|
|
|
REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências
Nova Série | Número 27 | Maio | 2012
|
|
|
JOÃO SILVA DE SOUSA
Viseu
e o Infante D. Henrique |
|
|
|
|
|
EDITOR |
TRIPLOV |
|
ISSN 2182-147X |
|
Contacto: revista@triplov.com |
|
Dir. Maria Estela Guedes |
|
Página Principal |
|
Índice de Autores |
|
Série Anterior |
|
SÍTIOS ALIADOS |
|
TriploII - Blog do TriploV |
|
Apenas Livros
Editora |
|
O Bule |
|
Jornal de Poesia |
|
Domador de Sonhos |
|
Agulha - Revista
de Cultura |
|
Arte - Livros Editora |
|
|
|
|
|
“Abramos as janelas que os nossos avós sistematicamente
cerraram, […] na educação da futura humanidade: uma
humanidade mais livre, mais nobre, muito mais harmonio-
sa, mais justa. […] só, então, teremos feito coisa de real,
e poderemos dizer que entendemos, e sentimos, a bela dou-
trina da redenção pelo esforço e pela cultura, pelo trabalho
e pela luz”.
(António Sérgio)
|
|
|
|
1. Lições e estudos de actualização de
conhecimentos constituem múltiplos labirintos, mas também revelações
fascinantes para a construção de ideias. Cada tema terá, naturalmente,
em consideração a necessidade do desenvolvimento do saber, mas nunca em
termos absolutos. Procura despertar no investigador – que trabalhe in
solidum ou em grupo –, as suas faculdades latentes, o seu potencial
de raciocínio, de síntese e crítica, à medida que vai inovando as suas
conclusões. É uma meta, por demais difícil de explicar, tanto quanto é
estranha, quando o mesmo pretende conciliar opiniões que fizeram Escola,
e tem depois de destruí-las ou, pelo menos, contradizê-las. Quanto a
nós, temos, sem dúvida alguma, de fazer o pleno dos lados da questão,
considerando também o tradicional, popular, enfático, alegórico e
exagerado…, embora em nada se coadunem, com a realidade dos tempos em
que estamos a trabalhar.
Expliquemo-nos melhor, numa
pequena frase. No nosso laboratório, onde não trabalhamos com químicos
que modifiquem as células e moléculas e nos dêem a transparência do
produto, cabe-nos reagir ao que nos pareça falacioso, e sustentar a
nossa verdade, desta feita, porém, atendendo ao que pensamos, hoje,
acerca da realidade que construímos do passado, num tempo longo… de
séculos.
Assim, julgámos ser de referir a
importância da cidade de Viseu, no século XV, as actividades do Infante
D. Henrique e do prestígio devolvido à cidade, como moeda de troca. Isto
é, se o Navegador foi importante para Viseu, também a cidade não o foi
menos para o seu 1.º Duque. Referir-nos-emos à realidade dos factos e
dos resultados e poremos de parte muito do que se escreveu e disse,
empolada e circunstanciadamente, pelos anos Sessenta do século XX. E,
mesmo assim, cheios de boas intenções, continuamos a temer estarmos a
ficcionar. Só que, hoje – e não como ontem –, temos a consciência disso,
limando arestas e pensando, repetidas vezes, na explicação mais óbvia
dos factos.
2. Viseu
apresenta-se-nos, nos inícios do século XV, como um centro urbano de
categoria abaixo de algumas das vilas portuguesas, como, por exemplo, a
de Santarém. Diferente, no conceito actual, na Idade Média, esta não era
cidade porque não tinha bispo, Viseu era cidade porque o tinha. E
teve-o, desde Remissol [572-585], com o domínio dos Visigodos.
Conta, à época, com 6 000 e
poucas almas, que vivem da agricultura e de uma indústria, a dos tecidos
– a única conhecida como tal. Tem uma boa produção de lã, linho, estopa,
sisal, bragal, couros… mas tem também, por esta altura, poucos braços
que possam dispensar-se a estas e a outras actividades novas, mais
rentáveis e desenvolvidas, menos penosas porque menos cansativas,
capazes de abrirem portas ao comércio interno e, sobretudo, às trocas
com o Exterior.
O facto é que, depois que um dos
filhos de D. João I foi feito seu 1.º duque (1) – falamos, naturalmente,
do Infante D. Henrique –, Viseu passou a ser tida como centro de uma
série de feudos que, desde 1411, fizeram parte do património territorial
da Coroa, sob administração do Navegador, os quais se estenderam num
espaço geográfico, à época, um dos maiores do Reino: a Comarca da Beira.
E, dentro desta, nos três almoxarifados, isto é, Guarda, Viseu e Lamego,
e, num triângulo ainda mais preciso, definido pelas linhas Tarouca e
Lalim ao couto do Guardão e deste a Viseu.
Poderá parecer, pois, a quantos
não se familiarizaram ainda com os séculos IX a XV, mesmo nestes tempos
de transição para a modernidade, termos empregado várias noções que se
afiguram contraditórias. Falámos de feudos, como terras da Coroa, e
referimo-nos ao facto de eles figurarem sob a administração pessoal do
Infante. E para que, de uma vez por todas, possamos esclarecer o que
pretendemos afirmar ou para que queremos, na realidade, chamar a
atenção, há que assentar o facto de ninguém ter, então, nada de seu,
sendo tudo, por consequência, bens da Coroa. Esta distrai de si, veicula
a posse para terceiros, mas lembra e por escrito, segundo conceitos
muito precisos, que a cada um apenas caberá ir tão longe quanto o rei de
Portugal autorize, o que, então, passamos a ver explícito nas cartas de
doação régia e na lei que daquele dimana, após promulgação. Esta
situação jurídica é tão antiga quanto a primeira configuração do
minúsculo Condado de Portugal.
Com a carta de ducado, D. João I
outorga ao filho direitos reais. Entre os mais significativos, o direito
de jurisdição, pelo qual o Infante detinha estabelecimentos prisionais
próprios em Viseu, nomeava os ouvidores com direito a correição, onde
não interviriam ouvidor ou corregedor régios. As apelações, nos feitos
crimes, subiam do Senhor Infante – quem primeiro as apreciava – aos
correspondentes oficiais da Corte, se fossem casos de pena capital ou de
amputamento de membro. Mas os feitos cíveis eram todos da exclusiva
competência dos desembargadores de D. Henrique, pelo que as coimas lhe
eram devidas e distribuídas pelo juiz e pelo saião viseenses. Às viúvas,
órfãos e indivíduos economicamente mais debilitados, residentes em
Viseu, que, pela Ordenação, tinham o privilégio de elegerem, por
seu juiz, o corregedor da Corte ou sobrejuízes da Casa do Cível,
era-lhes assistido o direito de se dirigirem ao ouvidor do Infante ou ao
seu desembargador, substituto ou sobrejuiz do rei, ou, então, ao juiz
ordinário. São vários os casos referidos a Viseu e que dizem respeito ao
modus operandi nos juízos da cidade (2).
