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Transfigurada, a memória esvai-se e
queda-se nos longínquos anos de 1909.
Eram tempos finisseculares de
transição para um novo século.
Eram tempos iniciais, balbuciantes
de uma nova década.
Eram tempos de muita controvérsia.
Eram tempos localizados em plena
situação colonial.
Todavia sem indigenato, embora os
mandarins de então tentassem eternizar-se suplantando os cínicos
resquícios da sociedade colonial-escravocrata e da sua inevitável
estratificação em senhores, homens livres e escravos, e sua correlativa
estratificação das criaturas humanas em função da pigmentação da sua
epiderme em brancos, mulatos e negros, e o resto que entre eles pudesse
caber, e o demais que, por força de circunstancialismos inusitados, as
pudesse subverter.
E, como é sabido, Caboverde, a mais
pobre das colónias portuguesas, foi sempre pródiga na produção de
circunstancialismos inusitados. Diríamos até, inusitadamente pródigos.
Por isso mesmo é que a
estratificação social das ilhas nem sempre coincidia com a pirâmide
racial que nela dominava e tendia a agregar os seus habitantes numa
ordem desigual e profundamente injusta.
Nem mesmo na sociedade
colonial-escravocrata precedente daquela que agora ofegante respirava
sobre as suas ruínas e intentava soerguer-se dos seus escombros.
Singularizada pelas patentes
fragilidades das bases económicas e ecológicas nas quais assentava,
regularmente fustigada pelo suão, pelo cieiro e pela bruma seca, desde
sempre marcada por profundas cogitações e reminiscências
colonial-racistas devido à circunstância histórica de a mesma se ter
fundado, desde os seus primórdios nos tempos do achamento das ilhas, em
pressupostos socio-económicos irrefutavelmente assimétricos e
segregacionistas, a sociedade colonial-escravocrata erigida nas ilhas
ficou igualmente marcada pelos seguintes factores:
1.Um interiorizado instinto de
sobrevivência colectiva em face de ameaças várias, das quais podem ser
alinhadas as seguintes:
a) A carestia endémica e as fomes
provocadas pelas crises das estiagens (as famigeradas secas
caboverdianas).
b) As crises económicas, amiúde
resultantes do cerco do poder colonial e dos grandes interesses
económicos metropolitanos, os quais tinham na administração colonial o
seu porta-voz e guardião mais seguro e de que, nos fins do século XVIII,
a majestática e pombalina Companhia do Grão-Pará e Maranhão foi o
exemplo quiçá mais sinistro e paradigmático, porque portador de mais
longevas e trágicas consequências históricas.
c) Os frequentes assaltos de
piratas e de corsários oriundos de várias potências marítimas europeias
bem como as repetidas incursões militares de outras gentes estranhas ao
arquipélago, inimigas da coroa portuguesa ou dela e do seu império
marítimo transcontinental e dos seus súbditos ilhéus rivais no que
respeitava ao alargamento da sua hegemonia marítima e ao controle do
comércio transoceânico da altura.
Os mais célebres de entre esses
corsários foram seguramente Francis Drake e Jacques Cassard, tendo este
último desferido, em princípios do século XVIII, o golpe fatal e final
que conduziu à irreversível decadência da Cidade da Ribeira Grande, por
isso e doravante denominada Cidade Velha.
2. O pavor da desarticulação,
percepcionada como sempre iminente, das periclitantes bases vitais da
sociedade edificada no arquipélago, e do consequente desaparecimento da
entidade cultural que emergiu da atribulada e já multissecular história
do povo das ilhas, e, em conexão com isso, a premência sentida quase
unanimemente no sentido da preservação daquilo que fazia com que os
ilhéus caboverdianos fossem culturalmente eles próprios.
Neste contexto específico, foram
por demais relevantes, por um lado, o modo de produção nela dominante e
baseado na apropriação não só da terra e de outros instrumentários e
meios de produção, essenciais à vida económica, como também das próprias
pessoas sujeitas ao cativeiro escravocrata, e, por outro lado, o modo de
povoamento tanto das ilhas mais importantes como daquelas então
consideradas periféricas.
É esse modo de povoamento, aliás,
conforme com a mentalidade dominante na época da expansão europeia
trans-oceânica e da sua conjugação com o tráfico negreiro, que
determinou que a mão-de-obra trazida para as ilhas fosse essencialmente
de origem negro-africana e que o seu recrutamento se processasse
mediante a utilização de meios compulsivos e o frequente recurso a
métodos eivados da máxima crueldade. Deste modo, a sociedade implantada
nas ilhas, de estirpe nitidamente colonial-escravocrata, como já
referido, mesmo se dotada das peculiaridades ecológicas e psicossociais
acima referenciadas, criou e perenizou a sua ratio maior na
anatemização do africano escravizado nas ilhas e dos seus descendentes
negros e, em menor medida, dos seus descendentes mulatos e mestiços, a
par de reiteradas tentativas da expropriação da sua alma (isto é, da sua
identidade cultural).
A expropriação da identidade
cultural do negro trazido para as ilhas operou-se mediante o
empreendimento de multifacéticas acções para a sua domesticação
espiritual com vista ao seu desapossamento da cultura dos seus
antepassados africanos, a ostracização das expressões mais típicas dessa
herança afro-negra e as tentativas de extirpação dos seus sinais mais
ostensivos e, por isso, tidos por mais ofensivos dos ditames da moral
cristã e das normas de conduta da cultura europeia hegemónica, e,
segundo a lógica então dominante, potencialmente mais perigosos para a
subsistência do domínio das classes colonial-escravocratas e, mais
tarde, da unidade espiritual do império colonial português no solo
querido veementemente católico das ilhas.
Debalde, pois que os cativos
africanos lograram, em grande medida, adaptar a sua herança cultural
negro-africana à virgem ecologia da nova terra do seu desterro e às suas
novas condições de vida e de trabalho e ao seu confronto com a coação da
cultura e da sociedade colonial-escravocratas, ilustrada em especial, e
de forma assaz profusa, na sua catequização e ladinização forçadas.
Os seus descendentes negros e
mulatos nascidos nas ilhas, por isso, delas plenamente nativos,
seguiram-lhes os passos e consolidaram o processo da sua insularização e
da sua crioulização, preservando sobretudo o que fosse estritamente
necessário e/ou indispensável à sua sobrevivência física e espiritual e
nela incorporando, por iniciativa própria e/ou por força da coacção
colonial-escravocrata, o que da cultura do dominador se mostrasse
indispensável e compatível com as suas necessidades de sobrevivência
espiritual num novo mundo, até então deserto do ponto de vista
antropológico. É o que terá ocorrido, por exemplo, com a interiorização
dos valores de solidariedade com o seu semelhante dominado e de amor ao
próximo subjugado ou em estado de necessidade, da resignação, da
compaixão e do reconhecimento da igual dignidade de todas as criaturas
de Deus, incluindo dos escravos crucificados pelo destino que lhes foi
imposto pelos homens tal como Jesus Cristo, adorado como o Deus
encarnado dos cristãos, também o fora. Deste modo, o exemplo humano de
Jesus Cristo e outros valores humanistas bebidos na Bíblia veiculada
pelos padres e por outros protagonistas oficiais da expansão da fé e do
império, tiveram consequências contrárias das esperadas, muito devido à
acção dos profetas populares e de outros insubmissos intérpretes da
palavra do Deus dos cristãos, tendo esta muitas vezes servido de força
de alento e de resistência dos oprimidos pelo sistema
colonial-escravocrata e dos desventurados das muitas calamidades
provocadas pela natureza madrasta.
Paradoxalmente, este novo rosto
cultural nascido da violência de um parto especialmente doloroso e
trágico logrou atingir uma originalidade tal que, para além de o elevar
a factor de destrinça do ilhéu caboverdiano em relação a outros seres
humanos, seus semelhantes, incluindo aos seus antepassados directos,
negros e brancos, e aos seus contemporâneos integrantes da classe
colonial radicados nas ilhas, e, concomitantemente, de
auto-representação identitária, individual e colectiva, dos filhos das
ilhas meso-atlânticas e peri-africanas, alcandorou-o a factor de
contaminação de todos os que vieram e continuarão a vir nos tempos
vindouros pelo rosto castanho da terra e do seu habitante.
Isto dantes.
Em resultado da desagregação da
sociedade colonial-escravocrata (aliás, acontecida em tempo assaz
precoce no arquipélago caboverdiano) e de outras ulteriores mudanças
sociais então ocorridas nessa época finisssecular e que se estenderam
por todo o Novo Mundo das Américas, das Caraíbas, dos arquipélagos
atlânticos, de algumas faixas urbanas da Costa de África e de algumas
ilhas do Índico, a que acrescia de forma visível e notória a escassez de
recursos naturais tão característica das ilhas de Cabo Verde, os
escravos, ainda preto-negros e mulatos, metamorfosearam-se em rendeiros,
parceiros, proprietários minifundiários e pedreiros, os homens livres,
ainda mulatos, brancos e preto-negros (agora denominados pretos forros),
em merceeiros, jornalistas, artesãos livres, pequenos e médios
terratenentes e morgados.
Os grandes senhores, esses, embora
impossibilitados por força das condições climatéricas adversas de
transformarem os seus latifúndios em grandes plantações fundadas na
exploração do trabalho serviçal (indígena ou importado) e viradas para a
produção de culturas de rendimento destinadas à exportação, à semelhança
do que ocorreu em quase todas as economias escravocratas insulares na
sua transição para o capitalismo nas condições propiciadas por
independências políticas conduzidas pelas elites brancas crioulas ou de
plena implantação de um sistema colonial clássico, continuaram donos e
senhores, agora integrados nas categorias sociais dos morgados, dos
grandes comerciantes e dos altos dignitários da administração colonial.
Esses mesmos grandes senhores
continuavam a recrutar-se entre os reinóis (depois da queda e da
extinção da monarquia portuguesa denominados metropolitanos), tanto os
genuínos ou branco-alvos (como se auto-representavam os
cristãos-velhos portugueses vindos da Europa) como também entre os
cristãos-novos (tantas vezes meras máscaras sócio-religiosas dos cripto-
judeus que continuavam a ser muito tempo depois das conversões forçadas
ao cristianismo determinadas por D. Manuel I e que, por isso, se sentiam
obrigados a remeter-se à clandestinidade na prática do seu culto, dos
seus rituais e dos seus hábitos religiosos ancestrais).
