REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


nova série | número 28 | junho | 2012

 
 

 

 

CUNHA DE LEIRADELLA

Quadratura do círculo (1)

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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          Cunha de Leiradella, escritor luso-brasileiro, é dos mais fecundos autores portugueses em atividade. Construiu uma vasta obra literária e teatral reconhecida e premiada tanto no Brasil quanto no exterior. É também roteirista de cinema. Estudou Direito em Coimbra e na Sorbonne e Filosofia em Salamanca, sem completar nenhum dos cursos, pois considera que a vida foi e será sempre a sua melhor universidade. Conviveu com Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Camus muito o influenciou como pessoa. O Existencialismo marca sua obra como um todo. Viveu 45 anos no Brasil, onde, entre outros, fundou e presidiu o Sindicato dos Escritores do Estado de Minas Gerais (1985). Entre sua obra literária destacam-se O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior (1987) e Cinco Dias de Sagração (1993). Hoje mora na casa onde nasceu, contrafortes da Serra do Gerês, norte de Portugal, próximo à fronteira com a Espanha.

         Com o ensaio Quadratura do Círculo, Leiradella enriquece o debate proposto nesta edição da Revista Documenta através de sua visão crítica sobre a comunicação na pós-modernidade, rebelando-se contra a rigidez da normalização da escrita e da produção do saber, enquanto questiona a evolução do pensamento humano nesse contexto. O autor avalia também filosoficamente, com ironia e neologismos, o relativismo das verdades absolutas diante de alguns dos temas que mais têm atormentado o ser pós-moderno: angústia, solidão, medo. O pensamento leiradelliano afirma-se contrário ao determinismo conceitual, fundando-se nas bases de um jogo de premissas dispostas de modo a relativizá-lo. É quando então transparecem as incertezas das afirmações categóricas que nem a modernidade tardia, ou seja qual for a denominação que futuramente conta de abarcar nosso tempo, consegue sustentar.

Resumo: Neste trabalho não se pretende estudar, mestral ou doutoralmente, absolutamente nada. Apenas se tenta, se for possível, perceber quanto o pensamento humano evoluiu. Se um grego, que nada deixou escrito, foi cicutado por afirmar porque não sei, não acredito saber, e hoje, um mestre por dizer que acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio, é aplaudido, onde foi parar a evolução darwinística? E assim caminha a humanidade, mesmo depois do James Dean ter morrido como um rebelde sem causa. 

PALAVRAS-CHAVE: saber; evolução; humanidade; rebelde. 

Abstract: This paper does not intend to study, in master or doctorate level, absolutely anything. lt just tries, when it is possible, to check on how much human thought has evolved. A Greek man, who left nothing written down, was poisoned (hemlock) for once he stated: Because I do not know, I do not believe to know anything. On the present days, a master says: One has to remain in silence when it comes to something that one cannot talk about, being applauded afterwards. So, one question arises: has Darwinist evolution stopped? And so it goes mankind, even after James Dean dying as a rebel without a cause. 

KEYWORDS: knowledge; evolution; mankind; rebel. 

Resumen: En este trabajo no hay la intención de estudiar, maestral o doctoralmiente nada en absoluto. Sólo si intenta, si posible, percibir cuanto el pensamiento humano ha evolucionado. Si un griego, que nada escribió, fue cicutado por decir porqué yo no , yo no creo saber, y hoy en día un maestro diciendo que acercándose sobre lo que no si puede hablar, tiene que estar en silencio, es aplaudido, donde fue detener la evolución darwinista? Y así camina la humanidad, mismo después de que James Dean murió como un rebelde sin causa. 

PALABRAS CLAVE: conocimiento; evolución; la humanidad; rebelde. 