Ainda o relego dos vinhos de
Viseu. Em 1416, D. João I doara a D. Henrique todos os direitos e
rendimentos do centro urbano e seus termos, à excepção das sisas gerais,
imposições ou sisas dos vinhos e o serviço novo dos judeus (3). Ao
passar a dita carta de ducado ao filho, o rei não excluiu dela o relego
régio que se teve, consequentemente, como constitutivo de mais uma
importante prerrogativa do Infante.
Em princípios do séc. XV, os vinhos
representavam, naquela vasta zona, uma substancial fonte de receitas
que, por este feito, transitavam para o fisco henriquino. Como as
carências do Infante eram múltiplas – assim o veremos –, ele parece ter
exorbitado nas cobranças do imposto, o que levaria os homens-bons do
concelho de Viseu às cortes de Lisboa, em 26 de Março de 1455, onde
afirmaram constituírem aqueles uma das principais riquezas da região, em
capítulos especiais. D. Afonso V respondeu, pois, “que nos praz e
mandamos ao corregedor que faça guardar a dita convençam e custume”. Ora
a convenção ou acordo era a que, antes, o rei tinha com os viseenses, e
que se traduzia num pagamento quase simbólico; e sobre o costume, o
monarca avançava com o princípio de que o Infante deveria respeitar o
Direito que protegia os privilégios dos vizinhos da cidade queixosa (4).
O plantio das cepas cruzadas e
apuradas, as belíssimas uvas que se produziam e o fabrico do bom vinho
eram produtos com que a cidade se mantinha, que os seus moradores se
empenhavam e recolhiam da sua lavra e que, desde sempre, foi costume
guardado que ninguém lhe levasse vinho de outras terras, de outros
concelhos, sob pena de perderem o vasilhame (5).
Como duque, o Infante havia
permutado, pelos anos de 1420-1430, com a Câmara de Viseu o referido
relego régio, ou seja a primazia no fabrico e venda do vinho e, antes,
da venda das uvas, daquela região particularmente próspera. O rei, seu
pai, concedera-lhe, como vimos, ao atribuir-lhe a carta de ducado (6) e,
de resto, são em grande número os textos coevos, como diplomas de
doações, prazos e confrontações, relativos a Viseu e aos seus termos, em
que se faz referência às vinhas e ao vinho.
O Cronista, ao descrever as
festas aí promovidas por D. Henrique, em 1413-1414, informava que também
lá chegavam pipas de malvasia e muitos outros vinhos brancos e tintos da
terra, por certo vinhos do Douro, cujas uvas, para o seu fabrico, se
adiantavam no amadurecimento, devido ao clima, e, como vinho-novo,
estaria pronto e em óptimas condições, logo a partir de Agosto. Com
efeito, terá o Infante aproveitado para os folguedos, os vinhos do Dão e
aqueles já de fama sustentada (7).
A outorga de direitos reais a
este senhor feudal dava-lhe a possibilidade de mandar fazer executar as
suas ordens, a seu bel-prazer, porventura de modo distinto daquele que
era usual, até porque o soberano, na maior parte dos casos, não indicava
normas a seguir. Razão por que, só décadas depois, se observa aquela
reacção, por parte dos vizinhos e moradores da cidade de Viseu e dos
seus alargados arrabaldes.
D. Henrique fica, então, como
proprietário de todo um grupo de terras que se acercam de Viseu, e
começam a contribuir para a importância em crescendo deste centro
urbano. Mesmo com os seus topónimos específicos, quando tratamos de
algumas mais longe, como Tarouca, a honra de Lalim e Valdigem (8), – das
quais tomou posse a 1 de Março de 1413 – elas não deixarão de entregar
géneros alimentares no erário do Infante, cujo centro patrimonial e
administrativo é aquela cidade.
Deste modo, graças a D.
Henrique, o espaço urbano vai florescendo com a agricultura, pecuária,
pesca, aproveitamento de baldios e charcos por meio de arroteamentos e
secagens, com indústrias como a da lã que já referimos, a que
adicionamos a tinturaria, colas e cardas, além de outras matérias primas
que podem colher-se diária e gratuitamente nas florestas que são de
todos, e que lhes estão à mão, com a maior das facilidades. Há ainda a
ter em conta a tinturaria do pastel, introduzida no Reino pelo Infante,
o qual veio a receber o seu exclusivo, a 28 de Agosto de 1445 (9). O
Infante dava, ainda, de sesmaria, a quem lhe aprouvesse ou lhe
solicitasse, na zona de Viseu e nos seus termos, – assim procedendo para
com outras vilas e lugares da Beira –, certas terras suas e da Ordem de
Cristo, que se perderiam à míngua de amanho, a fim de serem cultivadas e
aproveitadas, como ordenava a lei fernandina de 1375, mais tarde
publicada nas Ordenações do Reino (1448), com aditamentos de D. João I e
de D. Duarte, já rei (10).
Os arroteamentos levavam-se a
termo nos densos bosques, que se alongavam por aqueles espaços imensos,
por entre serras e vales, fornecendo a madeira tão necessária à
construção civil e, sobretudo, à naval.
No que se refere à criação de
gado, à pastorícia e transumância, desde cedo, o rei de Portugal nomeia
oficiais que têm a missão de encontrar e dar destino ao gado do vento e,
como escrivães, passam a encarregar-se dos gados que vão pastar a
Castela. Para este efeito, por exemplo, por carta de 6 de Agosto de
1456, D. Afonso V nomeara Gil Álvares, escudeiro e criado do Infante D.
Henrique, para aquelas funções, na comarca da Beira (11), existindo
ainda, na cidade, uma casa de registo de todo o gado que se perdia, se
anunciava e cujo dono não tinha sido encontrado.
Havia também juízes das sisas
gerais, vinhos e panos da cidade e seus termos, nomeados entre os seus
escudeiros (12), que operavam em gabinetes no centro urbano viseense.
Dos cerca de 6 000 habitantes
com que o Infante recebeu Viseu da parte de seu pai, passamos,
repentinamente, a um número muito mais elevado de almas, a calcular pela
subida de 8 freguesias para 14 (hoje são 34), muito longe ainda – como
se vê – do número actual.
Muito mais gente significa
necessariamente aperfeiçoamento nos sistemas de cultivo, progressos na
produção agrária e artesanal, instituição de um mercado, por semana, e
uma rápida reabertura a uma feira (13) que vai pautar-se pelo melhor
modelo criado, até então, no País pelo rei: a feira de Tomar, um bom
exemplo estabelecido, a 2 de Outubro de 1420 (14), dado que esta vila
era sede da Ordem de Cristo, e que, a partir deste ano, seria gerida
pelo Infante como seu 1.º administrador laico (15). |
|
|
|
A
Cruz da Ordem de Cristo, nas Descobertas,
on line |
|
|
|
A 26 de Agosto de 1435, D. Duarte autoriza seu irmão a fazer feira
anual, a começar três dias antes da festa do Corpo de Deus e a acabar
três dias depois (16). A 13 de Janeiro de 1449, D. Afonso V, já de posse
do governo, com os do seu Conselho, confirma a carta de feira anterior
(17). Entre estes dois momentos, foi muito importante a carta da
regência de 22 de Fevereiro de 1444, quando o Infante D. Pedro concedeu
feira anual na cerca da vala da cidade de Viseu, a pedido de seu irmão
D. Henrique, com os privilégios da de Tomar, dando àquele o exclusivo da
montagem das boticas na mesma, com aplicação do respectivo aluguer à sua
capela do Mosteiro da Batalha, porquanto, em outros locais existentes na
Beira, havia feira à excepção desta cidade, o que leva e concluir que,
em 1435, não deve ter sido dada importância à carta do falecido irmão, o
rei D. Duarte.
