerra-fria, todos os que queriam reformas na perspectiva dos
historicamente condenados e ofendidos – as grandes maiorias operárias e
camponesas – eram logo acusados de comunistas e de marxistas, mesmo que
fossem bispos como o insuspeito Dom Helder Câmara. Contra eles não cabia
apenas a vigilância, mas para muitos a perseguição, a prisão, o
interrogatório aviltante, o pau-de-arara feroz, os afogamentos
desesperadores. Os alegados “suicídios” camuflavam apenas o puro e
simples assassinato. Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu
a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns
casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu
o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.
O grande perigo para o Brasil
sempre foi o capitalismo selvagem. Usando palavras de Capistrano de
Abreu, nosso historiador mulato, “capou e recapou, sangrou e ressangrou”
as grandes maiorias de nosso povo.
O Estado ditatorial militar, por mais
obras que tenha realizado, fez regredir política e culturalmente o
Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas inteligências e nossos
artistas mais brilhantes. Afogou lideranças políticas e ensejou o
surgimento de súcubos que, oportunistas e destituídos de ética e de
brasilidade, se venderam ao poder ditatorial em troca benesses que vão
de estações de rádio a canais de televisão.
Os que deram o golpe de
Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo
contra o povo brasileiro.
Os militares já fora do poder
garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia
geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome deste status, resistem e
fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção que, na
verdade é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o
desdémnacional para a vergonha internacional deles.
Os militares que deram o
golpe se imaginam que foram eles os principais protagonistas desta
façanha nada gloriosa. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que
foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles.
René Armand Dreifuss escreveu
em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título:
1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe
(Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de
documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que
houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe
com uso da força militar.
A partir dos anos 60 do século
passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de
Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC).
Compunham uma rede nacional que disseminava idéias golpistas, composta
por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais,
banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria
listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor “eram
suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu
posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o
Estado”(p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos.
O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva que já
em “em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao
poder”(p.186).
A conspiração pois estava em
marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada
ao redor do Presidente João Goulart, tido como o portador do projeto
comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu
projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o
Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e
multinacional, usando o podermilitar.
Conclui Dreifuss: “O ocorrido
em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um
movimento civil-militar; ocomplexo IPES/IBAD e oficiais da ESG
(Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de
Estado”(p. 397). Especificamente afirma: ”A história do bloco de poder
multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os
novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o
sistema político e reformulando a economia a serviço de seus
objetivos”(p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado
em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança
do Capital.
Os militares inteligentes e
nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por
aquelas elites oligárquicas que não buscavam realizar os interesses
gerais do Brasil mas sim, alimentar sua voracidade particular de
acumulação, sob aproteção do regime autoritário dos militares.
A Comissão da Verdade prestaria
esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela
simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas
da verdade de fatos individualizados mas da verdade do fato maior
da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à
multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares,
tranquilamente, realizarseus propósitos corporativos de acumulação.
Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e
desaparecidos e de muito padecimento coletivo. |