REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

 

DAVI ARAÚJO

Livro ruído

(seleção)

 

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
Contacto: revista@triplov.com  
Dir. Maria Estela Guedes  
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ποιήτης

   

movo palavras

lavro novidades

falo movimentos

 

não poetizo o meu poema,

mas me exponho ao triálogo

 

não ajo como poeta, ajo por poesia, ou apenas ajo

 

digo-me: vá-te de mim!

e me manifestejo...

 

quando me inspiro sou o que suo sublime

e para que eu verse qualquer coisinha verve

pois meu rimário é incautobiográfico:

eu valho, mas não bardo

   
 

Vernaculáceo

 

 

Linguajar, ruja para quem te resista,

pela boca que verseja com voz alquimista a gíria supimpa;

há já sua língua limpa ou suja, ou seja,

uma linguagem que exprima tudo isso que ardente freme,

e que a gente imprima o que blasfeme.

 

Aja o som em cada pranto, haja o rito...

aja o dom em cada santo, haja o mito...

e o espanto, portanto;

haja o dito... aja o bom em cada quanto,

haja o grito... aja o tom em cada canto.

 

E, com o pendão da má palavra, liberdade,

em branco e negro ou poesia tatuados em cada cor: ação,

silenciosa mente arauta da novidade verbal;

aliás sílaba, fonema fenomenal da mensagem para vocês,

ou eu, mau selvagem, em bom português.

   
 

Pira

 

 

Tabuada iníqua que sempre míngua linda, ou acróstica.

Língua calejada de uma cobra

que nos linka acrobática. Broca que me marca a cabeça

como certa cor acústica.

Cigana que grita contra algum kharma, flor ou suástica.

 

Caverna que se vinca bem-vinda

e embarca monolítica. Queima o meu coração

quando se arma de luz elástica.

Qual cruz de alguém que arde ainda,

desilusão estética. Esquálida crise quente

muito mais sempiterna e plástica.

 

Recomeço de seca sem sombra que se brinda dramática.

Mulher que se quer um leque

quase ícone, eufemística. Igual a uma quebra de braço

sem certa dobra dialética.

Guerra de catarse que não finda, ou fogueira fantástica.

   
 

Adição (ritual de Soma)

 

 

Caos, propiciatória álgebra das paixões,

turbilhão diáfano dos sentidos... o amor

como a mais intragável das compulsões

e o sexo aqui e agora é mais, mais ainda:

tragam os amantes às suas taças de licor,

ouvidos cheios de luar por estas canções,

agradeçam ao sonho à noite a sua vinda,

unidos no líquido serão de sólido torpor

que tomará este casal, mas antes brinda.

 

Há um olhar de relance à meia luz da hora,

então a pele e um beijo: há carne, mordida,

um ao outro estranho como um deus adora,

um além do um mais um se planta nos dois

tocados pela chance que ao abraço convida;

e aquilo àquilo chama por arder de demora,

paralelas cruzando no infinito e não depois

ao reviverem sua pós-morte recém-nascida

porque ambos são como somos e como sois.

 

Até a derradeira franqueza,

que é úmida e dura...

depois uma fraqueza

sem dúvida e sem censura;

 

entretanto renasce a liberdade perpétua,

solidão que ri

da incomunicabilidade enquanto mútua

perdição de si.

   
 

Falível Inefabilidade

 

 

Vida, objeto virgem. Amor, palavra vertigem.

 

Aquele que ama tenta domar unicórnios e deflorar o momento.

Viver não requer qualquer lugar ou uma idade de consentimento.

 

Aquele que vive tenta construir zigurates e traduzir o limite.

Amar não prescinde de confundir as línguas que o abismo recite.

 

Vida, palavra indefinível. Amor, objeto impossível.

   
  Azeviche
 

 

 

Perto demais, desde o canto atrás de mim, filosofal,

que mira-me em rima, sem fim, o em-aberto trivial.

 

Rudes olhos de luz, daqueles que se jogam sobre a gente,

sem pestanejar,

vão dar ali no mais fundo, sob toneladas de sono bissexto,

por entre o sutílimo índigo de certas notas, ecos a se tocar,

através de um fogo abocanhado, antes de tudo, se quente,

como pretexto.

 

E, penúltima penumbra, é sombra de sobra,

como em dois dedos de café, demais de forte,

dos de se cortar usando o machado,

tal espírito comprido que se cumpre na cobra,

por ser como é cada sonho, perdido,

ora lembrado e ora esquecido,

um cisne negro, verso de balé,

poema negro, passo de morte,

ainda memória e já era, vulgo sólido e certo.