O período de realização do
certame restaurado ia de oito dias antes de Santa Iria, começando a 12
de Outubro, até oito dias depois, terminando a 28 do mesmo mês. Temos
então 16 dias ao todo.
E, tal como para a feira de
Tomar, em seu testamento, dispôs o Navegador das receitas da de Viseu.
De 18 de Abril de 1461, já um ano depois da morte de D. Henrique, datou
a tomada de posse pelo Cabido da Sé da cidade das barracas da feira, a
ele legadas pelo Infante (18).
Ora, entre 1411 e 1420, D.
Henrique, aquando do restabelecimento de pazes com Castela, é nomeado
fronteiro para Viseu, dado que se aguardava, então, a vinda a Portugal,
de uma embaixada do reino vizinho, para juramento por parte do rei D.
João I e dos seus filhos das respectivas cláusulas do convénio de 31 de
Outubro de 1411, o que só veio a verificar-se três anos depois (19),
aquando do alvoroço causado pelos preparativos dos Portugueses de um
assédio não sabiam bem onde nem a quê. Foi ratificado por João II de
Castela a 30 de Abril de 1423 (20), confirmação esta que chega à Beira e
à Câmara de Viseu, a 4 de Setembro desse ano, tal como as pazes firmadas
em Medina del Campo, em 1431-32 (21), ratificadas em Almeirim por D.
João I, a 27 de Janeiro deste último ano (22).
Após as festas – já antes ditas
– organizadas a mando do Infante e onde estiveram presentes seus irmãos,
incluindo o herdeiro do trono, o Príncipe parte para Ceuta, é bem
sucedido como a maior parte dos outros, e é feito duque em Portugal,
sendo já senhor da Covilhã, como, aliás, é tratado pelo pai na carta de
ducado.
Quem foi com ele a Ceuta em
1415? Quem o acompanhou nos socorros ao Norte de África em 1418, 1419,
1424, 1437-38, neste último caso a Tânger, começada a preparar a sua
tomada ainda antes de 1418 (23) e, por último, a Alcácer Ceguer (1458)?
A resposta é óbvia: foram os seus homens e, naturalmente, aqueles que
tiveram de abandonar os seus serviços regulares, para passarem ao manejo
das armas. E depois que D. Henrique foi ao Porto preparar a armada, e
“auiou todas suas gentes e armas e mantijmentos” (24), esta levantou
ferros, maioritariamente com homens seus e das suas terras. Ele próprio
o diria: ”eu mandey rrequerer os meus e aquelles a que eu fiz dar e dey
ofiçios pêra auerem de hir comjgo na armada” (25) e, noutro passo,
reafirma: “pello mandado meu, que ouue [Afonso Eanes] pêra rrequerer
aquelles que meus eram e chegados a mym ou tijnham ofiçios que per mym
ouuesse, que se fezessem prestes pêra hirem comigo na armada” (26).
Rui de Pina também o refere: -
“assy forom muitos Cavalleyros e Comendadores da Hordem de Cristo, e
outra muita e nobre gente que ho Ifante Dom Anrrique tinha em sua casa e
pello Regno, que foy a mais e melhor que atee seus dias, nenhum Príncipe
destes Regnos de Portugal sem Coroa teve” (27).
Viseu não se furtou às suas
ordens, nos socorros empreendidos logo a seguir, continuando a aparecer
no mapa como uma cidade com história própria, porque a que sempre teve,
não estava esquecida.
A cidade passou a pagar impostos
dobrados ao seu senhor que, por carta de 16 de Fevereiro de 1416, havia
sido indigitado como seu alcaide-mor, com todos os rendimentos que daí
adviessem, governando e dispondo dos seus homens, infra-estruturas e
capacidades, a partir de então, e com a obrigatoriedade de mandar
reparar a sua fortaleza (28). |
|
|
|
Muralha da cidade, pronta ao tempo de D. Afonso V [1438-1481]
(29) |
|
|
|
Quer
dizer, Viseu, militarmente, com o Infante D. Henrique, como alcaide-mor,
aumentou o seu protagonismo e tornou-se numa das mais importantes
cidades do Reino, quanto mais não fosse porque a guerra, a constante
praga da humanidade, passou a contar com gente e géneros para serem
liderada e usados, nos assédios a espaços extra-muros (30).
A alcaidaria deu ao Infante uma
importância imensa, na área, pois das cidades – que eram todas do rei de
Portugal –, se apartava esta, juntando-se também ao património
henriquino. E ainda, porque nos pareceu que o Infante, sabendo bem
geri-la, associou-lhe a grande valoração que lhe dava o cargo à
administração de um vasto patrimómio imobiliário por perto e, além
disso, a sede de ducado, o que dele faria o principal rico-homem do
País. Se assim não fosse, como se justificaria a sua nomeação mais
tarde, a 9 de Maio de 1440, para fronteiro-mor da Beira (31) e, entre as
duas datas, como responsável pela planificação única em Portugal, da
vasta e complexa empresa dos Descobrimentos, os quais, também cedo, se
iniciaram a partir de Lagos, muito à custa de Viseu, de mulheres e
homens, das suas terras pessoais, e outros bens? Viseu e Lagos, cidades
gémeas, estavam ligadas, desde cedo, pelas suas posições geográficas
estratégicas, de Norte ao Sul de Portugal, tal como estabeleciam ambas o
contacto do Litoral com o Interior e vice-versa. Além disso, ambas as
localidades tiveram o seu grande período de apogeu, em tempos recuados;
ficaram, depois, esquecidas no mapa do Reino; e regressaram ao seu tempo
áureo, no século XV. Só que Viseu “chegou” para ficar e Lagos voltaria a
apagar-se com D. João II, quando os Descobrimentos a libertaram e
passaram a sua poderosa máquina para Lisboa. A função das cidades e,
entre elas, a de Viseu, manteve-se.
A frontaria-mor da Beira,
associada às consequentes missões militares que dela dependiam, fazia
com que se adscrevesse a D. Henrique um sem-número de ofíciais que
protegiam a área comarcã, de Lamego a Viseu, daqui a Castelo Branco e,
numa vertical a Nascente, seguia às terras de Ribacôa, sensivelmente.
