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REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
nova série | número 28 | junho | 2012
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CUNHA DE LEIRADELLA
Quadratura do círculo (1) |
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EDITOR |
TRIPLOV |
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ISSN 2182-147X |
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Contacto: revista@triplov.com |
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Dir. Maria Estela Guedes |
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Cunha
de Leiradella, escritor
luso-brasileiro, é dos mais
fecundos
autores portugueses
em
atividade. Construiu uma vasta obra literária e teatral
reconhecida e premiada tanto no
Brasil quanto no exterior.
É também
roteirista
de cinema. Estudou
Direito
em Coimbra e na Sorbonne e Filosofia em
Salamanca, sem
completar
nenhum dos cursos,
pois considera que
a vida foi e será
sempre
a sua
melhor
universidade.
Conviveu com Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Simone de
Beauvoir.
Camus
muito o influenciou
como
pessoa. O Existencialismo
marca sua
obra como
um todo.
Viveu 45 anos no Brasil, onde, entre outros, fundou e presidiu o
Sindicato
dos Escritores do
Estado
de Minas
Gerais
(1985). Entre
sua
obra literária
destacam-se O Longo
Tempo de Eduardo da
Cunha
Júnior (1987) e
Cinco Dias
de Sagração (1993). Hoje mora na casa onde
nasceu, contrafortes da Serra do
Gerês, norte de Portugal, próximo à fronteira com a
Espanha.
Com
o ensaio
Quadratura do Círculo,
Leiradella enriquece o debate
proposto nesta edição da Revista Documenta
através de sua
visão crítica
sobre a
comunicação
na pós-modernidade, rebelando-se contra
a rigidez da normalização da escrita e da produção do saber, enquanto
questiona a evolução do pensamento humano
nesse contexto. O
autor
avalia também filosoficamente, com ironia e neologismos, o relativismo das
verdades
absolutas diante de
alguns
dos temas
que
mais têm atormentado o
ser
pós-moderno: angústia,
solidão,
medo. O pensamento
leiradelliano afirma-se contrário
ao determinismo conceitual,
fundando-se nas bases de um jogo de premissas dispostas de modo
a relativizá-lo. É quando então transparecem as
incertezas
das afirmações categóricas que nem a modernidade tardia,
ou seja qual
for a denominação
que
futuramente dê
conta de abarcar nosso tempo,
consegue sustentar.
Resumo:
Neste trabalho
não se pretende estudar,
mestral ou
doutoralmente,
absolutamente
nada.
Apenas se tenta,
se for possível,
perceber
quanto o
pensamento
humano evoluiu. Se
um
grego, que
nada deixou
escrito, foi cicutado por
afirmar
porque
não
sei, não acredito
saber, e hoje,
um mestre
por dizer que acerca
daquilo de que se
não
pode falar, tem que
se ficar em silêncio, é aplaudido, onde
foi parar a evolução
darwinística? E assim caminha a humanidade,
mesmo depois
do James Dean ter morrido
como
um rebelde
sem causa.
PALAVRAS-CHAVE: saber; evolução; humanidade; rebelde.
Abstract:
This paper
does not intend to study, in master or doctorate level, absolutely
anything. lt just tries, when it is possible, to check on how much human
thought has evolved. A Greek man, who left nothing written down, was
poisoned (hemlock) for once he stated:
Because I do not know, I
do not believe to know anything. On the present days, a master says:
One has to remain in silence when it comes
to something that one cannot talk about, being applauded afterwards. So,
one question arises: has Darwinist evolution stopped? And so it goes
mankind, even after James Dean dying as a rebel without a cause.
KEYWORDS:
knowledge; evolution; mankind; rebel.
Resumen:
En este trabajo no hay la
intención de estudiar, maestral o doctoralmiente
nada
en absoluto. Sólo
si
intenta, si
posible, percibir cuanto el pensamiento humano
ha evolucionado. Si un griego, que nada
escribió, fue cicutado por decir
porqué yo no sé, yo no creo saber, y
hoy en día un maestro
diciendo que acercándose sobre lo que no
si puede hablar, tiene que estar en silencio, es
aplaudido, donde fue detener la evolución darwinista? Y así camina la
humanidad, mismo después de que
James Dean murió como un
rebelde
sin causa.
