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Completa-se agora um ano sobre o desaparecimento de José
Augusto Mourão, e muito mais do que isso sobre o de José Ernesto de
Sousa, a cuja sombra tutelar achei por bem abrir o Triplov. Dois grandes
amigos, duas personalidades determinantes na cultura portuguesa
contemporânea, que algo religa: a criação no campo da modernidade, a reflexão sobre as temáticas
inerentes e a promoção dos artistas que a representam.
Dois livros publicados agora no Brasil traçam uma
ponte entre os dois países, como deseja a coleção em que foram
integrados, criada na Escrituras Editora, originalmente, por António
Osório (Portugal) e Carlos Nejar (Brasil). É a coleção Ponte Velha, até
há pouco organizada por Floriano Martins, e que ainda não teve
oportunidade de ser bilateral. Até hoje, já umas dezenas de escritores
portugueses, na maior parte vivos, foram dados a conhecer ao público brasileiro, com edições
financiadas pelo governo português, mas ainda não surgiu uma editora
portuguesa disposta a emparceirar com a Escrituras para publicar em
Portugal autores brasileiros, recorrendo a subsídios do Brasil. É uma
pena, o desejo de uma ponte acabada assenta em práticas de partilha
que, na modernidade, partem já da revista Orpheu, com dois
diretores, um no Brasil, Ronald de Carvalho, e outro no nosso país, Luís
de Montalvor. Exorto os nossos editores, apesar do estado de calamidade
em que andamos à deriva, a que estudem um projeto de publicação de
autores brasileiros numa coleção igualmente chamada Ponte Velha, capaz
de suprir esta lacuna, deveras incompreensível. Afinal, apesar do
descalabro económico, Portugal tem apoiado os seus autores, falta o
Brasil cumprir a sua parte, em resultado de projeto de edição atraente
apresentado por uma editora portuguesa, homóloga da Escrituras.
Oralidade, futuro da arte? e outros textos -
1953-87 é o título de Ernesto de Sousa que responde ou interroga o
de José Augusto Mourão, Chão de signos. Dois livros que
recolhem ensaios diversos, em grande parte inéditos em suporte de papel. Ambos
postos sob o signo da linguagem, que em Ernesto de Sousa se centra na
oralidade, enquanto fonte da arte, e em José Augusto
Mourão, o mais irredutível dos semiólogos, como mundo em que vivemos,
enquanto seres do Logos. O volume de Ernesto de Sousa foi organizado
por Isabel Alves e prefaciado por José Miranda Justo. Contém ensaios de
enorme importância sobre as vanguardas e suas modalidades, desde
a fotografia, com Man Ray, até à poesia visual. Artistas como Vostell,
Filliou, Joseph Buys, são objeto de inquirição, decorrente até de
conhecimento pessoal do autor. Estes textos comunicam com ensaios sobre as obras
de arte do próprio Ernesto de Sousa, como é o caso do filme Dom Roberto, normalmente
considerado a porta para o cinema moderno em Portugal, ou de
instalações, como A tradição como aventura, Olympia:
fragmentos do meu discurso amoroso, e outros mais. O ensaio
Para Almada lembra uma das fontes de criação de Ernesto de Sousa,
centrada na figura de um dos grandes mestres do Modernismo, Almada
Negreiros. Com efeito, o vetor da oralidade como epifania da arte,
desenvolvido em parte na reflexão sobre os temas da ingenuidade e do (Re)Começar, do artista porventura
mais polivalente que Portugal já conheceu, deu a Ernesto de Sousa
oportunidade de realizar o filme Almada, nome de guerra,
enquadrado num espetáculo multimédia.
Lendo José Augusto Mourão, no seu póstumo «Chão de
Signos», prefaciado por Moisés de Lemos Martins, verificamos que uma das
vertentes que mais ocupou o seu espírito foi a Natureza. E atentando na
cópia de citações que fornece em abono desta ou daquela hipótese
relativa à Terra, também nos damos conta de que, se desde Aristóteles a
filosofia se dedicou ao natural, agora outra filosofia, e mesmo a
literatura, e a semiótica, se interessam pelo terreno - um chão de
signos
que, além de celulose e de discurso, é a biosfera.
Uma diferença de olhar: em geral, a filosofia,
representada no livro de ensaios de José Augusto Mourão, vê a natureza alterada pela ação do homem, mas não mudada na sua essência divina: o Homem perdeu o
sentido do divino que está lá, ou aqui, na nossa natureza. Porém a
ciência, ou a filosofia mais colada à ciência, sabe que é admissível
como hipótese que o universo seja obra de Deus, mas a Terra, com a sua
flora e fauna atuais, a biosfera dos últimos séculos deixou de ser obra
divina e passou a ser obra humana.
À arte contemporânea pouco importa o debate sobre o
natural e o artificial, tal como a separação entre o sagrado e o
profano: «Toda a arte é sacra», dizia Ernesto de Sousa. No caso de José
Augusto Mourão, dominicano, há a dizer que no atual paradigma
científico, evolucionista, a questão de Deus permanece quanto à fonte,
às origens primordiais do Universo. Porém, quanto ao estado atual da
biosfera, não é possível tomar o artificial como natural. A ação humana
está presente em toda a parte, contaminou toda a esfera da vida, daí que
pensadores existam a declarar que a natureza já não existe. Por muito que sejamos capazes de restaurar a divindade da Natureza,
transformando a biosfera num jardim, e jardim com constituição política,
como deseja José Augusto Mourão, esse jardim, no paradigma
evolucionista, será sempre artificial, porque fruto de seleção humana, o
que tem implicações biológicas conhecidas, como a rápida degradação
genética, e desconhecidas. O problema da discussão vem de ciência e
religião manterem, em demasiadas circunstâncias, um diálogo de surdos. |
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Maria Estela Guedes (1947,
Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta
Obscuro”, Lisboa, 1979; “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto
de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de
Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a
solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008;
“Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às
portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010;
"Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de
Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011;
"Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O
Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de
Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José
Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no
Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez,
cenografia de Fernando Alvarez e interpretação de Maria Vieira. |