Desta feita, o novo cargo comportava enormes responsabilidades que seus
homens na região, conhecendo-se uns tantos de Viseu e das vilas e
lugares do termo, passavam a ter na defesa e prevenção de investidas
castelhanas e aragonesas, depois do afastamento de D. Leonor, viúva de
D. Duarte, da regência do Reino (1439).
Mas não poderíamos, neste caso
vertente – adentro do poderoso sector da Economia/Finanças –, omitir a
já acima referida indispensável isenção dos direitos de relego de Viseu
a D. Henrique, nem – no que se refere ao intrincado campo político –, a
nomeação de homens de sua Casa para serviços já ligados ao mar. Outros,
à Administração. Um ouvidor, por exemplo (32) Indigitado, a 20 de
Dezembro de 1415, para a escrivaninha dos homens do mar, pertencente ao
concelho de Lisboa, fora Martim Anes, seu criado, “bõo mancebo, jdoneo,
perteeçente para o dito oficio” (33), e João Martins – mais um, entre
vários –, que era mestre dos treus, ou seja, das velas latinas, em 1416
(34). Todos estes e os demais eram vizinhos de Viseu.
Aqui – e a partir da cidade –,
deu-se, de pronto, vida particular, pública e política ao Reino,
reforçando o protagonismo do seu 1.º Duque, não apenas no Mar Oceano,
como tem sido considerado, mas também em terra, estabelecendo contratos
e apresentando indigitações de homens da sua Casa para lugares de
prestígio. O cabido da Sé de Viseu foi também assíduo interveniente.
Homens da cidade começavam a ter os seus nomes inscritos na Chancelaria
régia, os quais podem ser recolhidos dos Pergaminhos do Cabido,
do Arquivo Distrital: João Gonçalves Farto, criado, é apenas um de 54
que intervieram, a seu modo ou a mando do Infante, na ligação de Viseu
com a sede da Coroa (Lisboa, Sintra ou Santarém) e com o País em geral
(35); Luís Dias, escudeiro, residente em Mesquitela, era meirinho nas
terras da Beira, em Viseu, inclusive (36).
3. De entre 1419 e 1429,
com o seu proémio estabelecido em 1415, remonta, sem qualquer dúvida, o
início da tarefa ultramarina do Infante D. Henrique, com o
redescobrimento, por pessoal da sua Casa, do arquipélago atlântico da
Madeira e, depois, dos Açores. Esta liderança continuada nas conquistas
e descobertas teve de contar com orçamentos sustentados e de fazer
pensar numa maneira de a Coroa poder subsidiar o líder das empresas.
Para o efeito, o trono recorreu a doações de terras com rendimentos
próprios e à atribuição de monopólios de fabrico, e exclusivos na venda
dos produtos por parte da máquina, cada vez mais complexa e actuante, do
Navegador.
É indiscutível que se trata de
uma Empresa, em termos modernos, com rendimentos próprios e
estabelecendo secretarias que visassem objectivos muito concretos:
cartografia, instrumentos e Geografia; cultura, com trocas de saberes
entre nacionais e estrangeiros, mais experimentados no Mediterrâneo e no
Oriente; armazéns de guarda e restauro de apetrechos de navegação e
guerra; plataformas de construção e reparação de embarcações; uma
escrivaninha financeira e outra voltada para o arrolamento de navegantes
– mestres, capitães, pilotos e outros mareantes, aos quais se associavam
filhos segundos da nossa nobreza e, com idênticos objectivos, membros do
clero e mercadores.
O rei recebia o quinto e o País
cada vez ia aditando, com maior visibilidade, à sua característica
agrária, uma outra – a mercantil. Contavam-se os homens que, de todo o
lado onde D. Henrique detinha terras e, muito especialmente, de Viseu e
da Beira, em geral, enviavam bens comestíveis, se deslocavam a Lagos com
suas mulheres e filhos capazes de trabalhar, uns para proverem as
embarcações com tudo quanto era necessário às viagens, outras fabricando
o biscoito, talhando e fumando as carnes e secando e salgando o peixe
que chegava no dia, enchendo os tonéis de água que transportavam dos
rios e ribeiras mais próximos e o vinho, branco e vermelho, que vinha do
Dão e de outras partes mais chegadas. As mulheres coziam o alinhado
velame, e os homens encarregavam-se dos remos, das redes de pesca, dos
ferros, dos mastros e da colocação das velas – eram tanoeiros,
carpinteiros, calafates e petintais das galés, caravelas, e de outras
tipologias de embarcações. Eram lavradores e valadores, mestres de treus
e escrivães dos portos. Com o símbolo da Ordem de Cristo pintado nos
panos alvos, sabiam todos os que partiam e por cá ficavam, que, a par da
tomada de riquezas, se ia para propalar a cruzada em terras que
desconheciam a existência de Cristo.
Disse o próprio Infante ter
constituído o Cabo Não como ponto de partida dos descobrimentos no Oeste
africano e, por conseguinte, o Cabo transposto, em 1434, por Gil Eanes.
Até 1436, a devassa marítima atingiu o Porto ou Pedra da Galé, no Rio do
Ouro. As descobertas passaram o Cabo Branco, em 1441, depois o
promontório do Cabo Verde e a Ilha Gorrée, partindo da Guiné para a
Serra Leoa e desta até à Libéria. |
|
|
|
Caravela Portuguesa, on line |
|
|
|
4.
Antes ou logo após o restabelecimento da feira de Viseu, o Infante
recebia, como contrapartida régia mais imediata, regalias para os
cultivadores das suas terras beirãs que, privilegiados com a isenção do
pagamento de impostos ao fisco e da prestação de usuais serviços, iam
engrossando o erário henriquino, ficando o Príncipe liberto de
contribuir com mão de obra para outros trabalhos que não fossem os seus
(37). Simultaneamente, principia o Navegador – o único entre os irmãos
–, a montar indústrias pessoais, com o consentimento de seu pai e, mais
tarde, dos irmãos, D. Duarte e D. Pedro e de seu sobrinho, D. Afonso V:
entre outras, a pesca no rio Tejo, no passo do Ródão, proibindo que
alguém fizesse canal ou colocasse estacas, onde o Infante assim
procedesse para reter o peixe (38).
A indústria da pesca que tinha a
ver, de início, com o peixe de rio, levou o duque a mandar construir
tanques nas suas florestas nos termos de Viseu e noutros lugares da
Beira, os quais funcionariam como viveiros e onde, pagando por eles, os
vizinhos e moradores das localidades poderiam estabelecer contratos, o
que lhes era extremamente importante porque viviam afastados do mar e o
pescado não lhes chegava nas melhores condições. Assim, viam-se mesmo
compelidos ao aproveitamento das reservas senhoriais. O rei ao doar o
exclusivo da pesca a seu filho, prescindia, automaticamente, daquele
primeiro peixe que fosse caçado, vir a ser, como direito real, destinado
à sua ucharia.