PALABRAS CLAVE:
conocimiento; evolución; la humanidad; rebelde.
Eu
tenho um
compadre.
Nada demais.
Metade do mundo
tem compadres.
Só
que eu
gosto do meu.
Chama-se, chamava-se, para
efeito
de direitos civis,
políticos, trabalhistas,
consuetudinários e até obductos, José da Silva.
Mas
como este
da, nestes tempos
politicamente corretos que nos querem obrigar a viver, pode cheirar a ancien régime, a
fumos de nobreza azulada ou quejandice hereditária,
o meu
compadre
resolveu tornar-se, apologeticamente, um
cidadão mais
condizente com
este
nosso novo século. Democrata. E passou a
atender
pelo nome que plantou na sua
horta: Zé
das Couves.
Mais
prosaico, mais
trivial, mas
fazendo, pelo menos,
jus ao art. 1º da
Declaração
Universal dos Direitos
do Homem: “Todos
os seres
humanos nascem
livres
e iguais
em
dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.
(2)
Desde Tales de Mileto que
se sabe que
não
há um sem
dois, nem dois sem três. Isto, já lá vão 27 séculos.
Ora, se levamos 2700 anos repetindo a miletagem, deve o bom senso admitir que, se eu tenho um compadre, o meu
compadre Zé
das Couves
também
deve ter outro.
E tem. Chama-se, chamava-se, Manuel Joaquim Chegacá.
Um
nome sonante,
sem falha
ou lesão,
de boa cepa historicomedieval e sem salamalequices espúrias,
mas
que, dadas as
idiossincrasias
progressistotecnológicas destes nossos tempos imperativamente
nanônicos, convenhamos, não poderia servir de gazua a quem quisesse
abrir as portas
da comunicação
dita
social. Vai daí,
passa
o compadre do
meu
compadre Zé
das Couves a
pensar
e pensar, escabichando uma nomeada
bem
mais gazuínica. E
tanto
pensou que mandou
ver
na solução do teorema:
em qualquer
nome próprio
há sempre
condição
de mudança,
desde
que as palavras
signifiquem o que se quer.
Terminada a Faculdade
de Ciências Humanas Exatas e Sociais de Vila
Nova de Pardais,
o bacharel
em
Educação
Artística, Manuel Joaquim Chegacá meteu
ombros à roda e mandou ver a quadratura do seu círculo onomástico.
E deu-se bem. Conseguiu
fazer
o que nem
o Ferdinand Lindemann tinha
conseguido: quadrar o círculo. Apenas trocou a régua
e o compasso e os π π e a inexistência de um
polinômio com
coeficientes
inteiros,
não todos
nulos, por
duas pragmáticas
notas
de cem e pagou umas e outras aos amigos do peito.
Indiferente
à prova da impossibilidade ferdinândica,
Manuel Joaquim Chegacá, encolheu os ombros,
respirou fundo e olhou o céu, chumbado de nuvens
pinga pinga.
Que é, dizem, o
que
fazem todos os
sábios
em vias
de parto científico.
Arquimedes parece ter sido uma das poucas exceções, senão
a única,
já
que estava tomando
banho
e estava nu. Manuel Joaquim
Chegacá, deverasmente enraizado nas
milenares
tradições latinas de muito ar e pouca água, apenas sorriu e escreveu no
guardanapo
de papel do boteco,
onde degustava um
quentão com
os amigos, o
nome
que o tornaria
conhecido
nos meios
comunicativos: Quim dos Nabos. E deu no vinte. Não
há hoje
quem
não conheça, em
Vila Nova
de Pardais, na
Internet, no Facebook , no Twitter e assemelhadices
nanônicas, o compadre
Quim dos Nabos, o
mais
competente e
entendido
comentarista em
genéricos, sejam
eles
remédios, futebóis,
políticas
ou programas
de televisão.