 

         Eu tenho um compadre. Nada demais. Metade do mundo tem compadres. que eu gosto do meu. Chama-se, chamava-se, para efeito de direitos civis, políticos, trabalhistas, consuetudinários e até obductos, José da Silva. Mas como este da, nestes tempos politicamente corretos que nos querem obrigar a viver, pode cheirar a ancien régime, a fumos de nobreza azulada ou quejandice hereditária, o meu compadre resolveu tornar-se, apologeticamente, um cidadão mais condizente com este nosso novo século. Democrata. E passou a atender pelo nome que plantou na sua horta: das Couves. Mais prosaico, mais trivial, mas fazendo, pelo menos, jus ao art. 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. (2)

         Desde Tales de Mileto que se sabe que nãoum sem dois, nem dois sem três. Isto, vão 27 séculos. Ora, se levamos 2700 anos repetindo a miletagem, deve o bom senso admitir que, se eu tenho um compadre, o meu compadre das Couves também deve ter outro. E tem. Chama-se, chamava-se, Manuel Joaquim Chegacá. Um nome sonante, sem falha ou lesão, de boa cepa historicomedieval e sem salamalequices espúrias, mas que, dadas as idiossincrasias progressistotecnológicas destes nossos tempos imperativamente nanônicos, convenhamos, não poderia servir de gazua a quem quisesse abrir as portas da comunicação dita social. Vai daí, passa o compadre do meu compadre das Couves a pensar e pensar, escabichando uma nomeada bem mais gazuínica. E tanto pensou que mandou ver na solução do teorema: em qualquer nome própriosempre condição de mudança, desde que as palavras signifiquem o que se quer.

         Terminada a Faculdade de Ciências Humanas Exatas e Sociais de Vila Nova de Pardais, o bacharel em Educação Artística, Manuel Joaquim Chegacá meteu ombros à roda e mandou ver a quadratura do seu círculo onomástico. E deu-se bem. Conseguiu fazer o que nem o Ferdinand Lindemann tinha conseguido: quadrar o círculo. Apenas trocou a régua e o compasso e os π π e a inexistência de um polinômio com coeficientes inteiros, não todos nulos, por duas pragmáticas notas de cem e pagou umas e outras aos amigos do peito.

         Indiferente à prova da impossibilidade ferdinândica, Manuel Joaquim Chegacá, encolheu os ombros, respirou fundo e olhou o céu, chumbado de nuvens pinga pinga. Que é, dizem, o que fazem todos os sábios em vias de parto científico. Arquimedes parece ter sido uma das poucas exceções, senão a única, que estava tomando banho e estava nu. Manuel Joaquim Chegacá, deverasmente enraizado nas milenares tradições latinas de muito ar e pouca água, apenas sorriu e escreveu no guardanapo de papel do boteco, onde degustava um quentão com os amigos, o nome que o tornaria conhecido nos meios comunicativos: Quim dos Nabos. E deu no vinte. Nãohoje quem não conheça, em Vila Nova de Pardais, na Internet, no Facebook , no Twitter e assemelhadices nanônicas, o compadre Quim dos Nabos, o mais competente e entendido comentarista em genéricos, sejam eles remédios, futebóis, políticas ou programas de televisão.

         O meu compadre das Couves, profundo conhecedor das idiossincrasias humanas e orgulhoso de não ter cabresto que o amarre a nenhum banqueiro ou partido político, costuma contar uma estória deverasmente edificante, e que mostra e demonstra o purismo aristotélico do raciocínio do compadre Quim dos Nabos. Diz ele, orgulhosíssimo do direito de conhecedor e confidente: O meu compadre Quim dos Nabos, tem uma filha, a minha afilhada Adozinda, a quem ele, muito moral e pudicamente, deixa namorar na sala iluminada da casa onde vive. Uma noite, chegava o compadre a casa vindo de um debate farmafutepoliticotelevisivo, diz-lhe a esposa, a minha comadre Joaquina: Ó Quim, anda depressa, anda ver o que é que a tua filha está a fazer ali na sala, e o que é que ela está a fazer?, pergunta o compadre Quim, está toda descomposta, enroscada no namorado em riba do sofá, diz a comadre Joaquina, e o que é que tu fizeste, ó mulher?, e o que é que eu podia fazer?, e o que é que tu podias fazer?, ó mulher, essa é boa, vai e tira-me o sofá da sala.