Os direitos da pesca que viam
aumentar-se de ano para ano e confirmados de rei a rei, estenderam-se,
então, ao atum, pescada, corvina e sardinha no reino do Algarve (1433)
(39), à dízima nova de todo o pescado nos mares de Monte Gordo (1433)
(40), vendo privilegiados, a seu rogo, a 1 de Junho de 1436, até 18
homens que iriam andar na armação dos atuns e corvinas no Algarve (41) e
a muito mais já por nós e por outros autores tratado e referido.
Ainda há a somar o exclusivo da
pesca do atum no Algarve, com direitos e rendimentos régios da mesma,
excepto a sisa percebida da venda do peixe que ficaria ressalvada para a
Coroa; a pesca no Baleal e nas ilhas Berlengas (1449), nas proximidades
de Peniche. Estavam em causa a abundância da pescada e da sardinha.
Zurara, na sua Crónica da Guiné, referiu-se também às tartarugas
ou cágados do mar, cujas conchas eram tamanhas como escudos; a pesca nas
ilhas atlânticas e na costa de África, ainda pelo Cabo de Trasfalmenar
(1443) e o exclusivo da pesca do coral, a rogo do próprio Infante (42)
e, até então, emprazado a Florentinos. |
|
|
|
O Cabo de
Sagres ou de Trasfalmenar, no Algarve |
|
|
|
Com todo este suporte económico, coube ao Infante permitir que os seus
viseenses tornassem, então, a sua feira numa das mais importantes e
movimentadas, na encruzilhada de novas vias que faziam a necessária
ligação do Norte do País com os palcos marítimos algarvios, algumas
delas, cruzando a cidade e deixando umas moedas quer à entrada, fosse à
saída. Estas costumagens e os géneros que correspondiam a novas
“indústrias”, então, mais desenvolvidas e organizadas, vão repercutir-se
num crescendo que teve a ver com o avanço das viagens marítimas(43), trazendo ao duque e a Portugal alargados dividendos. As
suas indústrias pessoais mostram-se desnecessárias às despesas diárias
correntes, pois para tal tinha as rendas das suas terras ditas
patrimoniais. Todavia, já desses monopólios necessitaria para custear as
empresas náuticas e todo o arsenal montado para poder realizar várias
viagens por ano: de reconhecimento, mercantis e de guerra. Mesmo assim,
à sua morte, as dívidas foram bem visíveis, o que terá feito com que o
seu sucessor, D. Fernando, 2.º duque de Viseu e 1.º de Beja, senhor de
Covilhã, de Serpa e Moura, administrador das Ordens Militares de Cristo
e Santiago, senhor das ilhas achadas e das que viessem ainda a ser
encontradas… pusesse de parte as viagens e preferisse partir para as
conquistas do Norte de África, mais a gosto de seu irmão D. Afonso V.
A propósito das escaladas do
rei no Norte de África, havia um outro direito exclusivo seu – o quinto
das presas.
Também este veio a ser
conferido, em regime de monopólio, a D. Henrique, dando-lhe o exercício,
como duque, de funções régias nas suas terras patrimoniais. O infante
empregou, desde cedo, servidores seus no corso e obrigou a vigiar,
eficazmente, a cobrança do quanto lhe cabia das navegações promovidas
por outrem. Era dele esse quinhão, desde 1433, quando D. Duarte lhe
concedera a sua isenção (44), sendo possível que D. Henrique houvesse
imposto, sob a forma de contratos de parceria, o pagamento de uma
quantia mais avultada do que aquela que fixavam as cartas de concessão.
Viu ainda o Infante, chefes de
famílias de sua Casa ficarem dispensados da lei Mental, e Viseu foi um
dos concelhos, que mais vivamente solicitaram o esclarecimento de
dúvidas e dos que quiseram saber o porquê da interferência do comando
normativo nas terras da clerezia que se achavam sob a protecção do
Direito Canónico (30 de Junho de 1434). Tinha a ver com as legitimações
de filhos naturais de clérigos e com a consequente indivisibilidade das
terras (45).
5. A correspondência de
D. Henrique para o Cabido da Sé de Viseu e vice-versa era muito regular.
O respeito pelas normas do Direito Canónico e pela jurisprudência e
cânones, por parte do administrador-mor de uma Ordem Religiosa para uma
entidade afim torna-se demoradamente dialogante, embora se simplifique,
porque ambos fazem uso do mesmo falar e modo de escrita.
O Cabido faz prazos em vidas,
arrendamentos de vária natureza, contratos de liquidação de prestações
em dinheiro, géneros e serviços, a terceiros, de ordinário com o
Infante, como intermediário, que roga para oficiais seus, no que pode
ainda ter a ver com as normas a observar na arrecadação das primícias e
dízimas das miúnças. São casos exemplares, Pedro Afonso, um bordador, e
sua mulher Inês Gonçalves, que arrendam uma casa-torre e outras, sitas
junto dela, e no lugar do Miradouro (46). Segue-se a localização com as
respectivas confrontações.
Há ainda instrumentos notariais
de escambo de casas sitas em Lisboa, dando-se, por troca e num prazo
fixado, outros bens de raiz na referida cidade ou termo, que valham ou
possam render mais. Esta situação benévola para a Igreja era bem vinda,
à luz dos santos degredos.
Havia também que regularizar
casos pessoais. D. Henrique zelava, de amiúde, pela situação dos seus
homens e pouco era quanto deixava em mãos alheias. Se não consegue
obter, in loco, nem com o recurso ao arcebispado, dirige, então,
carta a Roma. Assim sucedeu, desta feita para conseguir dispensa para o
tesoureiro da Sé de Viseu que era filho ilegítimo, e que, por acaso,
exercia as funções de seu capelão-mor, sendo comensal em sua Casa e
governador de sua capela, para poder ser provido a todas as ordens
sacras e usufruir dos correspondentes benefícios eclesiásticos (47). A
Santa Sé respondeu afirmativamente, para um período de cinco anos (48),
alargado posteriormente. O mesmo aconteceu com um prazo em três vidas
feito pelo cabido da Sé a Afonso de Mansilha, escudeiro e criado
henriquino, morador em Viseu, de uma leira, na rua da Regueira, “que vae
da dicta cidade pêra Sam Migel [sic]” (49) e a João Gonçalves de
Jugueiros, cerieiro e homem da criação do Infante, com morada na rua do
Arco (50). Casos como estes repetem-se pela vida de D. Henrique, não nos
cumprindo aqui arrolá-los (51).
Moradores ou naturais de Viseu,
servidores do Infante, em sua Casa e no seu feudo, em serviços pessoais
ou da Coroa, também os houve: João Gonçalves, seu escudeiro, foi nomeado
como juiz dos órfãos e judeus da cidade e seu termo, exactamente na
maneira em que o tinha sido o seu antecessor (52). Ou Heitor Homem –
irmão de Garcia Homem, um dos expedicionários à costa africana –, que
ficara encarregado do ofício de vedor das obras de restauro dos castelos
de todas as vilas e lugares da comarca da Beira(53). Ainda – e muitos outros poderíamos aqui referir –, dois
homónimos João Martins, ambos escudeiros: um encarregado das obras de
fortificação da cidade de Viseu e o outro escrivão dos referidos
trabalhos (54). Mais: Afonso Eanes, almoxarife do rei em Viseu (55).