Bastas vezes, a classe dos grandes
senhores constituía-se de brancos da terra (designação abrangente
na ilha do Fogo, historicamente a mais marcada pelo racismo anti-negro
e, por isso, a mais segregacionista do ponto de vista racial, dos
brancos crioulos (isto é, dos brancos nativos das ilhas, na maior parte
dos casos, falantes também nativos do idioma caboverdiano), e nas outras
ilhas, com destaque para a ilha de Santiago, dos abastados filhos da
terra e diversificados em brancos, pardos e pretos-brancos (isto
é, negros com estatuto social de branco devido à riqueza do seu
património material acumulado, segundo sólida fundamentação da
historiadora Iva Cabral) unidos em função da partilha tanto da cultura
colonial dominante (ou, pelo menos, dos seus aspectos socialmente mais
ostensivos e produtivos) como também da cultura nativa da terra (ou,
pelo menos, de alguns dos seus traços mais característicos, com destaque
para a língua da terra), das suas posses e da sua condição social de
donos de terras, de servos rendeiros ou parceiros e de outras alavancas
económicas ao tempo essenciais, enquanto armadores, mercadores e/ou
latifundiários.
É na diversidade racial da classe
dominante acima referida, concomitante com o acentuado empobrecimento de
muitos descendentes brancos dos povoadores europeu, a par das
especificidades do povoamento de algumas ilhas ditas periféricas,
dotadas de uma, proporcionalmente, significativa componente populacional
de brancos ou de mestiços brancos, que provocam profundas
mutações semânticas das palavras branco e preto (ou
preto-negro), doravante utilizadas não mais para a mera
categorização racial, mas sobretudo e predominantemente para a
caracterização do estatuto social dos indivíduos e da pertença classista
das pessoas.
Mantendo o seu fundo
colonial-racista, na medida em que se pressupunha que a riqueza em bens
materiais (bem como o saber erudito escolar de cariz obviamente
ocidental) provocava necessariamente a elevação das pessoas a um
estatuto mais digno e respeitável, designadamente ao estatuto de senhor
que, nos primórdios e nos tempos áureos da escravocracia, era
monopolizada pelos brancos), a nova semântica de categorização
socio-cultural é, a um tempo, produto e reflexo da chamada ascensão
económica, social e cultural do negro e do mulato das ilhas tão do gosto
dos claridosos (em particular de João Lopes e Baltasar Lopes da Silva,
optando este último, o seu maior entusiasta, a mais das vezes, pela
denominação aristocratização económica, social e cultural do negro e do
mulato de Cabo Verde) os quais, pela primeira vez, intentaram, logo nas
páginas dos números um e dois da revista Claridade, teorizar esse
fenómeno característico das ilhas e emergente da impossibilidade
resultante das fragilidades estruturais da grande maioria das ilhas de o
branco, quer o português quer o crioulo, impor com exclusividade e de
forma duradoura no período colonial pós-escravocrata a sua hegemonia
económico-social e cultural. Tais condicionalismos foram muito
exacerbados com a paulatina decadência e a queda definitiva no primeiro
quartel do século XX do poderio dos morgadios e dos sobrados da ilha do
Fogo, o derradeiro baluarte de uma dominação social e político-social
fundada no poderio dos brancos da terra e na ostensiva
discriminação social e na despudorada segregação racial dos negros e
mulatos.
Tempos praianos, os antigos, de atribulada transição finissecular, e os
mais recentes, de saudade, recordados por olhares vários tanto de
praienses adoptivos como também de praienses de gema
Alheia a essa cogitações, a vida
prosseguia o seu curso atribulado no “arquipélago das secas e das fomes”
(ainda não eram correntes as expressões “ilhas do Sahel” ou “Sahel
insular”, como também estava arredado do tráfego linguístico comum o
termo “Macaronésia “- considerou à margem o sábio-mor da cidade,
remetendo para mais tarde a cabal elucidação dessa questão, sobretudo
dessa sua última e controversa vertente).
E, contra a fúria e os vaticínios
dos metropolitanos recém-chegados e daqueles outros refastelados no
aconchego burocrático do Terreiro do Paço, e em infracção das proibições
exaradas nas portarias e editais dos governadores e nas posturas das
câmaras municipais, falava-se o crioulo, dançava-se o torno, repicava-se
a txabeta, cantava-se em tom profético a finason nos terreiros do batuco
das vésperas dos casamentos, dos baptizados e das noites recolhidas na
alegria das boas colheitas, afinavam-se as reminiscências de francês das
palavras de comando dos passos da mazurca, bailava-se ao som do landum,
tocava-se, cantava-se e dançava-se a morna nas tocatinas, nas serenatas,
nos salões de baile e nas festas do fim de ano, as pessoas humildes de
posses auto-organizavam-se em tabancas e confrarias de rezas e socorros
mútuos, os letrados associavam-se em grémios defensores dos interesses
de Cabo Verde e das suas gentes, mas também em clubes dinamizadores da
leitura, do republicanismo, das músicas da terra de teor mais
acentuadamente europeu, do jornalismo e da disseminação da instrução, do
nativismo, da adjacência e da autonomia (“alguns precoces na rebeldia
falavam já em independência, décadas depois do arcabuzamento de
Gervásio, Narciso e Domingos” - interrompeu o poeta adoptivo da cidade,
ex-empregado do comércio e correlativos, ex-sindicalista, ex-combatente
da liberdade da pátria, vate reputado no amor e no desatino, autor de
contos, de novelas e de uma peça teatral sobre a sublevação
anti-escravocrata do Monte-Agarro, ainda escritor praticante, assíduo
nas páginas das revistas literárias e dos livros, mesmo se envolto numa
cegueira precoce, conquanto previsível. E acrescentou: “porque se vivia
em sistema colonial, os reinóis ( relembro-te que assim eram denominados
esses mesmos europeus que passaram a ser chamados metropolitanos depois
da implantação da república em Portugal e nas suas colónias), mesmo
quando de modesta condição e/ou suficientemente integrados nas
expressões sociais e culturais dos autóctones, beneficiavam sempre de
tratamento privilegiado em relação aos nativos, mesmo quando oriundos de
categoria social similar. Tanto mais que eram portadores dos sacros
odores da pia baptismal da pátria lusitana e portadores
das expressões, mesmo as mais rústicas ou saloias, da cultura colonial
dominante, estrangeira por definição como é sabido, ainda quando
incorporada pelas classes sociais autóctones altas de forma justaposta
às expressões mais elitistas da cultura nativa, numa estratégia de
partilha de um mínimo cultural comum com as classes coloniais-
como, aliás, sustenta um proeminente académico das novas gerações-, e de
forma marginal pelas camadas populares remediadas e mais pobres
reiteradamente denegridas na prática dos seus usos e costumes, em
especial os de matriz rural, e constantemente sujeitas à catequização e
às políticas da assimilação à cultura da metrópole colonial).
Discursava-se pela voz afectada dos
letrados da terra em português-padrão rebuscadíssimo, insultava-se,
chicoteava-se, proclamava-se a bem-aventurança da pátria lusitana, da
saga extraordinária da nação valente, imortal, e dos seus
heróis do mar, dos navegadores, dos conquistadores, dos
missionários, dos governadores, dos exploradores das partes inóspitas de
África e de outros disseminadores da fé cristã, da civilização ocidental
e do império colonial português (“encontravam-se ainda em situação de
contra-mão as eventuais congeminações sobre a comunidade lusíada de
língua e de afectos que viria a ser destilada pelos teóricos do
luso-tropicalismo e a sua afectação aos desígnios colonial-imperiais do
Portugal uno e indivisível de Minho a Timor”- exalta-se o outro poeta
dilecto da cidade, de tez escura, apesar da parcial ascendência branca,
e cabelos crespos e esponjosos, brancos como o algodão de chão bom,
celebrizado como convicto adepto do regresso, tanto cultural como0
político, do povo das ilhas à dimensão africana da caboverdianidade e
fervoroso praticante da postulação irritada da fraternidade
proclamada, vivenciada e poeticamente sedimentada por Aimé Césaire).
Já existia o plateau,
todavia sem a designação francófona trazida pelos caboverdianos
regressados - ou vindos pela primeira vez à terra dos antepassados
ilhéus-, no período pós-independência, de Dakar, de Abidjan e de outras
urbes da terra firme africana vizinha.
Já existia o plateau,
dizíamos, todavia sem a apoteose onomástica de ser a parte alta da
cidade da Praia de Santa Maria da Esperança e da Vitória.
Já existia pois a cidade alta do
plateau. Todavia, sem alguns atributos futuros, ademais precocemente
despojado de alguns signos de saber e do sagrado de uma capitalidade
digna desse nome como o seu Liceu Nacional ou as pedras episcopais de
uma Sé Catedral, todavia detentora do monopólio todo e inteiro de
ser a cidade, a única, da Praia, a Riba-Praia, a cidade capital da
colónia/província, com o seu Palácio do Governador, a sua Igreja Matriz
(entretanto, a Catedral-símbolo da Diocese de Santiago de Cabo Verde
ia-se definhando com as ruínas da Cidade Velha), a sua Praça Grande, os
seus Paços do Concelho, o seu Quartel de Artilharia, as suas lojas, as
suas repartições públicas, as residências dos altos funcionários do
Estado, a sua Escola Grande, o seu Teatro Maria Pia (demolida mais tarde
para dar lugar ao caixão avarandado que responde por Teatro Municipal da
Praia e cujo projecto arquitectónico foi encomendado a um engenheiro
metropolitano em missão na província), a sua Biblioteca/Museu Municipal,
entre outros edifícios públicos mais vistosos.
Todavia amputada porque depois
despojada do seu Liceu Nacional, o primeiro implantado em Cabo Verde,
sonhando tão-somente com um lugar-semente, com um templo do saber que
fizesse jus ao seu duradouro estatuto de cabeça, de facto ou de jure, da
colónia/província ultramarina e a pudesse, assim, alcandorar a farol das
ilhas, como tinha ocorrido com a imprensa escrita, a qual vira nascer,
em 1877, no seu seio, o seu primeiro exemplar privado, sintomaticamente
intitulado O Independente, e atingira dentro dos seus muros o seu
apogeu, a sua idade de ouro. Tão destemidas e magníficas que foram as
penas de Eugénio Tavares, Pedro Cardoso e de uns tantos outros,
capitaneados por Nho Ogénio e sustentados financeira e logisticamente
por Abílio Monteiro Macedo!