O meu
compadre Zé
das Couves,
profundo
conhecedor das
idiossincrasias
humanas e orgulhoso de não ter cabresto que o
amarre a nenhum
banqueiro
ou partido
político, costuma
contar
uma estória
deverasmente
edificante, e que
mostra e demonstra o purismo aristotélico
do raciocínio do
compadre
Quim dos Nabos. Diz
ele, orgulhosíssimo do direito
de conhecedor e confidente:
O meu
compadre
Quim dos Nabos, tem uma filha, a minha afilhada Adozinda, a quem
ele, muito
moral e
pudicamente,
só deixa
namorar na sala
iluminada da casa
onde
vive. Uma noite, chegava o compadre a casa
vindo de um
debate
farmafutepoliticotelevisivo, diz-lhe a esposa,
a minha
comadre
Joaquina: Ó Quim, anda cá depressa, anda ver o que é que a tua
filha está a fazer
ali na sala,
e o que é
que
ela está a fazer?,
pergunta o compadre
Quim, está toda descomposta,
enroscada no namorado
em
riba do sofá,
diz a comadre Joaquina, e o que é que tu fizeste, ó mulher?,
e o que é
que
eu podia fazer?,
e o que é
que
tu podias fazer?,
ó mulher, essa é boa, vai lá e tira-me já
o sofá da
sala.
A navalha
de Hanlon sempre pegou os melhores pedaços
do beef cut tenderloin, apesar dos marimbondos
rascados pelos politicamente corretos: Nunca
atribuas à malícia o que pode ser adequadamente
explicado pela
estupidez. Sir Y. Smith Graves,
na sua monumental História Namasque da
Humanidade, diz que
Asalluigata de Unug, cortesão do rei
sumério Gilgamesh,
século
XXVIII a. C., foi o primeiro
político
que se ilibou de
acusações
de corrupção, declarando, enfático, ao rei boquiaberto:
não há regra
sem exceção.
E a moda pegou. E
tanto,
que neste nosso
século de regras
vivemos num século de exceções. Vai daí, não
havendo regra
sem
exceção, a
navalhada
hanlônica só pode
ser
regra se tiver uma
exceção. E que
melhor
exceção do que
aquele tira-me
já o sofá da sala,
havendo sala? Na
melhor
das hipóteses,
só
a rapidez (infelizmente
ainda não
nanônica, mas
já
mostrando a rapidíssima e fulgurante faceta) do raciocínio
aristotélico do
compadre
Quim dos Nabos.
Todo
sofá é devasso.
Adozinda é (fez de) sofá.
Logo, Adozinda é devassa.
Aqui chegado,
cumpre-me dizer que
o meu
compadre
Zé das Couves,
ainda que
pese ser meu amigo e um profundo conhecedor
das idiossincrasias humanas e um lídimo caráter, orgulhoso
de não ter cabresto que o
amarre a nenhum
banqueiro
ou partido
político, só
serviu de tiragosto para
apresentar
o seu quantiqualificativo compadre Quim dos Nabos.
O enxundiosíssimo prato feito da comunicação
social de Vila
Nova de Pardais,
paradigma
intrínseco
da comunicabilidade/comunicação
dos nossos dias. Não esquecer, por favor, que se o compadre
Quim dos Nabos
não
é um nanônico
roxo,
torcedor declarado dos binômios sim sim não não, muito antes pelo contrário é um conhecedor emérito
das qualidades testosterônicas e
laxativas das generalidades
culturais aladas na Internet, no
Facebook, no Twitter e em todas
as suas assemelhadices conformadas. A saponina do Mate Leão está aí e não me deixa mentir: use e abuse.
Por todas as suas
qualidades intrínsecas (e acima de tudo
pelas extrínsecas, Vila Nova de Pardais
pasmou com
noiva
Adozinda casando na igreja matriz, sorridente
e coradíssima, de véu e
grinalda, cheirando um
ramo
de flor de
laranjeira,
obra e graça
da retirada aristotelicamente
estratégica
do sofá da
sala
epicurista), o compadre
dos Nabos foi compelido pela diretoria
da Sociedade Cliopomenense de
Cultura
de Vila
Nova
de Pardais a apresentar-se como Príncipe
dos Intelectuais Pardalenses,
título
instituído pela
prefeitura
local e patrocinado
pela
ONG Irmãos Emaús -
Diversidade, Participação e
Solidariedade, visando incentivar e disseminar a cultura autóctone,
sempre jogada
às traças
pela
indiferença dos governos
da capital do ex-império.