Por todas estas razões e
consentimentos por parte da Sé viseense, o Infante, muito provavelmente,
autorizado pelo rei, seu pai, dado que apenas este o poderia fazer,
privilegia os cónegos da poderosa instituição, com a isenção da
aposentadoria, não sendo, pois, obrigados a dar, de então em diante,
“suas cassas nem sua rroupa […] e suas bestas pêra jrem a nenhuu cabo
com nehuas carregas, nem consentaaes que lhes tomem pam nem vinho nem
palha nem çeuada nem lenha nem galinhas nem outras nehuas cousas de seu
contra suas voontades” (56). Este era, por sinal, o privilégio mais
apetecido de todos, porquanto o rei, a sua vasta comitiva, os Infantes e
condes, os oficiais do monarca, no cumprimento dos seus ofícios,
esbulhavam, frequentemente, os povos, com tudo o que necessitavam na
altura e para a torna-viagem.
Uma das melhores fontes – porque
mais complexas –, que encontrámos nas chancelarias régias, data de 10 de
Setembro de 1454 e trata-se de uma carta de quitação passada a Álvaro
Dias, almoxarife na cidade de Viseu, de 1438 a 1449, com lançamentos
vários relativos ao Infante D. Henrique, a pessoal seu e a Ceuta (57).
Diz respeito à entrega, inspecção e resultado obtido, com a total
discriminação das despesas e receitas referentes a Ceuta, naqueles anos,
período em que o almoxarife régio na cidade de Viseu apurou relativos
àquela vertente e ainda ao duque de Viseu e a pessoal deste. Quanto a
nós, no presente texto, há que dar relevância a 35 homens da Casa do
Infante, naturais e/ou residentes na cidade de Viseu, a saber, a um
barbeiro, um cavaleiro, um homem de sua criação, um escrivão da câmara,
um tesoureiro das coisas de Ceuta, um capelão, 23 escudeiros e sete
cavaleiros (58). E a 275 membros da Ordem religiosa e militar de Cristo,
que faziam a ligação entre o poder laico viseense, a espiritualidade do
Convento em Tomar e as expectativas comerciais que os animavam, a partir
de Lagos.
6. Preparando a
intervenção no Concílio de Basileia, já há anos, fora enviado, com uma
importante comitiva, D. Afonso, 4.º conde de Ourém, filho de D. Afonso,
8.º conde de Barcelos e futuro 1.º duque de Bragança, onde se avistou
primeiro com o bispo de Viseu – D. Luís do Amaral –, e com o bispo do
Porto – D. Antão Martins de Chaves, do Conselho do rei –, depois com o
Papa Eugénio IV e, mais tarde, intervindo na referida assembleia.
Tendo decorrido as sessões
desordenada e desordeiramente, o Conde partiu para o Reino e deixou na
cidade dois representantes seus. O bispo de Viseu decidiu apoiar o
antipapa e, por isso, excomungado pelo bispo de Roma, acabou por perder
a dignidade, por ordem deste.
Foi o regente D. Pedro quem o
protegeu, devido à intervenção do Infante D. Henrique. O regente estaria
recordado do apoio que o bispo de Viseu lhe dera, aquando do conflito de
1438-39. À morte de D. Duarte, quando tentava decidir-se acerca do
titular da regência, disputada esta entre D. Pedro, duque de Coimbra e a
“triste Rainha”, D. Leonor, viúva do rei de Portugal e mãe de seis
filhos, todos menores de idade, entre eles D. Afonso V, o resultado foi
o duque de Coimbra ter acabado por sair ganhador e, em 1439, iniciar a
regência in solidum.
Outros avisos recebera em
conselho, quando participou, no sentido de reagir contra as ordens
papais e fazer o bispo de Viseu reassumir o seu cargo na cidade e frente
aos demais dignatários da Igreja local. Todos eram unânimes na
manutenção do dito clérigo à frente da Diocese (59).
Eugénio IV reagiu de imediato e,
em 1440, escreveu ao rei de Portugal, tutelado pelo regente D. Pedro, as
letras Credimus a certo e outras, certificando-o de que Luís
Gonçalves do Amaral – “filho de perdição” – havia sido sempre o seu
principal rebelde e da Sé Apostólica, tendo-se mantido invariavelmente à
proa de quantos contribuíram para a divisão da Igreja, durante o
Concílio (60)
Acontece que D. Pedro, em
resposta a diversas cartas papais neste sentido, mantinha-lhe o
tratamento de bispo de Viseu, encontrando-se o mesmo excomungado e
condenado por herege e cismático, acusado ainda por ter sido um dos
eleitores de Amadeu VIII, o Pacífico, conde e depois duque de Sabóia
para antipapa (Félix V), em 1439. Não valia de todo a pena – prosseguia
Eugénio IV – voltar-se ao assunto, porque nada modificaria o que fez
quanto à diocese de Viseu; que estranhava que o Regente lhe tivesse
sublinhado o facto de D. Luís Coutinho ter sido provido bispo de Viseu,
em substituição do primeiro, sem o consentimento do rei de Portugal, o
que era exigido quer pela lei canónica, como pela lei civil, dado que
cumpria, pelas duas, a Roma a livre disposição de todas as igrejas, sem
que se exigisse o consentimento dos reis. Assim, a atitude do soberano
em demitir D. Luís Coutinho de bispo de Viseu revelou imaturidade,
devendo o rei de Portugal, porque adolescente, rodear-se de homens
tementes a Deus, católicos e devotos.
O que se achava por detrás desta
dissidência entre o Regente e Eugénio IV era o facto de, por um lado, o
bispo D. Luís ser um homem de sua confiança e D. Luís Coutinho, irmão do
marechal do reino e depois 1.º conde de Marialva, Vasco Fernandes
Coutinho, um dos principais partidários da rainha D. Leonor, afastada da
regência e da tutela dos filhos e amigo íntimo de D. Afonso, conde de
Barcelos e permanente rival do Regente D. Pedro.
O certo é que vencia o Papa mais
esta querela – o papa, o futuro duque, o conde de Marialva e o recém
designado bispo de Viseu. Em 1439, iniciava-se o governo de D. Luís
Coutinho, terminando em 1444 e sendo substituído por D. João Vicente de
1444 a 1463, como tivemos já ocasião de nos referirmos num artigo
recente da revista Beira Alta (61). Ao bispo D. João, de
Viseu, deve-se a reformulação dos Estatutos da Ordem Militar de Jesus
Cristo, com autorização de Eugénio IV, a pedido do Infante, pelo
facto de os antigos Estatutos da Ordem conterem disposições
prejudiciais, gravosas e, por isso, pouco abonatórias, e ser necessário
actualizá-los (62).
