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É
para um livro feito a meias entre dois poetas portugueses muito
próximos, António Ramos Rosa e Manuel Madeira, que eu me proponho chamar
hoje a atenção. Trata-se de « Cartas Poéticas » entre os dois poetas, e
foi publicado em Outubro de 2007 pela Labirinto. Recolhe exactamente 67
cartas/poemas de cada um dos autores, isto é, 134 no total. Não é pois,
para os critérios normais em poesia, um livro pequeno.
Os
dois autores, e amigos, são praticamente da mesma idade, e quase
conterrâneos. Ambos são algarvios, Ramos Rosa de Faro, Manuel Madeira
de S. Bartolomeu de Messines. Nasceram ambos em 1924, a 21 de Agosto
Manuel Madeira ( ainda que neste caso as informações divirjam ), a 17 de
Outubro Ramos Rosa. Qualquer deles está, portanto, na casa dos seus
respeitáveis 84 anos, felizmente ainda lúcidos e actuantes. E nenhum
deles é o que se pode considerar um poeta pouco experiente.
Mais
conhecido sê-lo-á, inequivocamente, António Ramos Rosa. Desde sempre
dedicado à poesia, muito cedo abandonou as suas outras actividades __ de
professor e tradutor __ para se lhe consagrar por inteiro. O resultado é
uma produção torrencial, sendo quase impossível estabelecer a lista dos
títulos publicados e felizmente de todo inviável a organização de uma
qualquer « Poesia Completa ».
Reflexo dessa dedicação quase monástica é o crescente reconhecimento
público do seu papel enquanto poeta: em 1980 ganhou o Prémio do Centro
Português da Associação de Críticos Literários; em 1988 ganhou o Prémio
Pessoa; em 1989 o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores (
que viria a repetir em 2006 ); em 1991 ganhou o Prémio Bienal de Poesia
de Liège e foi poeta europeu da década galardoado pelo Colégio da
Europa; em 1992 foi o vencedor do Prémio Jean Malrieu. As distinções
honoríficas são a outra face deste reconhecimento: Grande Oficial da
Ordem de Santiago da Espada em 1984; Grã-Cruz da Ordem do Infante D.
Henrique em 1997; Doutor Honoris Causa pela Universidade do Algarve em
2003.
Refira-se, ainda, que em António Ramos Rosa o ofício poético tem
co-existido com o de pensar sobre o mesmo, em termos ensaísticos e
críticos. ( Creio que foi ele o primeiro a publicar na imprensa
recensões sobre livros ainda não saídos. ) E ultimamente o grande poeta
até se tem destacado no desenho __ e nessa actividade já várias vezes se
mostrou ao público, e com assinalável êxito, dizem as crónicas.
O
curriculum de Manuel Madeira, forçoso é reconhecê-lo, é menos
impressionante. Viveu em Lisboa a maior parte da sua vida activa __ à
semelhança de Ramos Rosa, aliás __, como empregado de comércio e técnico
agro-alimentar. Várias vezes perseguido pela PIDE foi colaborando
poeticamente __ e não só __ onde o deixavam. Está representado em várias
antologias, das quais se destacam a da poesia portuguesa do pós-guerra,
1945/1965, coordenada por Afonso Cautela e Serafim Ferreira para a
Editora Ulisseia, e, por várias vezes, nos Cadernos de Poesia Viola
Delta, dirigidos por Fernando Grade.
Em
1998 a Universitária Editora incluiu-o na Antologia de Homenagem a
Federico Garcia Lorca e em 2004 eu próprio tive o grande gosto de o
convidar a participar na colectânea de homenagem a Pablo Neruda que, por
ocasião do centenário do respectivo nascimento, para essa mesma editora
então organizei. ( Comove-me sempre muito que Manuel Madeira refira
explicitamente esse facto nas badanas dos seus livros. É um
comportamento raro, além do mais. )
Mas
em termos de livro mesmo eu creio que o primeiro que Manuel Madeira
publicou, indiscutivelmente digno do nome, terá sido o volume de 2004,
chancela da Editorial Minerva, « No encalço do real inalcançável »,
reunindo poesia de mais de 50 anos ( 1949 – 2004 ). E em 2007, quase
simultaneamente com o volume das Cartas Poéticas de que aqui tratamos e
com semelhante formato gráfico ( ainda que sob a chancela Atelier /
Produção Editorial ), saiu um outro volume « Um pouco de infinito em
toda a parte ».
