REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 27 | Maio | 2012

 
 

 

 

RUY VENTURA

A cal para caiar o universo

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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         Agostinho da Silva entrou na minha vida tinha eu pouco mais de dezoito anos. Nunca o conheci pessoalmente, mas ao longo de ano e meio mantivemos alguma relação epistolar. Não eram cartas circunstanciais as que fui recebendo do filósofo, mas textos que de uma forma concentrada, aforística, transportavam clarões que ainda hoje me iluminam. É certo que aproveitava, muitas vezes, as circunstâncias da minha correspondência ainda juvenil, mas aproveitava-as para lançar à terra sementes que só muito lentamente foram germinando.

         Sobre as comunidades linguísticas, económicas e políticas, por exemplo, disse-me em 24/5/1993:

         “A comunidade certa para Portugal tem agora início da parte do Brasil, […] é ainda imaginação dos do culto [do] Espírito que passaram às Américas no [século] XVI. Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Um dia iremos mais em frente e seremos uma Comunidade Mundial dos Povos de Línguas Ibéricas. Pense só na extensão disto. Veja só quanto mundo. Das Baleares a Timor […]. Capital? Cada um a tenha dentro de si – e, no mapa, a adore como lhe for próprio em todos os aspectos do concreto e do transcendente.

 

        No final da sua existência, Agostinho da Silva não escondia alguma desilusão em relação ao seu “apostolado”. Chegou a dizer-me: “em Portugal, já se escreveu bastante. Falta agir”. Um dia (17/3/1993), surpreendeu-me com uma máxima que passou a ser um farol, quase uma regra de vida: “O fundamental é que não acabemos por dentro – e o que temos que estabelecer é como vamos viver num mundo tão complicado. Temos que viver plenamente por dentro e daí tirar a cal para caiar o universo.”

Agostinho da Silva

 

         Este pensamento tinha confirmação nas suas convicções religiosas e no seu olhar sobre a criação humana e divina. A dada altura (22/9/1993) resolveu esclarecer-me:

         “Toda a religião que vale é apenas a crença que se pode ter seguido que não é demonstrável por matemática, e que é, quanto a mim, a Credibilidade Absoluta, aquilo que é totalmente o de que nós todos temos uma centelha, o sermos todos criadores, mais ou menos apreciados, o que não importa; seja como for, criemos. E para o enjoo que tantas vezes o diário traz, o mesmo remédio que se usa a tudo [?]: Olhar o horizonte e escutar o grito da chegada, mesmo que o não haja.

         Cristão com raízes na humildade da doutrina franciscana, ensinou-nos a transcender a existência, a chegar à vida pelo serviço: “A quem jamais me dá ordens / faço o que não apeteço / mas sou contra se alguém manda / pois sirvo, não obedeço.” Em 13/8/1993 fez chegar aos meus olhos talvez o seu maior desejo:

         “E quem sabe se não seremos todos um dia de uma Ordem Geral dos Irmãos Servidores, que só daqui a muito[s], muito[s] anos tenha estatuto e cuja Regra essencial seja a de nunca mandar, mas servir, e com gosto e com agradecimento.

         No dia em que esta aspiração profética se concretizar, terá o mundo um novo paradigma. Chegará então a fraternidade universal, a que muitos chamam a Idade do Espírito Santo. Que assim seja!

 

Ruy Ventura

 

 

RUY VENTURA (Portugal, Portalegre, 1973)
Professor na península da Arrábida. Publicou, em poesia, Arquitectura do Silêncio (Lisboa, 2000; Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores), sete capítulos do mundo (Lisboa, 2003), Assim se deixa uma casa (Coimbra, 2003) e Um pouco mais sobre a cidade (Villanueva de la Serena, 2004) e O lugar, a imagem (Badajoz, 2006 – no prelo). Organizou as antologias Poetas e Escritores da Serra de São Mamede (Vila Nova de Famalicão, 2002), Contos e Lendas da Serra de São Mamede (Almada, 2005) e Em memória de J. O. Travanca-Rêgo e Orlando Neves (na revista Callipole, nº 13, Vila Viçosa, 2005) e o livro José do Carmo Francisco, uma aproximação (Almada, 2005). Traduziu a antologia 20 Poetas Espanhóis do Século XX (Coimbra, 2003) e os livros de poemas Dias, Fumo, de Antonio Sáez Delgado (Coimbra, 2003), Jola, de Ángel Campos Pámpano (Badajoz, 2003) e A Árvore-das-Borboletas, de Anton van Wilderode (Badajoz, 2003). É colaborador de várias revistas nacionais e estrangeiras, nomeadamente espanholas, brasileiras e americanas. Como ensaísta, tem escrito sobre Poesia Contemporânea, Literatura Tradicional e/ou Oral e Toponímia.

 

 

© Maria Estela Guedes
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