Quantas agitação cidadã e coragem
cívica aquelas trazidas pelos jornais A Voz de Cabo Verde e O
Progresso de Cabo Verde! Como se tornaram e ficaram patentes as
muitas capacidades intelectuais enterradas nessas nossas ilhas pobres e
exíguas!
Já existiam os subúrbios, isto é,
os amontoados de aldeolas e de outros aglomerados peri- e rurbanos
povoados de gente pobre e remediada que, de forma mais próxima ou de
modo mais distante, circundavam o plateau. Os subúrbios
situavam-se, assim, e por definição, quase todos nos arrabaldes
circundantes da cidade alta da Praia.
Mesmo quando localizados em achadas
e achadinhas localizadas a um nível topográfico mais elevado que a
cidade alta da Praia (como acontecia e ainda acontece nos casos dos
planaltos da Achada Grande ou da Achada Eugénio Lima), esses aglomerados
de casas e casebres eram denominados na mesma como Baxu-Praia,
abaixo da praia, aliás, em perfeita conformidade com o étimo (sub-urbe)
que, em crioulo fundo e castiço (suburgo), adquiria conotações
quase tenebrosas, ao mesmo tempo que remetia para a denominação dos
burgos franceses e germânicos. O estigma baixo-praiense (que não a
designação, porque de natureza social) permanecia mesmo quando o
subúrbio se situava no planalto que, literalmente, estatuía a Praia como
cidade alta, alcandorada que estava ao lugar nobre situado no planalto
de Santa Maria. Era o caso da Ponta-Belém, zona do plateau conhecida
pela sua irrequietude social, pela sua marginalidade algo arruaceira bem
como pela vizinhança da artéria principal da cidade alta, chamada Sá da
Bandeira. Diga-se que essa vizinhança singularizava-se pela sua natureza
a um tempo conflituosa e convivial como, aliás, era próprio de uma
coexistência, também ela pacífica e amiúde com contornos de uma
verdadeira guerra-fria, entre grupos sociais com diferentes historiais e
idiossincrasias).
A rua Sá da Bandeira, porque a mais
longa e a mais larga da pequena cidade ex-colonial pomposamente
promovida a Avenida no período pós-independência, fora assim baptizada
em homenagem ao político liberal português Sá da Bandeira. Homenagem
merecida pois que esses governantes e herói das guerras liberais
portuguesas muito contribuíu para a abolição da escravatura em Cabo
Verde e nos demais territórios ultramarinos portugueses. Ademais, tendo
sido o autor do decreto régio que, em 1838, transferiu formalmente a
capital de Cabo Verde da Cidade Velha (antiga cidade da Ribeira Grande,
há décadas em imparável decadência) para a ainda virtual cidade do
Mindelo (na altura do evento nobilitante uma pobre povoação de
pescadores), foi ele igualmente a personalidade política e governante
que, em 1858, elevou a Vila da Praia à categoria de Cidade (a segunda da
nossa história de colónia) e, assim, a capital efectiva e permanente de
Cabo Verde, pondo assim fim à transumante itinerância da capitalidade
administrativa por várias vilas das ilhas, como Nova Sintra, Sal-Rei,
Ribeira Brava, Ribeira Grande de Santo Antão e a própria Vila da Praia
de Santa Maria (“Em compensação ou como sinal vingativo, a Praia
demorou-se a superar o seu estatuto de cidade-repartição, como a
chama José Leitão da Graça, tendo sido os atributos de capital do ensino
e da educação consignados à Vila da Ribeira Brava (por nela se ter
instalado o célebre Seminário-Liceu de São Nicolau, depois de se ter
transferido a Escola Principal da ilha Brava, onde fora inaugurada em
1847, para a Praia e de, nesta urbe, se ter criado e extinguido o
primeiro Liceu Nacional de Cabo Verde) e tendo o Mindelo granjeado,
primeiramente e graças ao seu Porto Grande, o estatuto de capital
económica (“o coração do arquipélago”, ou, melhor, “o pulmão por onde
respira Cabo Verde”, como asseveraram intelectuais de várias épocas,
como Eugénio Tavares ou Amílcar Cabral), depois de capital cultural, e,
mais tarde, de capital social de Cabo Verde”- Relembra um jovem erudito
da cidade, curioso em questões relativas à história das ilhas e defensor
de uma visão objectiva e imparcial na análise dessas coisas fracturantes
como são aquelas relativas à capitalidade cultural, para rematar:
“A rua Sá da Bandeira já não existe
ou, melhor, já não existe com esse nome. Como anteriormente aventado,
depois da independência, foi promovida a avenida, tendo essa promoção
sido ademais reforçada com o saneamento político-toponímico do
governante liberal português Sá da Bandeira e o sequente acoplamento da
sua nova condição de avenida ao nome maior da história e da luta de
libertação das ilhas crioulas afro-atlânticas. Deste modo, foi a rua Sá
da Bandeira re-baptizada como Avenida Amílcar Cabral (tal como, aliás, a
praça central da Praia, a chamada Praça Grande dantes chamada Praça
Alexandre Albuquerque), para grande desagrado dos habitantes da urbe
capital que persistem, uns, em chamá-la rua Sá da Bandeira, adaptando-se
outros ao seu novo estatuto de avenida e venerando-a como Avenida Sá da
Bandeira, por seu lado continuando outros, maioritários e mais castiços
uns, ou minoritários e mais dados à poesia surrealista os demais, ainda
a utilizar a expressão Sala Bandeira, não se sabe se com intuitos
subversivos de rejeição da toponímia colonial, se com intenções ainda
subversivas mas de transmutação semântica, aliás, tão corrente na
crioulização de termos de origem portuguesa ou outra (como, por exemplo,
atesta o termo crioulo galanti, de significado tão diametralmente
divergente ou oposto ao seu étimo português galante e ao seu
sósia brasileiro galã). Quererão os saudosistas utilizadores da
expressão Sala Bandeira significar que a antiga rua Sá da
Bandeira continua a ser a rua principal da cidade da Praia (do
plateau ou cidade alta, diga-se), a sua sala de visitas?”) ou, de
forma assaz inesperada e talvez surpreendente, quererão deste modo
exaltar o estatuto dessa avenida como porta-bandeira da inalienável
capitalidade da cidade da Praia em face das demais avenidas da capital
e das urbes rivais, estatuto esse sempre ameaçado, agora com maior
acuidade com a recente inauguração, nas proximidades promíscuas dos
bairros baixo-praienses da Várzea e da Achadinha, da Avenida Cidade de
Lisboa. Talvez fosse o facto de morarem no plateau e de
co-existirem diária e umbilicalmente com aqueles que se outorgavam o
estatuto de genuínos e legítimos moradores da cidade alta da Praia que
criava nos habitantes de Ponta Belém uma sensação de inusitado
privilégio e um sentimento de superioridade em relação aos moradores dos
subúrbios de Baxu-Praia e, ainda mais, em relação aos badios de fora
(expressão que designava e estigmatizava, de forma particularmente
pejorativa e ofensiva, os originários do interior rural da ilha de
Santiago, especialmente os mais escuros e rústicos - alerta o
cosmopolita poeta crioulo branco greco-latino da cidade), aliás, muito
causticados na alegada rusticidade de ressonâncias africanas dos seus
hábitos, costumes e tradições, no seu léxico e na sua pronúncia funda do
crioulo de Santiago.
Esses rústicos moradores do
hinterland santiaguense eram amiúde vítimas de burlas por parte dos
malandros da cidade e de furtos e assaltos por parte dos piratinhas
de Ponta Belém, quando, chegados de fóra (expressão utilizada
pelos citadinos para designar e despromover o interior da ilha, fosse
ele rural, urbano ou semi-urbano, litorâneo ou não, bem como pelos
habitantes de alguns portos de mar, como, por exemplo, a Ribeira da
Barca no concelho de Santa Catarina ou o Chão Bom no concelho do
Tarrafal, desta feita para estigmatizar os que moravam distantes dos
desassossegos do mar), muitas vezes acompanhados pelos indispensáveis
animais de carga ou carregados de hortícolas, das frutas da época, dos
frutos dos sequeiros, de aves de capoeira e de outros produtos
agro-pecuários) frequentavam a cidade para o tradicional comércio nos
mercados da cidade, com destaque para aquele que se fazia no vistoso
mercado municipal do plateau, para visitas aos familiares ou para
tratamento de assuntos burocráticos.
Os moradores dos subúrbios
provinham maioritariamente do interior da ilha de Santiago e, em muito
menor medida, das ilhas, especialmente da vizinha ilha do Fogo, que
tendo sido, com Santiago, uma das primeiras a ser povoada, manteve desde
sempre estreitas relações com a sua irmã maior (maior, entenda-se, em
idade, população e extensão). Os sampadjudos de então eram
essencialmente integrados por essa gente do Fogo, em geral de tez mais
clara que a grande maioria dos originários da ilha de Santiago porque
constituída por mulatos e outros mestiços, filhos bastardos dos brancos
crioulos das ilhas, que viam na migração para a ilha de Santiago (a par
da maciça emigração para os Estados Unidos da América, a partir dos fins
do século XVIII) uma forma de escape e de libertação em relação aos
entraves erigidos pelos inultrapassáveis preconceitos, constrangimentos
e barreiras racistas da sua explosiva ilha-mãe. Como assinala o mais
profícuo escritor da ilha do vulcão maior, os mulatos e os negros do
Fogo migravam para a ilha de Santiago e emigravam para a América e, nos
anos de fome, certamente para as roças de S. Tomé e Príncipe e de
Angola, e os brancos da mesma ilha enveredavam por carreiras (militar,
judicial, administrativa) nas colónias portuguesas, na metrópole
colonial, mas também na cidade da Praia e em outros centros urbanos
caboverdianos. Esse facto exacerbava a percepção então dominante de uma
mais extensa e lata condescendência e menores reticências na outorga de
privilégios aos sampadjudos que, ainda por cima, eram (ou se
consideravam) portadores de características raciais e culturais mais
próximas das europeias do que a maioria dos santiaguenses, desde sempre
estigmatizados como negros e africanos, ou, de forma mais
condescendente, como crioulos inacabados.