D. Henrique não se intrometeu mais na
difícil querela, porque as resoluções do rei de Portugal não eram
responsabilidade sua e ainda porque ser duque de Viseu não lhe dava
qualquer autoridade sobre a diocese. Para mais, o duque e
administrador-mor da Ordem de Cristo andou sempre de boas relações com a
Igreja e estava certo de que muito havia a esperar dela para a
confirmação, a nível internacional, de políticas de seu interesse e do
Reino, no que importava à configuração dos novos espaços ultramarinos e
à final obtenção do exclusivo da navegação e consequente apropriação.
O cenário que poderá parecer um
tanto surrealista, não o era de facto: Castela estava empenhada na
conclusão da Reconquista e na solução de problemas com repúblicas
italianas; a França e a Inglaterra iam-se “entretendo”, como sempre,
aliás, com as suas habituais questiúnculas políticas e não tinham saído
ainda do rescaldo da interminável guerra.
Logo depois, tivemos
conhecimento de que o papa Eugénio IV satisfazia um pedido do Infante no
sentido de Martim Pais, reitor da igreja paroquial de S. Julião de
Cambra, na diocese de Viseu, dispensado do defeito de nascimento e
ordenado sacerdote: o de lhe conceder benefícios eclesiásticos, com cura
de almas ou sem ela. Martim Pais era capelão do Navegador (63).
Nesta mesma linha, o Infante
solicitara ao mesmo pontífice, a 26 de Setembro de 1446, que Pedro
Martins, deão da Sé de Viseu, pudesse ter outros benefícios, tendo, de
facto, sido concedidos por três anos (64), o que levou o Infante a
solicitar, a 22 de Outubro seguinte, que os mesmos se convertessem em
vitalícios, o que também lhe foi deferido (65).
7. Ficou a cidade de
Viseu, na prática, entregue à sua gente com um conselho no seu concelho,
o qual lhe dava poder de decisão em muitas matérias do foro governativo
interno, devidamente organizado e superintendido pela Casa do Navegador,
nas suas vertentes ligadas à Administração. Viseu era e foi sempre o
núcleo do património henriquino, não devendo este intrometer-se no poder
político circunscricional, sem que fosse chamado a isso, nem nos
negócios da Sé, a cuja esfera espiritual se achava bem entregue. Nem nas
cartas de perdão que poderemos retirar das Chancelarias Régias, nem nas
Actas de Cortes, até 1460, ano do seu falecimento. Na verdade, não houve
nunca indícios, por ínfimos que fossem, da intromissão do seu
imperium no dos homens governantes da localidade em si e do seu
vastíssimo e irregular termo, nem em contra-ordenações do soberano.
O facto também pode ser
explicado por mais uma razão para além da boa política que descrevemos
acima. Quando o rei, a pedido do Infante, perdoa e privilegia homens e
mulheres das terras deste, está, pois, a beneficiar o próprio. Quando o
monarca nomeia oficiais da Casa henriquina para funções do “Estado” ou
mesmo de menor importância, para terras da jurisdição daquele, está,
veladamente, a permitir que o Navegador se intrometa na vida política da
cidade, em seu nome, ou mesmo em representação da Coroa.
É, assim, que vemos gente da
Casa de D. Henrique na Administração do aparelho do Estado e na
viseense: João de Évora, criado do Infante, era tabelião na cidade de
Viseu (66). Este apenas um exemplo. Com efeito, muita gente daqui, entre
vizinhos e moradores, era funcionária na Casa henriquina: Afonso Eanes
fora seu cirurgião (67) e tinha o ofício de tabelião dos órfãos; Rui
Gomes, seu escudeiro, era seu tabelião geral (68); João da Costa, filho
de Pêro da Costa, era seu escudeiro (69) e, agora, vedor das obras… e
quantos mais.
Outra muita, junta num alargado
grupo de viseenses, pedia, em nome da cidade a D. Afonso V, em Dezembro
de 1439, pelo facto desta estar devassada e sem as muralhas ainda
concluídas, uma verba que chegasse para a sua defesa contra qualquer
possível reacção ao afastamento para Toledo – onde veio a falecer –, em
Castela, da rainha viúva, D. Leonor, irmã dos Infantes de Aragão, e que
o monarca e seu conselho aprovassem providências que os cidadãos
pretendiam tomar e para as quais tinham já a aprovação do senhor da
cidade, o Infante D. Henrique. Tudo isto se resumiria aos munícipes,
designadamente privilegiados e clérigos, para que contribuíssem com seus
corpos e haveres, para murar algumas travessas em torno da Sé,
fortificada pelas suas quatro torres, e ainda com vista à colocação de
portas fortes, janelas e postigos nas ruas principais e edificação de
cadeias, noutras (70).
Eram muitos deles alvo de
perdão, como, a título de exemplo, citamos Luís Afonso, natural de
Viseu, cuja pena foi comutada, com a redução de metade do tempo, por
serviço em Ceuta (71).
8. Quando Afonso V
recebeu do papa Nicolau V a bula Romanus Pontifex, datada de 8 de
Janeiro de 1455, informou, de pronto, seu tio, o Infante, pois a matéria
aí constante, embora fosse de interesse nacional, dizia directamente
respeito a este e à política que estava a ser desenvolvida sob a sua
direcção.
De que fala, concretamente, o
diploma papal?
Evoca a funcionalidade apostólica de D. Henrique, em termos naturalmente
elogiosos, aduz toda uma série de acções levadas a bom termo pelo
Navegador, desde o descobrimento e colonização dos arquipélagos da
Madeira e dos Açores, a tentativa de evangelização das ilhas Canárias e
o plano de circum-navegação da África, para contacto directo com os
Índios, cujo chefe, ao que parecia, honrava o nome de Cristo e, como
tal, podia auxiliar Portugal na luta contra os Sarracenos. A estes
trabalhos se atribuiu a duração de vinte e cinco anos de realizações
henriquinas, tendo as suas caravelas chegado à Guiné e descoberto o
Senegal. Os indígenas, em número considerável, haviam aderido à fé
cristã (72).
Consequentemente, a bula
concedia, em regime de monopólio e exclusividade, os direitos de
conquista, ocupação e apropriação de todas as terras, portos, ilhas,
lagos, rios, montes, abras e mares de África, já conquistados e ainda a
tomar, desde os cabos Bojador e Não até à Guiné e desta ad ultram.
Tudo era dos Portugueses. Ainda o direito de impor leis, tributos e
castigos, edificar mosteiros e casas religiosas, cujos padroados lhes
passariam a pertencer… (73). Esta bula encontra-se inserida numa outra,
já do papa Calisto III, de 13 de Março do ano seguinte (a Inter
coetera), sendo esta última dirigida a D. Henrique e à Ordem de
Cristo, a doar o exclusivo da espiritualidade em África (74).
Estes diplomas romanos, de teor
importantíssimo para Portugal e para o Navegador, – uma vez que, nos
mares africanos, era useiro verificar-se a existência de navios
estrangeiros que, aproveitando-se do conhecimento das nossas rotas,
técnicas e mercados, se iam antecipando no cruzamento das suas águas –,
deixavam, a partir de então, de limitar a nossa acção a mero carácter de
pioneirismo.