Quem me deu a notícia foi um eufórico e comprometido
compadre
Zé das Couves.
Pedi-lhe que
me
arrumasse a comunicação do compadre Quim dos Nabos,
dado que
o meu compadrimento
não
alcançava as benesses interpessoais daquele que,
em Vila
Nova de Pardais
passa por
ser (e todos
têm certeza
que
é), o mais
competente
e entendido
comentarista
em genéricos,
sejam eles
remédios, futebóis, políticas
ou
programas de
televisão. Deixe comigo,
compadre. Deixe comigo,
que
eu lhe
arrumo a papelada,
nem
que tenha que
a roubar. O
compadre
quer o resumo
que ele
leu para a diretoria
da Sociedade, ou
quer a escrevinhação inteira que ele levou ao padre
Ilídio, para o gajo
lhe dar uma opinião? Quero a escrevinhação
inteira,
compadre. Muito
bem, diz-me o compadre
Zé das Couves.
Tê-la-á.
Transcrevo-a ipsis litteris.
Cabe-me aqui observar, entretanto, que
poderia apenas
dizer transcrevo-a
literalmente.
Mas sabendo eu
que uma citação
latina sempre
cai bem, fi-lo porque
qui-lo. Evidentemente, não deixando também
de levar em conta o exarado nas regras
de norma
culta
da APNT - Associação Pardalense
de Namasquismos Traducianistas, o mais aprumado tabulário
de bem escrever depois que
Kullassinaga de Kish, poeta
sumério
do XXIX a. C., quantificou e qualificou os
padrões
de como deve
ser
formulado e apresentado um texto que se quer bem escrito. Escorreito
e comunicativo. |
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DIZEM OS
ENTENDIDOS
por
QUIM DOS
NABOS
Cidadão
pardalense, com muita
honra
Comunicação
apresentada por
ocasião
da diplomação do
Autor
como
Príncipe
dos Intelectuais
Pardalenses
na sede
da Sociedade Cliopomenense de
Cultura
de Vila
Nova
de Pardais,
aos 19 dias
do mês de
dezembro
de 2010,
data
do 14º aniversário da
morte
do sempre lembrado
ator
Marcelo Mastroianni |
|
1
Dizem os
entendidos
que na Natureza
a perfeição é sempre
inversamente proporcional ao Absoluto. Que quanto mais eu penso, que quanto mais eu raciocino, que
quanto mais
eu pergunto, que
quanto mais
eu questiono,
mais
a minha
consciência
me torna
relativo e mais
o Absoluto se distancia.
Mas
eu pergunto: quem
conhece pessoalmente o Absoluto para saber se ele se
distancia
ou aproxima?
2
Dizem os
entendidos
que o maior
progresso do ser
humano sempre
foi a velocidade. Que
durante milênios
o padrão foi o
andar.
Que as distâncias
eram grandes e os
homens
esperavam chegar ao
fim
da vida, chegando ao fim dos caminhos.
E que a
Humanidade
caminhava lentamente e percorria devagar as terras
descobertas.
Mas
eu pergunto: e
onde
estavam os cavalos, se sempre houve cavalos?
3
Dizem os
entendidos
que Hipócrates e Galeno não curavam resfriados
e que Aristóteles
também
não sabia que,
se todos os
metais
conhecidos eram
sólidos,
nem todos
os metais a
conhecer
teriam que ser
sólidos. E que
se Protágoras desconhecia que o Universo se expandia entre
cinco e dez
por cento
em cada
bilhão de anos
e tinha
alguns
buracos negros,
(3) sabia, pelo
menos, que
o homem
era
a medida de todas as coisas.