Ademais, muitos originários da ilha
do Fogo lograram alcançar importantes posições no comércio e no
incipiente tecido empresarial da cidade da Praia e das vilas do interior
de Santiago, áreas de que se ocupavam tradicionalmente. A pulso,
diga-se, e à força da sagaz utilização das relações de parentesco e de
compadrio, tecidas com os patrícios já radicados na grande ilha e
consolidadas durante a longa história da sua permanência, não só na
cidade da Praia como também nas vilas e nos vilarejos do interior da
ilha. Dizia-se por isso que eram contratados com o diabo, pois
que era relativamente meteórica a ascensão de alguns mais audazes de
entre eles, e por isso mais bafejados pela sorte e pela fortuna, do seu
inicial estatuto de vendedores ambulantes de skontra, café,
maçãs, uvas e de outras frutas típicas da sua ilha natal, para além de
carregadores e vendedores de palha (“são palhudos”-gozavam os mandarins
da época e outros habitantes da ilha maior. Daí talvez a origem
etimológica e a posterior ressemantização do termo sampadjudo.
“Outras interpretações mais generosas fazem derivar o termo
sampadjudo da expressão “são para ajuda”, isto é, vieram ajudar os
maltratados badios (sendo neste caso o termo badio usualmente
utilizado para denominar os santiaguenses mais pobres e, por isso,
supunha-se necessariamente mais escuros) a governar as respectivas
vidas”- atalha, na senda de um conhecido encenador e contador de
histórias retornado das diásporas índicas africanas, o artista plástico
mais em voga da cidade, ele próprio um sampadio, ele próprio um
sampadio, isto é, um badio de parcial ou total origem sampadjuda
(anote-se entre rápidos mas esclarecedores parênteses que é também
legítimo o uso do termo para os naturais das as- ilhas criados,
amadurecidos e maturados na ilha de Santiago), mais propriamente da
muito orgulhosa ilha do Fogo, ilha de berço do seu avô materno, um
celebrizado poeta versado em crioulo, colaborador da revista
Claridade e autor da letra da mais conhecida canção da sua ilha
natal, talvez porque hagiográfica do herói popular Prispi di Ximentu e
dos seus tormentos e façanhas nas roças de S. Tomé e Príncipe).
Por deter o estatuto de capital
administrativa da província/colónia, a cidade da Praia acolhia
funcionários públicos e agentes administrativos das diferentes ilhas de
Cabo Verde.
Esses funcionários públicos e
agentes administrativos de nível mais elevado eram formados
maioritariamente no Seminário de São Nicolau e, depois, no Liceu de São
Vicente e, igualmente, na Metrópole, quando as famílias dispusessem de
posses financeiras suficientes, o que somente acontecia com uma
pequeníssima minoria privilegiada.
Todos esses circunstancialismos
contribuíram sobremaneira para provocar profundas mudanças em relação à
percepção que os santiaguenses de diferentes raças e estratos sociais
tinham do poder, dos seus titulares e dos agentes e modos do seu
exercício na ilha. De um poder exercido em grande medida por senhores e
oligarcas originários da grande ilha, mesmo se maioritariamente
recrutados entre os brancos da terra, e de que a Câmara da
Ribeira Grande foi uma eloquente ilustração, transitou-se para uma
administração colonial de feição moderna no quadro oferecido por uma
economia mercantil pós-escravocrata em que as alavancas do poder eram
detidas por alienígenas à ilha, tanto os provenientes das chamadas
as-ilhas como as originárias do Reino (depois Metrópole) e das suas
Ilhas Adjacentes. Tais circunstâncias viriam a agravar-se, mais tarde,
com a implantação do único Liceu de Cabo Verde na cidade rival do
Mindelo. As repercussões dessa conquista da sociedade civil sanvicentina
liderada pelo salense Senador Vera-Cruz seriam, por um lado, globalmente
muito positivas para a relativa democratização do ensino liceal em Cabo
Verde e, a prazo, para uma maior sintonia do conjunto da sociedade
caboverdiana e das suas novas elites com as novidades do mundo, postadas
que estavam à beira do Porto Grande do Mindelo e no fulcro do
cosmopolitismo provinciano da cidade talâssica do norte do arquipélago,
mas também, e por outro lado, duradouramente desastrosas no que se
refere à estigmatização do originário de Santiago, em especial do seu
interior (doravante sempre sujeito ao indelével ferrete sócio-cultural
de badio (termo que, agora, isto é, a partir da emergência das
históricas, persistentes e aparentemente quase insanáveis rivalidades
entre as cidades da Praia e do Mindelo na sua pugna pela obtenção e pela
manutenção dos privilégios, prerrogativas e regalias da capitalidade
provincial e da sua extensão ao conjunto da ilha de Santiago e às demais
ilhas de Cabo Verde, mais reiterada e sofisticamente entendido e
doutrinariamente propalado em prestigiadas revistas literárias e em
outras publicações culturais dinamizadas e promovidas pelas elites
letradas cabo-verdianas radicadas nas Ilhas, na Metrópole e/ou no
Ultramar Português num sentido ostensivamente pejorativo porque
abrangente das populações rurais e suburbanas santiaguenses suposta ou
verdadeiramente portadoras de uma identidade necessariamente atrasada
porque marcada pelas muito causticadas sobrevivências africanas na
cultura crioula cabo-verdiana. É neste sentido pejorativo que o termo
badio era também utilizado por muitos habitantes da cidade capital e de
algumas vilas do interior da ilha de Santiago, em parte de ascendência
sampadjuda ou, eles próprios, oriundos das outras ilhas de Cabo Verde).
Dezembro de 1909
Tempos de infância
António Pedro nasceu no plateau da cidade da
Praia.
Se não no real, pelo menos no simbólico.
Na casa-grande plantada sobre a colina do Laranjo e a
ribeira que lhe perfazia o verde e a fortuna.
Morgadio e arquitectura de Trás-os-Montes (a
portuguesa metropolitana, não a tarrafalense!) viram os seus olhos
semicerrarem-se face ao intenso brilho do sol caboverdiano.
A 9 de Dezembro de 1909, como sagitário.
Ó criatura de tantas promessas por cumprir!
Por ter começado por ouvir um patois
anglolusodjarfogobadio, o seu signo iluminou-se, desde sempre, de
uma aura de universalidade sem céus nem raízes aparentes. A tentação da
total transgressão habitou-lhe então o coração, ainda infante, ao mesmo
tempo que uma insondável e sempre súbita queda para as raízes pétreas. O
signo de sagitário era nele premonição de um espírito em constante
deambulação, entre o vale do Laranjo e o mundo, entre o primeiro
patois escutado com o borbulhar do leite materno e a babel da
modernidade, entre Santiago e o Império, entre a purgueira e o pinheiro.
Cresceu no plateau. Se não no real, pelo
menos no simbólico.
Na sociedade colonial ensolarada de ritmo e de
bulício.
Na sociedade colonial enclausurada no recato e na
solidão da cidade-repartição.
Provincianamente alegre e repetidamente atónito face
às romarias da justaposição e da interpenetração entre a lusitanidade e
a africanidade, e os múltiplos coitos que paulatinamente geraram a
crioulidade, e os muitos incestos que engendraram os filhos híbridos das
nossas ilhas e moldaram as suas feições afro-latinas, sempre autênticas
na plena assunção da sua bastardia biológica e cultural, a qual, aliás,
ficaria depois gravada no célebre axioma “Cabo Verde não é nem Europa,
nem África, Cabo Verde é Cabo Verde”.
(“Ou mera tautologia, segundo
outros pontos de vista mais cáusticos- interfere um aprendiz de
intelectual recém-diplomado por uma universidade obviamente estrangeira
– como o sustentado pelo vate da cidade que ousou escrever e publicar,
sem temor nenhum da censura e da PIDE, uma série de poemas subversivos,
como “Fome” ou, mais tarde, já durante o seu exílio africano, “Eis-me
aqui, África”. Curiosamente o mais subversivo desses poemas, intitulado
“Quando a vida nascer”, foi publicado, pela primeira vez, no Boletim
Cabo Verde, importantíssima revista cultural editada na Praia
religiosamente em todos os meses do calendário entre os anos de 1949 e
1964. Relembre-se que foi também no Suplemento Cultural ao
Boletim Cabo Verde que se revelou enquanto movimento literário-cultural
o Grupo da Nova Largada, no qual pontificavam Manuel Duarte, Gabriel
Mariano, Ovídio Martins, Yolanda Morazzo, Francisco Lopes da Silva,
entre outros jovens intelectuais independentistas, uns revelados na
revista Vértice, como Manuel Duarte com o seu famoso ensaio
“Cabo-Verdianidade e Africanidade”, outros na revista Claridade
da segunda fase como Aguinaldo Fonseca e Gabriel Mariano (este com
poemas de recriação do cancioneiro popular santiaguense), outros no
próprio Boletim Cabo Verde, como no caso de Yolanda Morazzo,
tendo alguns deles colaborado na revista Claridade da terceira e
derradeira fase.
Quiçá tenha sido o Boletim Cabo
Verde a mais importante revista cultural caboverdiana do período
colonial, se levarmos em conta a riqueza e a variedade do seu conteúdo
ensaístico e literário e a diversidade estética e geracional dos que
nela colaboraram e que a tornavam, desse ponto de vista, reitere-se que
estrita e somente desse ponto de vista, de longe superior à revista
Claridade e às outras revistas e folhas culturais, como a Certeza,
o Boletim dos Alunos do Liceu Gil Eanes ou o Seló (suplemento do
jornal mindelense Notícias de Cabo Verde).
Notícias de Cabo Verde que, tendo sido o mais
longevo dos jornais caboverdianos e que, tendo servido como porta-voz
dos letrados da terra, foi um privilegiado instrumento de difusão da sua
escrita em defesa dos interesses e das gentes de Cabo Verde.
Escrita essa que, para usar uma expressão da lavra do
académico cabo-verdiano das novas gerações Gabriel Fernandes, pode ser
caracterizada como “colaboracionista rebelde” porque, mesmo se
inconformista e anticapitulacionista, tinha que, obviamente, se mover
nas fronteiras e no quadro político-ideológicos delimitados e abalizados
pelas circunstâncias histórico-políticas dessa época de emergência e de
posterior consolidação do Estado Novo colonial-fascista e das suas
políticas de difusão da missão civilizadora de Portugal e da
unidade da nação portuguesa e do seu império colonial na sua
pluri-continental extensão de Minho a Timor.
De particular importância foi a sua pugna pela
re-abertura do Liceu de São Vicente, então o único existente em Cabo
Verde, fundado em 1917 e encerrado em 1937 como Liceu Infante D.