A partir de 1455, tudo se
tornava diferente e ninguém ousaria fazer o mesmo, sob pena da perda dos
bens, dos vasos de mar e dos homens que se transportavam nas empresas.
Ambos os documentos gizavam ainda um complexo e curioso triângulo de
interesses que, partindo da Casa do Infante D. Henrique, se bifurcava
para a Ordem de Cristo de que ele era Administrador e para o Bispado de
Viseu, que se localizava na cidade do duque e por ele era defendida.
Se assim não fosse e se, acaso,
estranharmos ter-se, alguma vez, posto em prática, em África, um
verdadeiro espírito de missionação e mandado aí edificar igrejas e
demais edifícios religiosos, basta atendermos ao facto de as bulas
datarem de 1455/56, o Infante ter falecido em 1460 e questionarmo-nos:
para quê legar, nas suas cartas de capelania, do seu último testamento,
verbas para sufrágios? Com que finalidade D. Henrique se preocupara, em
documento de 30 de Setembro de 1460, em encarregar Fr. Antão Gonçalves,
seu cavaleiro, escrivão da puridade, alcaide-mor e comendador do castelo
de Tomar, natural de Vila Nova, lugar de Viseu, e seus sucessores nos
cargos, de fiscalizar a execução dos sufrágios ordenados por sua alma,
pelos defuntos da Ordem de Cristo e por quantos se sentia obrigado a
rogar?
Vejamos os locais onde refere
que pretende a realização das missas: em Santa Maria de África, em Ceuta
e Santa Maria da Misericórdia, em Alcácer Ceguer; nas ilhas açorianas e
da Madeira e Porto Santo; em Santa Maria de Belém; em Santa Maria da
Graça e no Salvador; em Tomar, no convento de Cristo; em Viseu, na Sé, e
em São Jorge, na Cava, onde se faz feira; e no mosteiro de Santa Maria
da Vitória da Batalha… e sobre as partes fora do Reino, quer nas ilhas,
quer nos lugares em África. E toda a espiritualidade da Guiné fosse
outorgada à Ordem de Cristo, “pello quall, eu encomendo e mando a
quallquer que for vigairo ou prior ou capellam soldado per a dicta
hordem em cadahuu jgreiairo daquellas teras, que lhe praza, cada somana
ao sábado, por sempre em mjnha vida e depois de minha morte, dizer huua
mjsa de Sancta Maria. E a comemoraçom seja de Santo Spritu, com seu
rresponsso, e a oraçom de Fidelium Deus”.
Ordenava D. Henrique que
dissessem a missa de Sancta Maria in sabbato com a comemoração do
Espírito Santo, então obrigatória, aliás, nessa missa votiva, e que, ao
final desta, rezassem responso de defuntos por sua alma, sendo a oração
dele a que principia pela expressão Fidelium Deus omnium conditor et
redemptor, ainda hoje usada nas missas quotidianas de defuntos (75).
9. Conclusão |
|
“resulta do conhecimento de uma adaptação
do ser ao meio, mas adaptação em que o in-
divíduo é, essencialmente, activo, tomando
a iniciativa da pergunta, e a iniciativa da res
posta”.
(António Sérgio) |
|
Cremos não ser possível terminar de forma mais simples e,
simultaneamente, mais apropriada do que com mais esta citação de António
Sérgio. Para este autor, a História tem de mostrar erros e virtudes,
pois ela é feita à volta de mulheres e homens que são falíveis, que
erram e que constroem para que fiquem na memória seus actos
inteligentes. Não se estratificava, de um modo menos impiedoso, a
sociedade nem o espelho reflector de um País, que não fosse fazer cada
vez melhor, para legar mais valias a quem nos sucedesse.
Ao estudarmos o Infante D.
Henrique – o Homem e o “Estado” –, embora na edificação da sua Casa
senhorial que publicámos em 1991, não tivemos a preocupação de deixar
mais uma biografia entre tantas outras que já se haviam feito sobre ele.
Mas, sem dúvida, foi nossa
intenção mostrá-lo como uma pessoa comum, alegre, bem disposta, sempre
de boas relações com a família, cheia de servidores, porque múltiplos
eram os seus afazeres.
Homem religioso, sem dúvida. Mas
temperado com o mundano político multifacetado, técnico, científico e
prático.
|
|
|
|
|
|
(29) “Começando na Porta do Soar (1), a muralha
seguia encostada à Rua do Soar de Cima, (depois Rua Cónego Martins), em
direcção ao actual edifício do Grémio, onde inflectia, passando ao lado
da Rua Formosa. Na sua passagem sobre a Rua Direita, ficava a Porta de
São José (2), ou de cimo da Vila. Cortava, depois, em direcção à
esquina da casa da família Lemos e Sousa, na Rua da Árvore (3 –
Porta de S. Cristina). Daí para baixo, a cerca continuava pelo Quintal
da Prebenda até à Porta de S. Miguel (4), ou da Regueira, que
dava entrada para a Rua do Gonçalinho, seguindo, depois, encostada à Rua
31 de Janeiro, até ao Largo de Mouzinho de Albuquerque, mas pelo lado de
dentro. Nesta altura, abria-se outra porta, a Porta de S. Sebastião (5),
ultrapassada a qual, a cortina descrevia um grande arco de círculo,
abrangendo o Terreiro das Freiras (onde se realizavam as touradas) e a
casa dos Arco, até à Porta dos Cavaleiros (6), ou do Arco, assim
chamada, por ficar à entrada da antiga Rua dos Cavaleiros (hoje do
Arco). Trepava em seguida a ladeira, encostando-se à Rua dos Loureiros,
até ao cimo da calçada de São Mateus, onde se abria a Porta da Senhora
do Postigo (7), ou da Senhora das Angústias, de que ainda há
vestígios. Desse ponto, a cerca continuava, vencendo a rampa até ao cimo
da calçada de Viriato. Umas casas altas da Rua de Silva Gaio (antiga rua
Detrás-dos-Currais), devem assentar sobre os muros antigos e é nesse
percurso que se encontra o troço mais bem conservado da circunvalação
quatrocentista; uma das portas do muro, apresenta ainda umas esculturas
com a forma vaga de uma arma. Seguia depois encostada à mesma Rua de
Silva Gaio, tendo por vezes, por alicerce, grandes penedos com a
disjunção esferoidal, até fechar o circuito na Porta do Soar" (Amorim
Girão, in Viseu, um futuro com passado, Lisboa, Néstia Editores,
s.d.). porviseu.blogs.sapo.pt/arquivo/2006.
|
|
|
|
JOÃO SILVA DE SOUSA
Prof. do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Membro Correspondente da
Acade4mia Portuguesa da História, Membro da Sociedade de Genealogia |
|
|
|
© Maria Estela Guedes
estela@triplov.com
PORTUGAL |
|
|
|
|
|
|