         A navalha de Hanlon sempre pegou os melhores pedaços do beef cut tenderloin, apesar dos marimbondos rascados pelos politicamente corretos: Nunca atribuas à malícia o que pode ser adequadamente explicado pela estupidez. Sir Y. Smith Graves, na sua monumental História Namasque da Humanidade, diz que Asalluigata de Unug, cortesão do rei sumério Gilgamesh, século XXVIII a. C., foi o primeiro político que se ilibou de acusações de corrupção, declarando, enfático, ao rei boquiaberto: nãoregra sem exceção. E a moda pegou. E tanto, que neste nosso século de regras vivemos num século de exceções. Vai daí, não havendo regra sem exceção, a navalhada hanlônica pode ser regra se tiver uma exceção. E que melhor exceção do que aquele tira-me o sofá da sala, havendo sala? Na melhor das hipóteses, a rapidez (infelizmente ainda não nanônica, mas mostrando a rapidíssima e fulgurante faceta) do raciocínio aristotélico do compadre Quim dos Nabos.

         Todo sofá é devasso.

         Adozinda é (fez de) sofá.

         Logo, Adozinda é devassa.

         Aqui chegado, cumpre-me dizer que o meu compadre das Couves, ainda que pese ser meu amigo e um profundo conhecedor das idiossincrasias humanas e um lídimo caráter, orgulhoso de não ter cabresto que o amarre a nenhum banqueiro ou partido político, serviu de tiragosto para apresentar o seu quantiqualificativo compadre Quim dos Nabos. O enxundiosíssimo prato feito da comunicação social de Vila Nova de Pardais, paradigma intrínseco da comunicabilidade/comunicação dos nossos dias. Não esquecer, por favor, que se o compadre Quim dos Nabos não é um nanônico roxo, torcedor declarado dos binômios sim sim não não, muito antes pelo contrário é um conhecedor emérito das qualidades testosterônicas e laxativas das generalidades culturais aladas na Internet, no Facebook, no Twitter e em todas as suas assemelhadices conformadas. A saponina do Mate Leão está e não me deixa mentir: use e abuse.

         Por todas as suas qualidades intrínsecas (e acima de tudo pelas extrínsecas, Vila Nova de Pardais pasmou com noiva Adozinda casando na igreja matriz, sorridente e coradíssima, de véu e grinalda, cheirando um ramo de flor de laranjeira, obra e graça da retirada aristotelicamente estratégica do sofá da sala epicurista), o compadre dos Nabos foi compelido pela diretoria da Sociedade Cliopomenense de Cultura de Vila Nova de Pardais a apresentar-se como Príncipe dos Intelectuais Pardalenses, título instituído pela prefeitura local e patrocinado pela ONG Irmãos Emaús - Diversidade, Participação e Solidariedade, visando incentivar e disseminar a cultura autóctone, sempre jogada às traças pela indiferença dos governos da capital do ex-império.

         Quem me deu a notícia foi um eufórico e comprometido compadre das Couves. Pedi-lhe que me arrumasse a comunicação do compadre Quim dos Nabos, dado que o meu compadrimento não alcançava as benesses interpessoais daquele que, em Vila Nova de Pardais passa por ser (e todos têm certeza que é), o mais competente e entendido comentarista em genéricos, sejam eles remédios, futebóis, políticas ou programas de televisão. Deixe comigo, compadre. Deixe comigo, que eu lhe arrumo a papelada, nem que tenha que a roubar. O compadre quer o resumo que ele leu para a diretoria da Sociedade, ou quer a escrevinhação inteira que ele levou ao padre Ilídio, para o gajo lhe dar uma opinião? Quero a escrevinhação inteira, compadre. Muito bem, diz-me o compadre das Couves. Tê-la-á.

         Transcrevo-a ipsis litteris.

         Cabe-me aqui observar, entretanto, que poderia apenas dizer transcrevo-a literalmente. Mas sabendo eu que uma citação latina sempre cai bem, fi-lo porque qui-lo. Evidentemente, não deixando também de levar em conta o exarado nas regras de norma culta da APNT - Associação Pardalense de Namasquismos Traducianistas, o mais aprumado tabulário de bem escrever depois que Kullassinaga de Kish, poeta sumério do XXIX a. C., quantificou e qualificou os padrões de como deve ser formulado e apresentado um texto que se quer bem escrito. Escorreito e comunicativo. 