Mas
eu pergunto: quem
mediu todas as coisas
para
saber se o homem
era a medida
de tudo
isso?
4
Dizem os
entendidos
que hoje
nós voamos pelo
Cosmo e medimos todas as distâncias, e que
a Terra ficou menor
do que o
menor
dos caminhos
que
Protágoras percorria em Abdera. Mas que nada mais
conhecemos de nós
próprios
do que Protágoras conhecia de si mesmo. E que também não curamos resfriados.
Que nós
sabemos, apenas,
que
nem todos
os metais
são
sólidos e presumimos que o Universo
é composto por
100 bilhões de
galáxias
e atinge a massa de 316 000 000
000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 de
quilogramas. (4)
Mas
eu pergunto: quem
mediu e pesou o Universo, se ainda não
curamos nem
resfriados?
5
Dizem os
entendidos
que configuramos o
Universo
numa equação
matemática
e imaginamos que a
velocidade
a ser atingida pelos
taquíons, quando forem descobertos, (5) será maior
do que
a da luz.
Mas
que, na
contrapartida,
também destruímos
tudo
que fazemos na
razão
direta da velocidade
dos nossos
cálculos.
Mas
eu pergunto: se puder
haver
uma velocidade maior
do que a da
luz,
não terá que
haver também
uma superluz que
nos
ilumine a todos e
nos
mostre, sem
sombra
de dúvida, o
que
é o bem e o que
é o mal?
6
Dizem os
entendidos
que da machadinha
acheuliana do homo erectus à espada e ao fuzil
foram milênios e
milênios
de lento
caminhar.
Que do fuzil
aos engenhos
nucleares
decorreram apenas
alguns
anos. E que
o que
milhões
de homens fizeram
com
clavas, com
espadas e com
fuzis, nós fazemos,
sozinhos,
com uma bomba.
E em
segundos.
Mas
eu pergunto: se
assim
não fosse, onde
estaria o progresso
tecnológico,
sempre atento
ao nosso
bem-estar?
7
Dizem os
entendidos
que nós
fissuramos o átomo e
esquadrinhamos quasares a 14 bilhões
de anos-luz, e que a clonagem humana
já não
é mais
ficção.
Mas que,
a nós
próprios,
nada de positivo
acrescentamos. Que
apesar
da nossa
pompa
e circunstância
apenas
conseguimos estar
presentes.
Como estão
presentes
as pedras
que
pisamos nos
caminhos.
Mas que
essas pedras existem desde o começo
do tempo e continuarão existindo até ao fim do tempo, e nós
desapareceremos quando morrermos. Cada vez mais sós e com mais medo, e muito mais angustiados. Porque,
a cada
dia
que passa,
apesar de nos
dizerem que somos a
mais
perfeita criação
da Natureza,
mais
e mais
nós
somos obrigados a
justificar
que ainda
somos. Ou na
solidão
do suicídio ou
no divã do
analista.
Mas
eu pergunto:
alguém
gostaria, hoje, de
viver
como viviam os
nossos
antepassados das
cavernas?
8
Dizem os
entendidos
que apesar
de todas as certezas e de todas
as afirmações categóricas, tudo
continua como era. Que, a não
sermos nós,
nada, na Natureza,
sabe que
nasceu para morrer. Que os que
sobrarem do próximo
inverno
nuclear morrerão como
morria o nosso
bisavô
das cavernas.
Só
que muito
mais maciça
e muito
mais
prosaicamente.
Que
se não formos desintegrados ou envenenados pela
atmosfera poluída, morreremos por falta de água ou por deficiência
imunológica. E com a
desvantagem
de termos
carregado
a vida
inteira,
dentro de nós,
o nosso medo,
a nossa
angústia
e a nossa
solidão.
Que na era
do bilionésimo de
segundo
o nosso próximo
não existe. Que
não há tempo
de encontrá-lo.
Mas
eu pergunto: não
valerá mais
um
bilionésimo de
segundo
bem vivido do
que a eternidade
inteira desvivida?
9
Dizem os
entendidos
que, com
a maior
pompa
e ainda
maior
circunstância,
nos
dizem que somos a
mais
perfeita criação
da Natureza.