Pois
foram estes dois amigos, oh meus amigos, que há pouco resolveram dar
público testemunho de uma tradição poética de tão nobres pergaminhos
como é a epistolografia. Os dois amigos decidiram escrever-se em verso
__ e é o resultado desse exercício que no presente volume nos é
apresentado. Essa sua iniciativa merece ser devidamente registada e
enaltecida __ e é esse louvor, e exposição de modelo que oxalá pudesse
originar muitos outros praticantes, que eu aqui pretendo assumir.
A
carta é uma das modalidades poéticas de mais antigas tradições. Na Roma
imperial, pela pena de Horácio, atingiu um dos seus pontos de mais
elevada perfeição. No Renascimento retomou-se essa prática, e em
Portugal foi cultivada, e às vezes com brilho, pelos mais distintos
poetas desse século de seiscentos, como Sá de Miranda, António Ferreira
e Luís de Camões. Depois o modelo seguiu, com altos e baixos, e Bocage
foi, no raiar do século XIX, um dos seus mais capazes praticantes.
Recordo-me bem de, quando há quarenta anos comecei a ler poesia, sem
grande método nem orientação de quem quer que fosse, ter ido parar à
edição das obras completas, em seis volumes, que o Professor Hernâni
Cidade organizou para a Bertrand. E logo as cartas me pareceram uma bela
disciplina __ para um poeta principiante.
No
caso em apreço não é de escola de poetas que se trata. ( Ambos passaram
as suas provas com mais do que distinção e louvor. ) Mas o mérito de
voltar a pegar nesse molde, esse permanece __ e é essa experiência que
eu gostaria de ver mais seguida e experimentada. Estou convencido, como
decerto poderia dizer Fernando Pessoa ( pela voz de Álvaro de Campos ),
que com ela nada perderia a poesia. Muito pelo contrário, até poderia
ser que lucrasse __ como decerto lucrou com este notável exemplo que
António Ramos Rosa e Manuel Madeira resolveram levar a bom porto.
E são
cartas mesmo, oh meus amigos. António Ramos Rosa é quem toma a
iniciativa e desencadeia o processo. Manuel Madeira responde às
iniciativas dele __ e é assim em todo o livro, uma sucessão de
carta-resposta. Se um abre o volume o outro o fecha. São 67 missivas em
cada sentido, como dissemos. Segundo informações que me foram pessoal
__e epistolarmente! __ prestadas por Manuel Madeira, o tempo desta
correspondência, ideia e iniciativa de António Ramos Rosa, foi o período
de 1995/1996.
Não
houve concertação prévia quanto a objectivos ou temas a tratar, ao sabor
do acaso ou da disposição de momento ambos se tendo confiadamente
entregue… Mas Manuel Madeira era o que, por vezes, mais se atrasava na
resposta: e daí as referências mais explícitas a uma ou outra carta de
Ramos Rosa __ para ele saber a que carta sua, cada uma de Manuel Madeira
então respondia, pois é razoável admitir que este, para recuperar o
tempo perdido, de vez em quando lhe mandasse mais do que uma no mesmo
correio. E depois, não se sabe bem porquê, o exercício terminou.
António Ramos Rosa inicia o processo e marca o tom, como se diria de uma
apresentação musical. O seu texto é marcado por uma maior capacidade
imaginativa, ele é mais metafórico e afirmativo. No geral Manuel Madeira
responde-lhe, concorda com ele, explicita um pensamento, dá pormenores.
Ele é o único que cita versos do seu correspondente __ e é mesmo o
único, creio, a citar também outros autores. Os poemas de Ramos Rosa, no
geral, são mais curtos; os de Manuel Madeira quase sempre mais extensos.
Qualquer deles utiliza o verso livre e longo, organizando o fluxo
discursivo com recurso predominante a uma ou duas estrofes. Creio que
António Ramos Rosa jamais utiliza o verso da página; Manuel Madeira
fá-lo com alguma frequência.
Os
temas tratados nem sempre se adequam a um registo epistolográfico; em
alguns casos parece-me que se trata de poemas suficientemente autónomos
que tanto poderiam estar neste livro como em outro qualquer. Poderia
exemplificar com algumas « cartas » de António Ramos Rosa: sejam as
número 15, 23, 29, 36, 40 ou 46. Em alguns casos, também, a divisão
efectuada parece-me artificial: os poemas 44 e 45, por exemplo, bem
poderiam ser entendidos como um único. O segundo é a natural continuação
do primeiro, porquê a divisão Poeta António Ramos Rosa?