   
 

DIZEM OS ENTENDIDOS

por

QUIM DOS NABOS

Cidadão pardalense, com muita honra

Comunicação apresentada por ocasião da diplomação do Autor como

Príncipe dos Intelectuais Pardalenses

na sede da Sociedade Cliopomenense de Cultura de Vila Nova de Pardais,

aos 19 dias do mês de dezembro de 2010,

data do 14º aniversário da morte do sempre lembrado ator

Marcelo Mastroianni

 

 

1

Dizem os entendidos que na Natureza a perfeição é sempre inversamente proporcional ao Absoluto. Que quanto mais eu penso, que quanto mais eu raciocino, que quanto mais eu pergunto, que quanto mais eu questiono, mais a minha consciência me torna relativo e mais o Absoluto se distancia.

Mas eu pergunto: quem conhece pessoalmente o Absoluto para saber se ele se distancia ou aproxima?

 

2

Dizem os entendidos que o maior progresso do ser humano sempre foi a velocidade. Que durante milênios o padrão foi o andar. Que as distâncias eram grandes e os homens esperavam chegar ao fim da vida, chegando ao fim dos caminhos. E que a Humanidade caminhava lentamente e percorria devagar as terras descobertas.

Mas eu pergunto: e onde estavam os cavalos, se sempre houve cavalos?

 

3

Dizem os entendidos que Hipócrates e Galeno não curavam resfriados e que Aristóteles também não sabia que, se todos os metais conhecidos eram sólidos, nem todos os metais a conhecer teriam que ser sólidos. E que se Protágoras desconhecia que o Universo se expandia entre cinco e dez por cento em cada bilhão de anos e tinha alguns buracos negros, (3) sabia, pelo menos, que o homem era a medida de todas as coisas.

Mas eu pergunto: quem mediu todas as coisas para saber se o homem era a medida de tudo isso?

 

4

Dizem os entendidos que hoje nós voamos pelo Cosmo e medimos todas as distâncias, e que a Terra ficou menor do que o menor dos caminhos que Protágoras percorria em Abdera. Mas que nada mais conhecemos de nós próprios do que Protágoras conhecia de si mesmo. E que também não curamos resfriados. Que nós sabemos, apenas, que nem todos os metais são sólidos e presumimos que o Universo é composto por 100 bilhões de galáxias e atinge a massa de 316 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 de quilogramas. (4)

Mas eu pergunto: quem mediu e pesou o Universo, se ainda não curamos nem resfriados?

 

5

Dizem os entendidos que configuramos o Universo numa equação matemática e imaginamos que a velocidade a ser atingida pelos taquíons, quando forem descobertos, (5) será maior do que a da luz. Mas que, na contrapartida, também destruímos tudo que fazemos na razão direta da velocidade dos nossos cálculos.

Mas eu pergunto: se puder haver uma velocidade maior do que a da luz, não terá que haver também uma superluz que nos ilumine a todos e nos mostre, sem sombra de dúvida, o que é o bem e o que é o mal?

 

6

Dizem os entendidos que da machadinha acheuliana do homo erectus à espada e ao fuzil foram milênios e milênios de lento caminhar. Que do fuzil aos engenhos nucleares decorreram apenas alguns anos. E que o que milhões de homens fizeram com clavas, com espadas e com fuzis, nós fazemos, sozinhos, com uma bomba. E em segundos.

Mas eu pergunto: se assim não fosse, onde estaria o progresso tecnológico, sempre atento ao nosso bem-estar?

 

7

Dizem os entendidos que nós fissuramos o átomo e esquadrinhamos quasares a 14 bilhões de anos-luz, e que a clonagem humana não é mais ficção. Mas que, a nós próprios, nada de positivo acrescentamos. Que apesar da nossa pompa e circunstância apenas conseguimos estar presentes. Como estão presentes as pedras que pisamos nos caminhos. Mas que essas pedras existem desde o começo do tempo e continuarão existindo até ao fim do tempo, e nós desapareceremos quando morrermos. Cada vez mais sós e com mais medo, e muito mais angustiados. Porque, a cada dia que passa, apesar de nos dizerem que somos a mais perfeita criação da Natureza, mais e mais nós somos obrigados a justificar que ainda somos. Ou na solidão do suicídio ou no divã do analista.

Mas eu pergunto: alguém gostaria, hoje, de viver como viviam os nossos antepassados das cavernas?