Henrique, reaberto ainda em 1937 com o nome de Liceu Gil Eanes. Também
importantes foram a sua insistência e o seu combate pela construção do
cais-acostável do Porto Grande, nos quais coadjuvou os persistentes
intentos, depois coroados de sucesso, de um dos mais célebres e
combativos filhos da terra de então, o Dr Adriano Duarte Silva, na
altura desempenhando as funções de deputado por Cabo Verde à Assembleia
Nacional do Estado Novo.
Tanto pela sua diversidade temática como também pela
ideologia que subjazia à sua linha editorial assemelhavam-se o
Notícias de Cabo Verde e o Boletim Cabo Verde. As suas
diferenças advinham do facto de o Notícias de Cabo Verde ter
sido um jornal privado virado para a discussão da actualidade económica,
social, cultural e política de Cabo Verde, tendo sido, por isso,
detentor de maiores potencialidades de independência e de espírito
crítico em relação ao poder político então instituído, como, aliás, se
pode comprovar em várias das suas peças jornalísticas, incluindo uma da
autoria do seu proprietário e primeiro director em defesa da liberdade
de imprensa, enquanto que o Boletim Cabo Verde,
por ter sido uma
revista de pendor mais virado para o pensamento ensaístico e de teor
mais literário e cultural, ademais dependente da administração colonial,
designadamente da direcção da Imprensa Nacional de Cabo Verde, na qual
estava financeira, funcional e editorialmente inserida, estaria mais
alinhado com os desígnios políticos do podere instituído, mormente nos
artigos de teor oficioso que era obrigado a publicar.
Relevante é o facto de os referidos Directores das
publicações a que se fazendo referência terem sido figuras de relevo da
sociedade colonial de então, tendo ambos desempenhado importantes
funções no quadro do sistema colonial-fascista, um como Presidente da
Câmara Municipal de S. Vicente e de Presidente da Associação Comercial,
Industrial e Agrícola de Barlavento, e o outro como deputado por Cabo
Verde à Assembleia Nacional do Estado Novo.
No mais, isto é, para além de terem sido ambos
prestigiadas personalidades das elites locais e poderosas figuras do
meio provinciano arquipelágico, muitas eram as diferenças entre os
Directores dos dois importantes órgãos da imprensa escrita caboverdiana
da época colonial-fascista: um, o Director do Notícias de Cabo
Verde, importante comerciante da praça de S. Vicente e também
importante industrial proprietário das fábricas de sabões e de tabacos,
era um indefectível defensor de uma capitalidade económica, social
e cultural sedeada no Mindelo, nisso não se distinguindo ou pouco se
diferenciando nem de outros ilustres mindelenses, como Francisco Xavier
da Cruz (o célebre B. Lèza, conhecido e imortalizado como um dos maiores
compositores de mornas de todos os tempos), nem de outros insignes
caboverdianos, como Loff de Vasconcelos e Eugénio Tavares. Todos eles
com convictos sucessores até aos dias de hoje.
Relembre-se que esse cronista e empresário, tal como
aliás Loff de Vasconcelos, chegou a defender a divisão de Cabo Verde em
dois distritos autónomos, um de Barlavento com sede em São Vicente, e
outro de Sotavento com sede na Praia, administrados por governadores
próprios, directamente dependentes da Metrópole. Anote-se as
semelhanças, salvo as devidas proporções com o diferente estatuto
político actual de Cabo Verde, com as teses dos actuais propugnadores da
regionalização política e da federalização de Cabo Verde, já não para
extirpar a alegada parasitação da cidade capital da província sobre as
receitas do Porto Grande, mas para obviar ao peso demográfico e
socio-económico da ilhas de Santiago e à actual capitalidade não só
política como também social, económica e cultural da cidade da Praia.
Por sua vez, jurista, muitas vezes desempenhando as
funções de juiz-substituto na sua cidade natal e uma das figuras mais
notáveis do Cabo Verde tardo-colonial, o director do Boletim Cabo
Verde (por inerência das suas funções como Director da Imprensa
Nacional de Cabo Verde, sedeada na cidade da Praia, era um nado e criado
nesta última cidade que muito prezava e exaltava em razão da impecável
organização urbanística do seu perímetro citadino então restrito ao
plateau, da limpeza das suas ruas e da pacatez e civilidade das
suas gentes, em comparação com a suposta frivolidade das gentes e com a
então patente e muito causticada sujeira das ruas da cidade nortenha,
minuciosamente descrita numas notas do seu canhenho publicadas no
Boletim Cabo Verde.
De outra índole foram o perfil e o papel da revista
Claridade e das folhas culturais publicadas durante o período
colonial-fascista. De feição exclusivamente literária e cultural,
aglutinador de quase todas as estirpes literárias modernistas
pós-hesperitanas, a revista Claridade singulariza-se por ter
sido o órgão colectivo de toda uma geração que, pretendendo fincar
os pés no chão escalavrado da nossa terra mediante a comunhão com
os problemas e com a linguagem chã e metafórica do povo anónimo,
simples e humilde, procedeu a uma autêntica revolução
estético-literária em Cabo Verde.
Muito intermitente na sua periodicidade e apesar de
ir agregando ao seu elenco de colaboradores os poetas e ficcionistas
modernistas e teluricistas que se iam revelando, a revista não podia dar
vazão a toda, ou sequer à quantitativamente mais importante, produção
poética e literária dispersa dos claridosos, os quais se viram assim
obrigados a disseminar os seus escritos por outras publicações mais
consistentes e regulares na sua periodicidade, com destaque justamente
para o Boletim Cabo Verde. A partir da sua segunda fase,
inaugurada em 1947, com o seu número 4, a revista Claridade
passou a acolher os modernistas entretanto revelados, sobretudo na folha
cultural Certeza, para, na terceira fase, iniciada em 1958, dar
guarida a importantes poetas da geração que quis ser entendida e se
autoproclamou como a geração que não vai para pasárgada, com
destaque para Ovídio Martins, Onésimo Silveira ou Corsino Fortes.
Interessante é que a revista Claridade nunca
publicou absolutamente nada dos literatos que a precederam ou sequer fez
menção à sua obra. O ecletismo e o pluralismo estético com correntes não
modernistas ou telúricas eram-lhe, por isso, absolutamente avessos, e
nisso residiria a sua maior singularidade histórica e
estético-literária. No demais, nas profissões de fé culturalistas a
favor de uma caboverdianidade pejada de um teor identitário crioulista
mais voltado para a co-matriz europeia dominante, não se diferencia dos
seus antecessores e contemporâneos da sua geração, todos muito marcados
pelo adjacentismo político e cultural, depois veementemente negado pelos
integrantes das gerações nacionalistas de cinquenta e sessenta, muitos
deles, aliás, paradoxalmente revelados e publicados no oficioso, muito
eclético e multigeracional Boletim Cabo Verde, revista também
caracterizada pela sua sujeição à tutela e à censura directas do governo
colonial enquanto propriedade da administração da província e porta-voz
da ideologia colonial então dominante. Tanto mais que as suas primeiras
páginas eram reservadas aos discursos e às obras do governador e às
chamadas políticas coloniais de fomento, para além da ininterrupta
idolatria do salazarento chefe máximo do Estado Novo colonial-fascista e
do culto de uma certa histeria patriótico-imperial, como aquela que se
verificou nos centros urbanos de Cabo Verde aquando da invasão do
chamado Estado português da Índia (formado por Goa, Damão e Diu) pela
União Indiana de Nehru. Nessa óptica e nesta vertente, o Boletim
Cabo Verde funcionava como uma espécie de jornal oficioso do
Governo da província/colónia. Deve ter sido por esta razão que o
inrevelado autor do libelo acusatório anti-claridoso
Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana (consabidamente
publicado sob um nome emprestado a um avassalado poeta e
versejador contra esses tempos de bloqueio e forçado silêncio, e, em
tempos, renomado autor de alguns dos poemas diferentes na carga
político-ideológica e no teor assumidamente subversivos, por isso,
tidos, no período do cantalutismo, por dos mais emblemáticos da nova
largada político-cultural), tenha preferido manter na mais estrita
clandestinidade o excelente ensaio-panfleto político de denúncia total
do sistema colonial-racista vigente em Cabo Verde e de desmascaramento
das políticas de reforma colonial empreendidas pelo ministro do ultramar
da altura, Adriano Moreira, intitulando-o “Cabo Verde e a Revolução
Africana” e assinando-o com o pseudónimo castiçamente crioulo badio A.
Punói”.
Talvez tenha sido por essa razão, pela sua umbilical
ligação ao governo da província/colónia que o rosto e a voz mais
importante da poesia anti-evasionista e anti-pasdargadista da geração de
cinquenta nunca tenha colaborado no Boletim Cabo Verde, mesmo
se partícipe da Claridade da última fase”- cogitou em voz alta o
poeta-jurista da cidade acariciando longo bigode negro retorcido e
lançando olhares melancólicos alternados ao rosto pálido e pensativo do
poeta surdo da cidade ~, o qual se entretinha a comunicar-se com os
circunstantes, seus indefectíveis admiradores, em papelinhos redigidos
em caligrafia de letra miudinha e bem legível, e à jovem jornalista e
poetisa recèm-chegada à cidade para a concretização do intento da
comunhão da sua tez branca inundada de festa e das promessas
revolucionárias de Abril com o corpo telúrico e febril da terra natal
embrenhada na saga da reconstrução nacional.