Mas
que nós
sabemos que
não
somos. Que
nós
somos, apenas, a
mais
iludida criação da
Natureza.
Que um
simples mosquito
pousa no nosso
ombro e viaja de graça
o tempo
que
quiser. E que
nós
nem de graça
podemos viajar. Que
se entramos num táxi, ou num ônibus, temos que pagar. Ou, então, que temos que matar o motorista e tomar o lugar dele.
Mas
eu pergunto:
mesmo
sabendo tudo
isso,
alguém gostaria,
hoje, de morrer de
fome
e de frio,
dentro
duma caverna
sem
o mínimo conforto?
10
Dizem os
entendidos
que, apesar
de dizermos que sabemos o que aconteceu no primeiro segundo após a grande explosão
do Universo (Big Bang) (6) e de
esquadrinhar quasares
a 14 bilhões de
anos
luz, cada
vez menos
sabemos de nós
próprios.
Que se há mais
de dois mil anos nos
disseram, “o
homem é a medida
de todas as coisas, das coisas que são enquanto são, das coisas
que não
são enquanto
não são”
(7) , hoje apenas nos
sabem dizer, “acerca
daquilo de que se não pode
falar, tem que
se ficar em silêncio”. (8)
Mas
eu pergunto: se
tudo
que sabemos de
tudo
não nos
torna melhores,
será que a
ignorância
nos tornaria mais
felizes?
11
Dizem os
entendidos
que nós
existimos como
tudo
existe. E que,
além
de existir, nós
também somos. Mas
que nem
por isso
permanecemos. Que
quem
permanece são as
coisas
que nos
cercam. E sem precisarem
justificar-se. A sua
própria
eternidade as justifica.
Pois,
além de comporem o
espaço,
ainda existem no
tempo. E nós
não. E que,
por
isso, nós
somos o que somos. Os carregadores dos mosquitos
que pousam nos
nossos ombros
e viajam de graça o
tempo
que quiserem.
Porque,
além de
carregadores
de mosquitos e de sermos a única criação
da Natureza
que
sabe que nasceu
para
morrer, nós
somos apenas
prisioneiros
do volume.
Que
se não o fossemos,
não
viveríamos no espaço e no tempo. Viveríamos só
no tempo. Seríamos
eternos
e não precisaríamos
justificar-nos.
Mas
eu pergunto: quem
gostaria de viver só
no tempo,
sem
corpo e sem
sentidos para
gozar as coisas
boas da vida?
12
Dizem os
entendidos que se olharmos da nossa
janela o topo
da montanha
que
se vê na
linha
do horizonte, essa será a distância que
delimitará, exatamente, o nosso campo de visão. Que se nós subirmos a montanha,
aparecerão outras montanhas e o nosso campo de visão aumentará na razão
direta da altura
em que
subirmos. Que se
nós
pudéssemos subir
infinitamente, o nosso
campo
de visão
também
aumentaria infinitamente. Mas que, apesar de tudo,
o alcance do nosso
olhar não
dependeria da altura em que subimos.
O nosso olhar
é finito. É
como
nós. Mesmo
que nós
pudéssemos aumentar,
infinitamente, o nosso
campo
de visão,
isso
não significaria
que
nós pudéssemos ver
infinitamente.
Mas
eu pergunto:
alguém
poderá subir
infinitamente?
13
Dizem os
entendidos
que considerada a
distância
entre a
machadinha
acheuliana do homo erectus e os engenhos nucleares
dos nossos
dias,
nós poderíamos dizer
que abrimos as
portas
da perfeição. Nós
passeamos pelo Cosmo
e revolvemos o núcleo dos elementos com o
mesmo desembaraço
com que
o nosso
bisavô
das cavernas bebia nas fontes ou
caçava nas florestas. Mas que é, apesar de tudo,
apenas a velocidade
que nos
diferencia. Nós desapareceremos, como ele
desapareceu, a cada
geração.
Mas
eu pergunto: se
tudo
que nasceu, nasceu para
morrer, não
será melhor
morrer
com conforto
do que morrer
ao Deus dará?