 

8

Dizem os entendidos que apesar de todas as certezas e de todas as afirmações categóricas, tudo continua como era. Que, a não sermos nós, nada, na Natureza, sabe que nasceu para morrer. Que os que sobrarem do próximo inverno nuclear morrerão como morria o nosso bisavô das cavernas. que muito mais maciça e muito mais prosaicamente. Que se não formos desintegrados ou envenenados pela atmosfera poluída, morreremos por falta de água ou por deficiência imunológica. E com a desvantagem de termos carregado a vida inteira, dentro de nós, o nosso medo, a nossa angústia e a nossa solidão. Que na era do bilionésimo de segundo o nosso próximo não existe. Que nãotempo de encontrá-lo.

Mas eu pergunto: não valerá mais um bilionésimo de segundo bem vivido do que a eternidade inteira desvivida?

 

9

Dizem os entendidos que, com a maior pompa e ainda maior circunstância, nos dizem que somos a mais perfeita criação da Natureza. Mas que nós sabemos que não somos. Que nós somos, apenas, a mais iludida criação da Natureza. Que um simples mosquito pousa no nosso ombro e viaja de graça o tempo que quiser. E que nós nem de graça podemos viajar. Que se entramos num táxi, ou num ônibus, temos que pagar. Ou, então, que temos que matar o motorista e tomar o lugar dele.

Mas eu pergunto: mesmo sabendo tudo isso, alguém gostaria, hoje, de morrer de fome e de frio, dentro duma caverna sem o mínimo conforto?

 

10

Dizem os entendidos que, apesar de dizermos que sabemos o que aconteceu no primeiro segundo após a grande explosão do Universo (Big Bang) (6) e de esquadrinhar quasares a 14 bilhões de anos luz, cada vez menos sabemos de nós próprios. Que se há mais de dois mil anos nos disseram, “o homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são enquanto são, das coisas que não são enquanto não são” (7) , hoje apenas nos sabem dizer, “acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se ficar em silêncio. (8)

Mas eu pergunto: se tudo que sabemos de tudo não nos torna melhores, será que a ignorância nos tornaria mais felizes?

 

11

Dizem os entendidos que nós existimos como tudo existe. E que, além de existir, nós também somos. Mas que nem por isso permanecemos. Que quem permanece são as coisas que nos cercam. E sem precisarem justificar-se. A sua própria eternidade as justifica. Pois, além de comporem o espaço, ainda existem no tempo. E nós não. E que, por isso, nós somos o que somos. Os carregadores dos mosquitos que pousam nos nossos ombros e viajam de graça o tempo que quiserem. Porque, além de carregadores de mosquitos e de sermos a única criação da Natureza que sabe que nasceu para morrer, nós somos apenas prisioneiros do volume. Que se não o fossemos, não viveríamos no espaço e no tempo. Viveríamos no tempo. Seríamos eternos e não precisaríamos justificar-nos.

Mas eu pergunto: quem gostaria de viver no tempo, sem corpo e sem sentidos para gozar as coisas boas da vida?

 

12

Dizem os entendidos que se olharmos da nossa janela o topo da montanha que se na linha do horizonte, essa será a distância que delimitará, exatamente, o nosso campo de visão. Que se nós subirmos a montanha, aparecerão outras montanhas e o nosso campo de visão aumentará na razão direta da altura em que subirmos. Que se nós pudéssemos subir infinitamente, o nosso campo de visão também aumentaria infinitamente. Mas que, apesar de tudo, o alcance do nosso olhar não dependeria da altura em que subimos. O nosso olhar é finito. É como nós. Mesmo que nós pudéssemos aumentar, infinitamente, o nosso campo de visão, isso não significaria que nós pudéssemos ver infinitamente.

Mas eu pergunto: alguém poderá subir infinitamente?

 

13

Dizem os entendidos que considerada a distância entre a machadinha acheuliana do homo erectus e os engenhos nucleares dos nossos dias, nós poderíamos dizer que abrimos as portas da perfeição. Nós passeamos pelo Cosmo e revolvemos o núcleo dos elementos com o mesmo desembaraço com que o nosso bisavô das cavernas bebia nas fontes ou caçava nas florestas. Mas que é, apesar de tudo, apenas a velocidade que nos diferencia. Nós desapareceremos, como ele desapareceu, a cada geração.

Mas eu pergunto: se tudo que nasceu, nasceu para morrer, não será melhor morrer com conforto do que morrer ao Deus dará?