“ Não obstante os constrangimentos acima referidos, o
Boletim Cabo Verde marcou toda uma época. Basta dizer que a
maior parte da poesia de Jorge Barbosa, incluindo a de teor mais
contestatário (como o paradigmático “Panfletário”), mas excluindo outros
de quase inequívoca ruptura política (como “Meio-Milénio”, Relato da
Nau” (a negreira, não a das cantadas descobertas do caminho marítimo
para a Índia e para outras terras conquistadas) ou “Memorial de São
Tomé” e outros poemas integrantes de livros que tentou dar à estampa
durante a primavera marcelista, quando se deslocou à metrópole para se
submeter a tratamento médico, vindo a falecer longe das suas ilhas), e
quase toda a obra cronística e ficcional de Maria Helena Spencer, a
primeira escritora moderna caboverdiana, foram dadas a conhecer no
Boletim Cabo Verde. Oficioso em parte, sim senhor!, mas nada que se
comparasse com o seu sucessor, o famigerado semanário Arquipélago,
de conotação abertamente colonial-fascista, avesso à literatura e à
cultura e implacável defensor do status quo situacionista
ditatorial, numa época em que já proliferavam os movimentos
político-militares de libertação nacional e eram mais do que evidentes
os sinais da queda próxima do império colonial português”- esclarece
bem-humorado o poeta existencialista da cidade, também ele estreante no
Boletim Cabo Verde, no qual, aliás, comprovou na sua própria
pele a veracidade do axioma “pior a emenda que o soneto”, quando um
poema seu dado à estampa no mesmo Boletim Cabo Verde, foi
sujeito ao crivo estético do juiz metropolitano da comarca de sotavento
(anote-se em roda-pé, que nas horas vagas esse austero magistrado se
ocupava com as letras, deste modo pretendendo participar na vida
cultural da pequena cidade colonial e aí deixar a sua inconfundível
marca, outorgando-se o papel de mentor e mestre das novas gerações
caboverdianas, mesmo se à revelia das mesmas. Até que o conseguiu ao se
meter com a promessa de poeta que era então um dos mais importantes
literatos lusógrafos da actualidade” ”-riu-se um conhecido cortesão do
poeta predilecto da cidade). Sublinhe-se que o Machado (assim se chamava
o magistrado inquisidor da jovem poesia islenha que, segundo sei, nada
tem a ver em termos de laços de parentesco com o famigerado sargento
Machado, sim, esse mesmo em cuja boca mijou Nhanha Bonbolon, o nominho
de Ana da Veiga, a líder da revolta de Ribeirão Manuel, aquela de que se
faz menção num poema em crioulo de Gabriel Mariano que a transformou no
macho Nhonhô di Mangolom), em vez de optar pela censura pura, ainda que
fundada em critérios alegadamente estéticos, de um poeta neófito
(“ como diz de modo autocrítico o poeta maior da nossa Macaronésia,
referindo-se ao seu próprio caso, aliás, idêntico aos casos de tantos
outros jovens principiantes nas lides literárias que, na altura
referenciada, tentavam dar nas vistas”-faz questão de sublinhar o poeta
galardoado que era o principiante na poesia da altura) preferiu
re-escrever os poemas do mesmo principiante e mostrar em praça pública
(isto é, nas páginas do Boletim Cabo Verde) como é que o poema
do estreante em literatura deveria ter sido escrito).
Acrescente-se ainda um pequeno parêntesis aposto não
se sabe se por um defensor confesso - não do axioma literário acima
referido, mas do axioma identitário também anteriormente referenciado-,
ou se por um desses críticos mais cáusticos da mesma expressão
tautológica (“não sendo nem cabo, nem verde (pelo menos na maior parte
do ano no que se refere aos terrenos de sequeiro nas chamadas ilhas
agrícolas, para não falar de algumas ilhas francamente áridas e
escassamente dotadas de ridículas manchas de regadio ou de bosquejos de
florestas), optou Gabriel Mariano por grafar Caboverde (numa única
palavra e sem hífen), a um tempo continente e arquipélago culturais,
pondo assim termo a eventuais paradoxos identitários e sentimentos de
orfandade continental, desde sempre muito comuns entre os ilhéus
caboverdianos).
(“Neste caso mais propensos à busca do pai, ou do seu
rosto abstracto e severo, do que da mãe (ou do afago afectuoso do seu
ventre irrenunciável), por razões aliás mais do que compreensíveis, como
seja a herança de bens simbólicos de grande relevância, como os apelidos
que realmente contam porque se perpetuam nos nomes dos filhos machos e
nos dos seus descendentes varões, e de parte da riqueza e das vivências
acumuladas como património material e imaterial”- acrescenta o poeta
predilecto da cidade, aliás, de tez branca, cor que lhe foi legada pelo
pais, luso-descendentes, se bem que caboverdianos de gema, permanecendo
a seguir em súbito silêncio ante o refluir da imaginada infância islenha
do seu irmão de raça, de cidade e de ofício, também ela inundada de sol,
de alguma bruma e de muitos vagidos crioulos, como todas as infâncias
passadas na ilha, como a primeira infância de António Pedro).
Agora que devidamente circunstanciados e dilucidados
os tempos e os temporais vários que assolaram as diferentes conjunturas
da sua cidade natal, Retrocedamos pois aos tempos primevos de António
Pedro.
E dizíamos, e dissemos:
António Pedro nasceu no plateau da cidade da
Praia.
Se não no real, pelo menos no simbólico.
Na casa-grande plantada sobre a colina do Laranjo
e a ribeira que lhe perfazia o verde e a fortuna.
Depois, criança ainda, alheio a todas as conjecturas
e a eventuais angústias existenciais, ignorante de todas as conjunturas
políticas e das respectivas vestes coloniais, e das respectivas
iniquidades sociais, mas habitado pelo wanderlust que lhe foi
precocemente inoculado pelo signo com que nasceu, e prosseguindo a já
longínqua itinerânca familiar, António Pedro saiu pelo mundo.
1929-1938
Tempos de regresso
Tempo de saudade.
Saudade ou sodádi? Mas existirão essenciais
diferenças entre as duas curiosas melancolias em face da ausência e da
perda da árvore da infância?
Chamamento da infância ou da paternidade?
Talvez da maternidade?
Talvez de um qualquer Pik’ lion, ainda desconhecido?
Certamente do Laranjo.
António Pedro regressa ao plateau.
E ainda do mar espanta-se: “Bé, o pó da ventania
sufoca! /...lá na baía ou doca/…parece melhor/ embora fosse careca/a
terra seca e adormentasse já» (novo parêntesis desta vez aposto por um
indefectível defensor do passado verdejante da cidade da Praia (aliás,
profusamente atestado nos antigos postais ilustrando a sépia os
coqueirais da sua orla marítima, a sua floresta da Achadinha, os seus
mangais do Taiti, as suas hortas do Palmarejo), para além de
irrepreensível adversário das teses propugnadoras da muito propalada
inabitabilidade passada da cidade capital, alegadamente devido à
natureza supostamente pantanosa dos vales que a circundavam, e, por
isso, muito propiciadoras da propagação do paludismo, da cólera e de
outras doenças infecciosas, particularmente mortíferas para os europeus
recém-arribados: presume-se, por isso, que Março foi o mês da chegada de
António Pedro à sua cidade natal, dada a ventania que então por aí
grassava. Ventania essa, que, todavia, não pode ser confundida com a
bruma seca dos dias de hoje, bruma seca essa recentemente importada de
outras paragens sahelianas, ou, dizem as más línguas, trazida por
aqueles que, há poucas décadas arribados à ilha maior, não
prescindem da regularidade do seu pé de vento pois que se maravilham com
um fenómeno que consideram integrante da sua personalidade e da sua
identidade colectivas e, por isso, muito se vêm extasiando em dançar ao
vento…).
Envolto pela poeira, António Pedro atravessou o cais
(“sim! O cais de São Januário! Aquele que as bestas obtusas da Câmara
Municipal mandaram demolir para acharem um traçado mais consentâneo e
mais barato para a nova marginal. Ou quase demolir, pois que uma parte
do emblemático cais foi poupada, ficando todavia escondida do olhar dos
transeuntes pelo perfil altaneiro da nova marginal”- Exasperou-se,
afagando o bigode negro retorcido à salvador dali, o poeta-jurista da
cidade, conhecido defensor dos direitos humanos, amante de jazz, de boa
conversa e de whisky velho, e autor do primeiro manifesto que, nas
páginas da revista Raízes (a primeira publicação literária e
cultural de grande porte do pós-independência, fundada em 1977 na cidade
da Praia, questionou as políticas culturais prosseguidas (ou omitidas)
pelo regime de partido único, então recém-instituído. Entretanto,
enquanto os ânimos se exaltavam à volta do martírio a que a cidade vem
sendo sujeita por diferentes gerações de políticos, de técnicos e de
funcionários públicos, todos eles detentores de muito pouco afecto e de
escassíssima empatia pela cidade, com a cumplicidade ou, pelo menos, com
a silenciosa indiferença da população, martírio esse, aliás,
profusamente ilustrado na cada vez maior descaracterização da cidade e
no crescente e cada vez mais indomável caos urbanístico que, com o seu
visível e acinzentado crescimento selvático, nela reina, António Pedro),
lançou um olhar curioso e alongado pelos botes varados ao longo da Praia
Grande de Chã de Areia e pela vizinhança emaranhada de coqueirais
(sempre exóticos aos olhos de quem esteve, durante anos a fio, longe dos
trópicos) que se estendia pelo Taiti e pela Várzea da Companhia, passou
pelos antiquíssimos edifícios administrativos e pelos armazéns das
alfândegas, observou demoradamente o então intacto cais de S. Januário,
subiu a rampa homónima, atravessou o coração da cidade alta e foi à
busca do mistério dos rochedos de cá, encastelados nas penedias do
cruzeiro, nas encostas do hospital provincial e do edifício da fazenda,
ou refastelados sobre o vale do Laranjo e de outras ribeiras da
freguesia de Nossa Senhora da Graça.
Adolescente luso, jovem luso-caboverdiano (“isso não,
a expressão ainda não existia, nós os islenhos éramos todos portugueses
e caboverdianos ou, melhor, éramos oficialmente considerados como
portugueses de Cabo Verde! Também não existia ainda a possibilidade da
dupla nacionalidade. Afinal éramos uma simples colónia ultramarina,
ademais uma insignificante, mísera e famélica terra de Portugal de
aquém e além mar, em consequência não dispúnhamos de nacionalidade
própria. Por isso, maravilham-se agora todos com a canção do Orlando
Pereira na voz do Ildo Lobo: nasionalidadi dja nu ten dja!
Melhor seria dizer branco português de Cabo Verde crescido na
metrópole?”-interroga-se o poeta predilecto da cidade) ou teen-ager
santiaguense (“curioso”, acrescenta o vate mais celebrizado da cidade,
“cai bem o termo teen-ager devido às ascendências inglesas do
gajo, mesmo se, por alturas do seu regresso à sua cidade natal, ele já
não fosse propriamente um teen-ager, mas um jovem adulto!”)?
Dicotomia cultural, estalagmites de lusitanidade ou
penedos de caboverdianidade no imenso oceano das solicitações
culturalistas cosmopolitas e das auto-sugestões identitárias,
confluência dos afluentes das origens todas de tantas heranças nas águas
da universalidade cuja foz seria a cidade da Praia, postada melancólica
defronte do seu rio imaginário?