 

Tom de mau rumor que ao olvido escuta,

em entonação tatuada, tom enxadrístico,

eu me lembro, mas destarte ainda checo,

é um húmus muso, pois finda novembro,

ultra-sumo de rocha e enfático em fatias,

ardente de arte, artístico, quase que nada,

doente, qual russo ou pior, talvez tcheco,

o ar tísico, roído de inspiração, sob bauta,

tusso, rastejante sobre pauta embolorada,

e a lesma medirá ao dó ardido em males,

entonação para ser sem partitura, fúngica,

  a mofar-se lentamente,

  prazer em parte escura,

  a formar-se de repente, demiúrgica.

 

Ou enterram na carne, encarnados, por terra,

na escuridão da estética, pois há mais depois,

se odiai amantes,

eternos, nós dois,

poética que se encerra, iniciantes, esqueletos,

cem quaisquer porquês, sem centro,

eu, vosso trevoso, trovejo em vocês,

e por perto sempre uns livros pretos,

pretos por dentro.

   
  prata preta
 

 

janeiro acabou e é quase dezembro

mas mesmo frio meu café funciona

no decurso que se lucidez ocasiona

...nem me lembro

 

a prata está preta

é um rio turvo, uma longa história

alianças na minha gaveta

um caminho curvo, outro lado da memória

 

nunca se esquece

sempre tece sua teia

que a luz inteira que alvorece não permeia

se empretece

 

e se me distraio um instante de mim,

espetacularmente agora que estou afim,

fecham-se em barbas as cortinas da minha cara

e ao se apagar a ribalta faz-se a platéia clara

 

depressão que se imprime

relógio que se oxida

impressão que me deprime

glória escondida

 

o tempo é fogo cujo rastro cinzento

corrói meu cigarro qual o câncer lento

 

a treva é o manto

que sem pressa sobrepuja

qualquer fulgor que eu urja

prescreva o meu canto

para que polido ressurja

numa época que já brilha suja

 

sim, preta a prata, só silhueta, sem data

obra que se esconde

lira que se escande

reflexão que não responde

escuridão que se faz grande

preto que se expande

prata...                                       onde?

   
 

O bom, O certo, O verdadeiro
(a Estética, a Ética, a Lógica)

 

 

Três horas de noite te levam longe nesta cidade

& onde está não imagina mas reconhece o aqui

& lá você se permite ser o senhor da crueldade

& se esquece que não há volta sentir tal frenesi

 

Três estranhos te acham interessante à distância

& logo te convidam para sentar com eles à mesa

& discutem excitados sobre o prazer da errância

& súbito você está sendo levado pela correnteza

 

Três sodas italianas de maçã verde com absinto

& as remelas amanhecem como de vidro em pó

& o enjôo ensolarado da ressaca te faz faminto

& você acha apenas ruína nos bolsos do paletó

 

Três dias mais tarde te fazem estar desaparecido

& você sente melancolia por não ter um alguém

& sozinho vai por aí mais ou menos arrependido

& sofre tanto por ter partido ou não ter ido além

   
 

Cardiosofia

 

 

Meu coração decora meu peito

mudando de cor e sabendo de cor

Por ela contrai ou relaxa e afeito

ele bate e apanha melhor ou pior

 

Carro na frente dos bois

Bomba de sangue choco

Mola daquilo que sois

 

músculo        opúsculo

compaixão         hipertensão

insuficiência e benevolência

cordialidade e motricidade

coragem e engrenagem

arritmia e covardia

arte e enfarte

sopro

 

Do tamanho de um soco

Está dividido em dois

Todo coração é oco

 

Um coração (de verdade) é muito feio

e como símbolo (do amor) é meio ruim

O coração (mesmo assim) não é um meio

porque (como um símbolo) não tem fim

   
  O Amor de Cabernet & Sauvignon
 

 

C:          Corpo a corpo eu te bebo.

S:          Copo a copo tu me tinhas.

C:          Dá tua boca à boca cujo beijo recebo.

C & S:   Lembra quando a gente vinha?

 

S:           Engole o que falo sem desperdiçar.

C:          Então somente a verdade fale-se.

S:           Viemos beber ou conversar?

C & S:   Cálice!

 

C:          Vem me provar que ama.

S:           Liquide a embriaguez que sinto.

C & S:   Vamos nos tomar na cama.

 

S:           Deito-te em mim, teor do que tilinto.

C:          Altos agora, se te sirvo me derrama.

C & S:   Um brinde ao amor que adivinho tinto.

 

 

 

 

DAVI ARAÚJO (São Paulo, 1979). Poeta, ficcionista, tradutor, ghostwriter e conselheiro editorial. Autor do blog Não Fique São, atualmente finaliza dois grandes livros de poemas, continuações da trilogia iniciada com Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal.
Blog: http://naofiquesao.blogspot.com . Contato:
davis.eu@gmail.com

 

 

© Maria Estela Guedes
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