Acrescente-se ainda que António Ramos Rosa publica sob esta forma de
cartas excertos do longo « prefácio epistolar » com que em 2004 «
apadrinhara » o grande livro de Manuel Madeira, Na verdade esse prefácio
começa por reunir, sucessivamente, o que aqui são as cartas número 9, 13
e 51. Depois vai por outro caminho, provavelmente original. ( Vista a
cronologia de que Manuel Madeira me deu conhecimento é claro que as
coisas se passaram ao contrário: na altura de fazer o prefácio Ramos
Rosa foi-se às cartas e aproveitou algumas. É justo, tanto mais que as
mesmas eram então inéditas__ mas uma notazinha, agora, não faria mal. )
Manuel Madeira faz-se muito eco duma pretensa explicação científica do
universo, tudo pretendendo saber e explicar __ o que parece ser uma
espécie de sua marca pessoal, pois também comparece em outras obras.
Nesse registo, no entanto, digamos até que por ele porventura limitado,
o poeta constrói belos poemas, muito me agradando referenciar alguns que
particularmente me tocaram.
O
poema 61, por exemplo, é uma bela antevisão do que trará a morte. No
poema 54 explicita a satisfação que ainda lhe dá o encontro sexual __ de
alguma forma se fazendo eco, mas mais concreto e positivo, do
masturbatório prazer que António Ramos Rosa refere no seu poema 43,
imaginando a nudez de uma rapariguinha ( qual figura de Botticelli ) que
não será dele.
Eram
frescos, na sua juventude, estes dois amigos. Mas… o que é que eles
haviam de fazer, se as costureirinhas colaboravam e o fresco das tardes
de Verão debaixo das figueiras próximas de tanques e poços a outra coisa
não convidava?! Leiam, por exemplo, os poemas números 9 e 20 de Ramos
Rosa __ e as respostas de Manuel Madeira __ e imaginem o que por ali se
terá passado. Ah!, não se esqueçam, também, dos vinte anos que então
tinham.
Os
temas desta correspondência são muito variados. Sendo António Ramos Rosa
a dar o tom por ele me guiarei. Ele faz-se eco do seu ofício de poeta,
recorda os tempos da juventude, pergunta-se se os sonhos ainda
persistem. Conta histórias __ como no poema número 37. Umas vezes é
amargo e pessimista, outras é mais solar e epifânico. Nem sempre é
claro, alguns poemas afiguram-se pouco compreensíveis. Ele fala sobre
realidades exteriores quais sejam o tempo, o vento, o fogo, o espaço, o
desejo… o desejo sexual, na verdade, está muito presente, e em qualquer
deles, seja sob a forma de experiência, observação ou metáfora. Por
vezes dirige-se claramente ao seu interlocutor, outras nem tanto.
Eu
creio, pois, em resumo, que este é um belo livro __ e que o é para
qualquer um dos seus dois autores. A ambos deverá ser creditado este
louvor de se abalançarem à nobre tarefa de recriar a correspondência
enquanto modalidade poética. Que muitos outros poetas se imponham a si
mesmos uma semelhante disciplina __ e que muitas outras cartas, com ou
sem resposta, possam vir a ser publicadas.
E eu
sinto que não me poderei eximir ao desafio de dar um exemplo da arte
poética de cada um dos poetas participantes. Não é nada fácil, sobretudo
querendo escolher um par mensagem – resposta. Não podem ser muito
grandes, nem pressupor o conhecimento de textos anteriores. Mas tenho de
correr o risco e assim sendo, tudo ponderado, decido-me pela « carta »
número 35, com a vantagem de o aspecto formal ser semelhante em ambos os
poetas, uma estrofe apenas, com 16 e 19 versos, respectivamente. « Eu
não sei mas não sabendo eu sei que não sei », começa António Ramos Rosa.
« Paro para escutar melhor o grito da criança », responde-lhe Manuel
Madeira, pegando na última imagem do interlocutor.
Pela
minha parte, oh meus amigos, o que eu sei é que nada substitui a leitura
integral destas « cartas » entre os dois grandes poetas, e velhos
amigos, que dão pelos nomes de António Ramos Rosa e Manuel Madeira. Com
esta recomendação termino, em jeito de adicional estímulo transcrevendo
os poemas seleccionados.
Cristino Cortes |