Enfim, português, português ultramarino,
luso-africano, branco afro-lusitano, europeu meso-atlântico, minhoto
retornado ou badio branco irreversivelmente postado no miradouro da
sempre atraente e inapagável civilização europeia?
“Irreverente modernista era o que ele era, o António
Pedro, de tantas e múltiplas ascendências, de tantas e diversas
andanças!”-sufragou, com voz cristalina, se bem que póstuma, o único e
convicto companheiro das lides plásticas e das tertúlias literárias que
encontrou no provincianismo beato e caseiro da sua cidade natal.
E continuava o caldeamento cultural e todos, ainda
que a contragosto, imaginavam-se nadando no caldo pagão da miscigenação.
(“Embora a contragosto dos cronistas oficiosos e dos
pensadores mais eurocêntricos e concêntricos na preservação, a todo o
custo, da chamada missão civilizadora de Portugal em África e de que
Cabo Verde seria, a um tempo, a ilustração mais eloquente e um agente
privilegiado, e, por isso, mais renitentes à aceitação dos benefícios da
mestiçagem cultural e dos efeitos positivos resultantes do diálogo
civilizacional e da interpenetração de raças e culturas, de que Cabo
Verde é uma pequena, mas bela ilustração”- iludia-se, anos mais tarde,
um passante da cidade a propósito do caldeirão de ensaio da
mestiçagem que, segundo esse escritor metropolitano tornado
caboverdiano adoptivo, seguramente no plano da maioritária escrita
ficcional, e adepto convicto e divulgador prolífero das teses então em
voga nos círculos intelectuais dominantes no arquipélago, terá sido e
continuaria a ser Cabo Verde até à completa crioulização da ilha
de Santiago mediante a extirpação dos resquícios de Àfrica (como a
tabanca, o batuque, a magia negra, a renitência messiânica dos
rabelados) que, lamentava-se em desencontrados sentimentos de desprezo,
respeito e despeito, ainda sobreviviam nessa ilha meridional de Cabo
Verde e teimavam em marcar o rosto mais visível da sua cultura ou,
melhor, a face mais típica da ilha sociológica, outra, que é o
seu hinterland, a qual se encontraria num estádio de evolução
cultural (isto é, de assimilação à cultura europeia dominante) muito
desconforme do estádio de aceitação (o mais avançado, como é
sabido, no processo de aculturação à civilização europeia) a que
chegaram as nossas restantes ilhas, com destaque para as de barlavento
(e aqui entravam as muitas citações dos mestres claridosos, com excepção
de Jorge Barbosa que, sendo natural e profundo conhecedor da ilha de
Santiago, não alinhava nestes modos de ostracização mediante a
negro-africanização das suas expressões culturais afro-crioulas mais
distintas, isto é, mais castiças).
Com a topografia da sua pequena cidade natal
soterrada na mais recôndita loca da memória, António Pedro
vivia com íntima ansiedade o seu regresso, que sabia ser fugaz, à terra
natal e o reencontro com a sua vida quotidiana, com as suas pulsões, com
as suas expressões idiossincráticas, com as suas manifestações culturais
mais típicas. E era firme a sua convicção, funda a sua intenção e
inabalável a sua vontade de penetrar-lhes o âmago, de dissecar-lhes o
espírito, de entender-lhes o sentido, de neles se envolver para melhor
se envolver com as gentes das ilhas, seguramente futuras personagens que
teriam que desfilar e transfigurar-se na sua escrita, na sua pintura, no
seu teatro, nas suas mãos inventivas. Imensa era a força que o
propulsava na contínua superação das barreiras que se iam erigindo na
atmosfera elitista e centrípeta que então dominava e sufocava a
cidade-repartição, em cujas verdejantes imediações tinha nascido e
passado a primeira infância. Tantas as suspeições inoculadas pelos
preconceitos eurocêntricos dominantes, tantas as barreiras engendradas
pelo desconhecimento do meio e por tantos anos de ausência!
Aproximou-se, pois, da ilha e dos seus moradores, a
mente inundada de dúvidas, embora com o firme propósito de não se diluir
nos usos e costumes das populações das ilhas, mesmo daquelas dos
estratos sociais mais ilustrados e embrenhados nas coisas da cultura
moderna ou das fontes clássicas da civilização europeia. Convinha-lhe
preservar a sua actual personalidade moldada em tempos e espaços vários
da Europa, nos quais, aliás, se tinha sentido completamente em casa,
depois de um breve período de sensação de vazio e espanto adveniente da
falta do sol e da poeira que agora o circundam e quase o sufocam. O
papel que se reservara era o de tornar-se cúmplice das gentes das ilhas.
Um cúmplice obviamente aberto a todas as dimensões do seu ser ou, pelo
menos, àquelas dimensões que lograsse perscrutar. Com o distanciamento
necessário à sua melhor compreensão, com o distanciamento que, de todo o
modo, lhe foi outorgado e legitimado pela longa ausência e,
para sermos claros, com o distanciamento que se esperaria de um branco
(algo mestiçado, embora), descendente de famílias possidentes e que,
embora ainda moço, se foi dotando de invulgares conhecimentos do mundo e
das suas mais recentes revoluções estéticas, mormente nos domínios das
artes plásticas, literárias e dramatúrgicas modernas, ainda quase
inteiramente desconhecidas nessas ilhas perdidas e abandonadas.
Pretendia, pois, envolver-se com a ambiência parda e a atmosfera
luminescente que dele se aproximavam pachorrentamente e transportar a
ilha e a cidade, e com elas as suas gentes, e os seus rostos, e as suas
almas, para as insondáveis dimensões das saudades futuras que se
haveriam de alimentar das imagens que agora se petrificavam na arte que,
ainda tímida, se escondia na sua retina.
E, sôfrego, lançou-se todo e inteiro às novas
sensações.
Sem falsos temores, sem fingimentos, sem
ressentimentos, sem pruridos, sem outras congeminações que não as de
traduzir em arte o que os olhos viam, o corpo sentia, a mente dissecava,
a alma aplaudia, rejeitava ou condenava à indiferença de coisa outra,
dos outros, sem outro vínculo com ele, se não o de se apresentar como
matéria de reflexão artística.
No Diário: Vi um batuque/ baque
bacanal/-pobres selvagens/e a morna/ morna/bole mole/ já velha …”.
Ironia versilibrista.
Modernismo jorrando, lívido, estrangeirado e
cara-pálida, todavia irreverente e livre, liberto das babas do
ultra-romantismo e da grandiloquência camoniana estranhamente acasalados
nas hespérides (essas perdidas ilhas arsinárias, nossas, da nossa pele e
da nossa alma de negros, pardos e loiros greco-latinos do arquipélago da
fome de reputação e de alta e nobre geneologia cultural euro-ocidental!)
com os restos do fim do mundo!
Ó desenvolvimento separado na separata que é o puro
sonho ou pesadelo automático!
Entrementes, escrevia um nativista: “o badio porque o
mais africano e negro dos caboverdianos é o culturalmente mais atrasado
e, obviamente, o menos civilizado de todos eles”. Curiosamente, esse
nativista, também ele convicto hesperitano de verve camoniana, tinha-se
envolvido numa das mais importantes polémicas estéticas que tiveram
lugar em Cabo Verde, quando nos inícios dos anos trinta do século se
posicionara contra a titubeante irrupção do modernismo literário em Cabo
Verde, argumentando que o verso devidamente cingido na rima, na métrica
e em outras formas fixas, e em outros modelos clássicos, era a única
indumentária adequada à poesia, e desqualificando os cultores modernos
do versilibrismo como perigosos bolchevistas literários. Assinale-se
que, nesta expressão acusatória (“bolchevistas literários”) se
sintetizam todos os paradoxos e ambivalências nos quais navegava a
geração dele contemporânea. Nesta óptica, ele terá sido o exemplo mais
acabado das contradições e das ambiguidades que perpassavam os literatos
e demais letrados do nativismo político, como atestam as suas profundas
convicções de homem republicano de esquerda e progressista admirador de
Marx, o mestre venerando, e membro encartado do Partido
Socialista Português, e as suas celebradas capacidades de exímio émulo
neo-clássico do autor de Os Lusíadas – se bem que um tanto
serôdio - da poesia camoniana e de intrépido cultor e defensor do idioma
caboverdiano, se bem que nas margens delimitadas pela sua filiação
neo-latina. É, igualmente, assim que ele se evidenciou como co-precursor
tanto do culto da Atlântida (transmutada, por vezes em labor simultâneo
com José Lopes, em Hespérides, Jardim das Hespérides ou ilhas
arsinárias) e da esquizofrenia cultural crioula, oscilante entre o amor
da mátria natal e a veneração da pátria imperial e monumental
dos descobridores, missionários, letrados e, mais de que tudo, de
Camões, o seu símbolo, o seu canto, como também da África
mediterrânica, faraónica e esfíngica, todavia sempre venerada como
berço da civilização ocidental, e, a contrario, por exemplo, da
démarche mais tarde empreendida por Cheikh Anta Diop, em contraponto à
África negra, tida por pagã, animista e selvagem, habitada por
criaturas tisnadas, abandonadas às trevas da ignorância e, por
isso, necessitadas das luzes da civilização cristã e ocidental, quiçá
somente passíveis de serem alcançadas mediante a obra do colonizador
europeu e seu mais proficiente cultor, o colonizador português, como
consideravam e advogavam em altos e, por vezes, impacientes brados os
filhos islenhos da mãe-pátria lusitana, nossos mui respeitados
ancestrais e compatriotas.
Oh! Tempos de múltiplos pressentimentos e de não
poucos ressentimentos!
Tempos de todas as exaltações! Tempos de veneração do
vulcão da ilha das lavas cuspindo orgulho e rectidão na língua materna!
Tempos da louvação da altivez das criaturas e da sua limpa emersão das
lendas, das frutas douradas, dos tempos antiquíssimos das batalhas
memoráveis e dos monstros vencidos!
Tempos de culto da língua pátria dos poetas da
expansão lusa!
Tempos de ressurreição da pele negra insurrecta do
marechal tricolor das Antilhas e de outros lugares de liberdade dos
irmãos de raça e de desgraça!
Tempos de subjugação ao abecedário da vassalagem e
aos labirintos da sua decifração, com o corpo escuro circunscrito à
amnésia e à quotidiana sublimação do cárcere e da carestia em moradas
outras, dos deuses antigos, dos deuses nossos contemporâneos, estranhos,
estratificados.