 

14

Dizem os entendidos que no início era a força e a distância do além. Que o pensamento não ultrapassava o próprio homem e a montanha limitava o fim do horizonte. Que o ato de viver reduzia-se a matar e a morrer. Que apenas sobreviviam os mais fortes e a morte era a recompensa dos vencidos. Mas que a montanha foi escalada e que o homem, nada mais tendo que olhar à sua frente, olhou à sua volta, e não viu nada e teve medo.

Mas eu pergunto: e se o homem não tivesse subido a montanha não teria medo?

 

15

Dizem os entendidos que foi, então, que o mundo se fendeu, e os mais cínicos criaram os ideais e os mais crédulos morreram em nome deles.

Mas eu pergunto: seríamos nós tão humanos como somos se não tivéssemos ideais?

 

16

Dizem os entendidos que um fosso separou as duas partes e, em cada margem, orgulhosos, os sobreviventes se proclamaram verdadeiros. Uns afirmando que a verdade pertencia ao indivíduo e outros afirmando que a verdade poderia ser determinada pelo grupo. Mas que o objetivo não era a verdade. Nem o indivíduo, nem o grupo. Que o objetivo era o poder. Atravessar o fosso e esmagar o inimigo.

Mas eu pergunto: se nós não derrotarmos os nossos inimigos, eles não nos derrotarão?

 

17

Dizem os entendidos que no estágio em que se encontra a Humanidade (as afirmações cada vez mais categóricas e o ser humano cada vez mais solitário) um fator permanece inalterado. A angústia do fim de tudo. Que a existência depende, apenas, de um botão. Que alguém, algum dia, apertará em nome da paz. E que, ou se fortalece a parte para fortalecer o todo, ou o todo sucumbirá.

Mas eu pergunto: alguém sabe quem é e onde está o seu próximo?

 

18

Dizem os entendidos que a tecnologia dos meios de comunicação tornou o mundo tão pequeno, que os homens estão nas portas e nas janelas de todas as casas e podem até conversar com todos os moradores. Mas que a comunicação é inversamente proporcional à comunicabilidade. Quanto mais informações nos fornecem menos nós nos comunicamos. Mais dirigidos nos sentimos.

Mas eu pergunto: se não houvesse meios de comunicação seríamos todos mais humanos?

 

        19

Dizem os entendidos que o homem usa a palavra para esconder o pensamento. Que não diz o que pensa, mas que pensa bem o que diz. Que se dissesse o que verdadeiramente pensa, não sobraria ninguém para contar a história da Humanidade. Que é tudo um faz de conta.

Mas eu pergunto: não será melhor pensarmos bem o que dizemos e sobrarmos todos, do que dizermos tudo que pensamos e não sobrar ninguém?

   
 

1 Publicado em 2011, no vol. 4 da  Documenta, Revista Acadêmica do Curso de Comunicação Social da Faculdade CCAA, Rio de Janeiro, Brasil.

2 GDDC. Gabinete de Documentação e Direito Comparado. Carta Internacional dos Direitos Humanos. Declaração universal dos direitos do homem. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html. Acesso em: 12 maio 2011.

3 HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo: do big bang aos buracos negros. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 75 e 138.

4 ASIMOV, Isaac. A medida do universo. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 179.

5 Ibid, p. 331.

6 HAWKING, ibid, pp. 165-168.

7 PROTÁGORAS. Raciocínios Demolidores.Transcrito por Nicola Abbagnano. In: História da filosofia. 5ª ed. Lisboa: Editorial Presença, 1991. p. 86. Vol. I.

8 WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 142.

  Referências
 

ASIMOV, Isaac. A medida do universo. 2 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986. p. 179.

GDDC. Gabinete de Documentação e Direito Comparado. Carta Internacional dos Direitos Humanos. Declaração universal dos direitos do homem. Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html. Acesso em: 12 maio 2011.

HAWKING, Stephen W. Uma breve história do tempo: do big bang aos buracos negros. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 75 e 138.

PROTÁGORAS. Raciocínios Demolidores.Transcrito por Nicola Abbagnano. In: História da filosofia. 5 ed. Lisboa: Editorial Presença, 1991. p. 86. Vol. I.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico-filosófico. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 142.

 
 

 

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

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