14
Dizem os
entendidos
que no início
era só
a força e a
distância
do além.
Que
o pensamento
não
ultrapassava o próprio
homem
e a montanha limitava o fim do horizonte.
Que o ato
de viver reduzia-se a
matar
e a morrer. Que
apenas sobreviviam os mais fortes e a
morte era a recompensa dos vencidos. Mas
que a montanha
foi escalada e que
o homem,
nada
mais tendo que
olhar à sua frente, olhou à sua
volta, e não
viu nada e teve
medo.
Mas
eu pergunto: e se o
homem
não tivesse subido a montanha não
teria medo?
15
Dizem os
entendidos
que foi, então,
que o mundo
se fendeu, e os mais cínicos criaram os ideais
e os mais
crédulos
morreram em
nome
deles.
Mas
eu pergunto: seríamos nós tão humanos como
somos se não tivéssemos ideais?
16
Dizem os
entendidos
que um
fosso separou as duas partes e, em cada margem, orgulhosos, os sobreviventes se proclamaram
verdadeiros. Uns afirmando que a verdade pertencia ao indivíduo
e outros afirmando
que
a verdade só poderia ser determinada pelo grupo. Mas que o objetivo não era a verdade. Nem o indivíduo, nem
o grupo.
Que
o objetivo
era
o poder. Atravessar
o fosso e esmagar o inimigo.
Mas
eu pergunto: se
nós
não derrotarmos os
nossos
inimigos, eles
não nos
derrotarão?
17
Dizem os
entendidos
que no estágio
em que
se encontra a
Humanidade
(as afirmações cada
vez
mais categóricas e o
ser
humano cada
vez mais
solitário) só
um fator
permanece inalterado. A angústia do fim de tudo. Que a existência
depende, apenas, de
um
botão. Que alguém, algum dia, apertará em
nome da paz.
E que, ou
se fortalece a parte
para
fortalecer o todo,
ou o todo
sucumbirá.
Mas
eu pergunto:
alguém
sabe quem é e
onde
está o seu
próximo?
18
Dizem os
entendidos
que a tecnologia
dos meios de
comunicação
tornou o mundo
tão
pequeno, que
os homens estão nas
portas
e nas janelas de todas as casas e podem até
conversar com
todos os moradores.
Mas
que a comunicação
é inversamente proporcional à comunicabilidade.
Quanto
mais informações
nos fornecem
menos
nós nos
comunicamos. Mais dirigidos nos sentimos.
Mas
eu pergunto: se
não
houvesse meios de
comunicação
seríamos todos
mais
humanos?
19
Dizem os
entendidos
que o homem
usa a palavra
para esconder o pensamento. Que
não diz o que
pensa, mas
que pensa
bem o que
diz. Que se dissesse o que verdadeiramente pensa,
não sobraria
ninguém
para contar a história da Humanidade.
Que é tudo
um faz de conta.
Mas
eu pergunto: não
será melhor pensarmos
bem
o que dizemos e sobrarmos todos, do que
dizermos
tudo que
pensamos e não
sobrar
ninguém? |
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Referências |
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ASIMOV, Isaac. A medida
do universo. 2 ed.
Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1986. p. 179.
GDDC. Gabinete de Documentação
e Direito Comparado. Carta Internacional
dos Direitos
Humanos.
Declaração
universal dos direitos do homem.
Disponível em:
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/cidh-dudh.html.
Acesso em:
12 maio 2011.
HAWKING, Stephen W. Uma breve
história do tempo:
do big bang aos buracos negros. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. pp. 75 e 138.
PROTÁGORAS.
Raciocínios Demolidores.Transcrito por Nicola Abbagnano. In:
História da filosofia.
5 ed. Lisboa: Editorial
Presença, 1991. p. 86. Vol. I.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado
lógico-filosófico. 3 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 142.
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Cunha de Leiradella (Póvoa de
Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que
escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder,
Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha
urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas
línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria
Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte:
caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento,
etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando
Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão,
1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em
Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt |
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© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
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