Para, alguns anos depois, arrematar um outro
génio da insularidade, sedentário da província do meio do mar, do
lar insular alegadamente modelar do nosso processo supostamente
acelerado e exemplar de aristocratização cultural e, em vida, sedento
das raízes da árvore da infância plantadas e enterradas, como é norma,
no seu torrão natal, e das outras, recém-adquiridas e devidamente
transladadas para o sopé do monte verde e aí para sempre sepultadas com
os seus futuros restos mortais com vista privilegiada para o Porto
Grande e para os navios demandando o norte e/ou o nor/noroeste dos mares
do Atlântico. “Precisamente a ilha de Cabo Verde (Santiago) que se
encontra numa fase mais atrasada de evolução aculturativa, está mais
avançada linguisticamente do que as outras, embora apenas no aspecto
fonético”.
Oh! Tempos de busca e de auto-diluição! Tempos de
auto-mutilação!
Oh! Tempos da caboverdianidade espartilhada entre a
lusitanidade, a luso-crioulidade, a afro-crioulidade e a
negro-africanidade!
Oh! Tempos de muita inflexão e de pouca penitência!
A terra jazia, entretanto, inerte no seu diálogo
silencioso com os parceiros, mas também com os morgados, com os
comerciantes, com os seminaristas, com os professores primários.
Inadaptado e louco modernista era o que era o António
Pedro.
“Louco e bendito modernista é o que ele é",
corroborou, ainda em tempo útil, Jaime de Figueiredo, comovido e
entusiasmado, a Jorge Barbosa, discípulo hesperitano, então muito dado
aos odores emanando dos jardins de Diana e a outras brumas da
antiguidade greco-latina devidamente envoltas em rima e métrica
clássica.
“Oh azuis, por demais azuis céus que me ofuscam o
brilho castanho e o pardo verde da terra! Oh céus sem pátria!”.
As palavras continuavam a crepitar incongruentes,
espartilhadas entre o plateau e os subúrbios, entre a saga
aventurosa dos sonhos loiros libidinosos e os ventres proeminentes,
infestados de lombrigas, das crianças em tempos de miséria e de muita
fome, sideradas ante o casebre abandonado, o arco de ferro do menino
enferrujando-se com as brincadeiras desvanecidas pelas estiagens e o
desassossego do mar sempre, sempre dentro dele e dos
caboverdianos anónimos, humildes, seus irmãos.
“Este homem é um Nero e pretende atear fogo à
cidadela das nossas tradições mais civilizadas”- clamaram os estudantes
radicados do outro lado de onde sopra o vento, secundados por outros
neuróticos moradores da beira-mar onde, com estonteante regularidade,
por sua vez, baila o vento.
“E traz à praça pública as nossas chagas, pois que de
chagas se trata quando se nomeia o batuque, e a terra seca, e a preta.
Oh! Vergonha do mondrongo-badio insultando herético o nosso fado que é a
morna! Oh! Nefasto agente das artes degeneradas!”.
E, destemperados, congregaram-se em torno da raiva e
do ódio, embevecidos com o auto-da-fé que acabavam de efectuar, e com as
cinzas das primeiras letras pós-hesperitanas escritas e impressas em
terras de Cabo Verde com o selo tipográfico da Imprensa Nacional de Cabo
Verde, sedeada na cidade da Praia.
“Bendito modernista é o que ele é, esse cultor da
liberdade poética e da sátira versilibrista, mesmo se um tanto desfasado
da nossa idiossincrasia e dos pequenos-grandes dramas da nossa terra!” -
exclamou Jorge Barbosa e pôs-se febrilmente a escrever versos libertos
da serôdia coacção da rima e da métrica e a debitar poemas sobre os
mares caseiros da Praia negra e da Saragaça, os cutelos dos Picos após a
chuva, as negras e mulatas e respectivas ancas sensuais e dançarinas no
pilar do milho, a estiagem, as meninas portuárias de S. Vicente, a
ambiência neurasténica da ilha do Sal, os quinhentos anos de desventura
e abandono do balanço final da lusitanidade colonial, e, impaciente com
os tempos da maturação do tempo, pôs-se a congeminar destemidos versos
panfletários destinados à memória futura das novas gerações
contestatárias e nacionalistas. Versos esses que, embora clandestinos,
eram recitados de forma sorrateira em muito restritos círculos de
confrades, amigos e admiradores.
Entretanto, o pilão continuava retinindo nos
quintais, e nos terreiros sagravam-se os ritos funerários e mandavam-se
recados aos finados e ao senhor da chuva e, assim, prosseguia a trágica
edificação da identidade do povo da ilha, do arquipélago do verde
renitente e do diário milagre da sobrevivência.
Alguns anos mais tarde, um outro poeta, também ele
branco nascido sob o signo de sagitário no plateau da cidade da
Praia, mas nele efectivamente criado até à idade adulta,
sentado num café de Lisboa, assediado pela doença, pela saudade e pelo
inverno, dessedentava-se nos sequeiros de Mato Engenho e de Dàcabalaio e
sonhava um outro amanhã para as suas distantes e amadas ilhas, e as suas
levadas enormes, e os seus trapiches pilando, e o seu cheiro de melaço
vivificando as ânsias de felicidade na terra finalmente nossa, do povo
das ilhas (“estás a atribuir-lhe de forma abusiva essa última expressão,
consabidamente da lavra clandestina de Manuel Duarte. O António Nunes
era simplesmente um poeta neo-realista que transitou do ultra-romantismo
para o cânone claridoso salpicando-o dos ritmos de pilão e de outros
sinais afro-crioulistas por influência de Teixeira de Sousa e da poesia
negritudinista do mulato santomense crescido na diáspora portuguesa da
capital do império, Francisco José Tenreiro de seus nomes civil e
poético completos. As leiras de terra que serão nossas
inserem-se mais num projecto de reforma agrária de teor socialista, ou,
melhor, democrático-popular, como propugnavam os comunistas portugueses,
companheiros de jornada de Teixeira de Sousa que, aliás, introduziu
António Nunes nas tertúlias neo-realistas do Café Gelo de Lisboa, do que
numa visão independentista, como, aliás, se viria a verificar com a
postura titubeante do romancista foguense quanto a esta última questão,
não obstante o seu entranhado anti-fascismo e o seu inquestionável
progressismo político-social, primeiramente de cariz mais comunista e
revolucionário, depois de teor mais socialista e reformista ”-
interpelou-me, visivelmente incomodado, o poeta-mor, ex-preso político e
combatente da liberdade da pátria. Aliás, não te esqueças desse outro
poeta caboverdiano radicado na Metrópole e muito ligado aos círculos
neo-realistas da poesia do (anti) bloqueio. Na verdade, nascido na ilha
da Boavista, foi levado para Lisboa ainda de tenra idade, tendo aí
crescido e morrido, feito homem e poeta navegante entre o seio familiar
crioulo caboverdiano e a ambiência circundante europeia, tornando-se,
por isso, cultor de duas poéticas, complementares nas temáticas e nas
sensibilidades trazidas à cena. São dele A Ilha e a Solidão e
Missiva, de incidência e temática caboverdianas, mas também os
muito celebrizados Pátria, Lugar de Exílio e A Invenção do
Amor, de temática predominantemente portuguesa e/ou universalista,
mas sempre de altíssimo teor libertário e anti-fascista. No
progressivismo residirão os seus pontos de encontro com o poeta
sagitário, saudoso da cidade natal, longínqua e pequena).
Porque sagitário, morreu o demiurgo do poema de
amanhã esquizofrénico num hospício da pátria monumental da miséria
desvalida do povo, enclausurado no coração do império.
Santiago continuava especado entre o mar e o pilão,
entre o sul e a estiagem, aguardando pacientemente, meses atrás dos
meses, anos atrás dos anos, a estação das águas, das sementeiras, das
mondas, das remondas, das trismondas, das colheitas dos risos, dos
frutos, da alegria,
Os cavalos relinchavam continuamente em Santa
Catarina, as folhas dos poilões rumorejavam entre Setembro e Março, o
azul entranhava-se à distância e aos ecos ressoando entre as colinas sob
o profético deambular de Nhu Naxu.
1938-1966
Tempos de outros regressos e de
outras partidas
Veio o António Pedro na sombra do
nacional-sindicalismo, do surrealismo, do periodismo e do Marechal
Carmona (então presidente da pseudo - república portuguesa do Estado
Novo em exercício de soberania por terras ultramarinas), viu a claridade
e sorriu satisfeito.
O arquipélago tornou-se com o império a retaguarda do
mundo. Tudo cheirava a pólvora e holocausto. Crioulos caboverdianos
nascidos afro-americanos ou latinos do Mississipi desembarcavam nas
costas de Dunquerque. Judeus de Cabo Vede agarravam-se ao Sião de Achada
Riba, enquanto António Pedro proferia convincentes ditongos de liberdade
entre o nevoeiro de Londres.
O arquipélago tornou-se, contra o império, a
retaguarda da voz. E os corpos islenhos calcinados entre os oboés,
descobriam-se escuros, castanhos e libertários.
António Pedro habitava ainda as muitas moradas das
diásporas.
De 1966 até à
eternidade
Morreu o pai minhoto, escriba assíduo na revista
maior da província/colónia dos seus tempos praianos, veio e viu como a
terra ainda era seca, de um continuado odor castanho salpicado de verde.
Foi-se e nunca mais voltou, o Sagitário de tantas
promessas não cumpridas, o Homem-Teatro de tantas máscaras assumidas
quiçá para melhor perscrutar as diversas tonalidades da dor e as
diversas matizes da paixão, o artista plástico e o poeta surrealista
que, desprevenido, também se embebedou da terra nua e árida e das suas
imponentes colinas azuis, e se fez eco dos rochedos de Laranjo e da
Serra da Arga, ao som improvável da morna, que, serenada em serenata,
teimava em arrebatá-lo para o transe de uns desajeitados passos de
maxixe.
Praia, 21 de Julho de 1987 (versão original publicada
na revista Fragmentos, de 1987)
Revisto e refundido em Lisboa, aos 16, 17, 20 e 21 de
Dezembro de 2010, aos 30 de Janeiro, aos 1, 6 e 9 de Fevereiro, a 16 de
Outubro de 2011 e em Abril de 2012.
(1) Dionísio de Deus y
Fonteana é o nome literário utilizado por JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA
para a escrita de crónicas literárias e de outros textos em prosa de
ficção |