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O
romance lusitânico foi a
língua
falada na Lusitânia do século VI ao século
IX. Mas,
apesar
de não deixar
nenhum documento
escrito, sempre
foi mais do
que
um romance.
Ou até
do que uma
novela
de televisão. Na
verdade, a ver
pela sua composição
metacafónica, o romance
lusitânico foi um
verdadeiro novelão.
Entretanto,
muito para além do tamanho
desse “velão”, o romance
lusitânico, a “Rádio
Penedo” das
invasões
dos povos
germânicos
na Península
Ibérica
foi, historicamente, o primeiro
sinal
antiglobalização de que há memória nas terras
que hoje
chamamos Portugal. Comparativamente,
o romance lusitânico,
como
agente antiglobalização romana teve a mesma
importância que
hoje tem o euro
como agente
antiglobalização americana. Apenas, a diferenciá-los, o
romance lusitânico não
deixou nenhuma certidão de
nascimento, não tinha cotação cambial nem era caçado
pelas agências de rating
como se fosse uma Lolita
clandestina
apanhada
em casa
de alterne, e o euro sofre de
todos
esses achaques
e ataques.
Apenas, e se isto
puder servir
de consolo aos
vindouros, o seu
fim
será o mesmo.
Desaparecer
sem deixar rasto, a não ser na memória do lucro de muitos e do prejuízo de quase todos, e com as
mesmas consequências: entrar
nos
museus dos
estudos
académicos em
alentados
infólios onde,
como
é devido, sedimentará o pó do eterno esquecimento.
Descodificada a complexa
fonalidade do romance
lusitânico, podemos afirmar,
mesmo passando
apenas
pelas beiradas datadoras do carbono 14, que os primeiros desatinos
mandibulares portuguesados decorreram do
seu uso,
tão difícil
e dolorosa
era
a articulação das
palavras
utilizadas. O mais
simples
dos fonemas,
mesmo
corretamente articulado, transformava-se
no que,
hoje,
até os filólogos
mais
pragmáticos e adeptos da
escrita
twitterizada chamam de palavrão. Uma vantagem, porém,
esta (des)estrutura fonal
apresentava: os lusitanos
desconheciam a fonofobia, esta mais
do que
verdadeira praga da
língua
da nossa modernidade, especialmente radiofónica e televisiva.
Contudo,
apesar do pragmatismo
filotwitterizado, é falso que no romance
lusitânico
só houvesse
palavrões.
Pelo contrário.
Assim como
nas florestas dos
Montes
Hermínios quase todas as aves eram (e ainda
hoje, as poucas
que
sobraram, são)
passarinhos,
também no matiz
do romance lusitânico
quase
todas as palavras eram
palavrinhas. O conceito de palavrão
provinha, não do
sentido
despudorado do seu
significado,
mas do esforço
que cada
palavra demandava para
ser articulada.
Por
essa razão, e
apesar
do romantismo do nome,
prevaleceram os argumentos
mandibuliformes dos ortodontistas da época: ou o romance
lusitânico se calava para
sempre
ou as bocas
dos utentes se transformariam em
fauces mastodônticas. Como
não
havia proboscídeos nas montanhas
lusitanas, nem
sequer
fósseis nas cavernas, a expressão “fauces mastodônticas”
logo
ganhou foros de
corolário
demonológico. Atenta a qualquer erupção
mais sibilante, a coorte fundamentalista dos politicamente
corretos
imediatamente aceitou
fornecer
credenciais gratuitas, na
segurança
social da época,
para uso dos
dentímetros, até
então
considerados instrumentos de
bruxedo, e aliou-se aos ortodontistas. Resultado:
quatrocentos anos
após
o primeiro vagido,
o Toletum Concilium, ao abrigo da bula Finita Causa do papa
Engénio II, decretou a falência sonora do romance
lusitânico.
Só
que quatrocentos
anos
são quatrocentos
anos,
não são
quatrocentos reis
nem
quatrocentos euros. O que significa que,
em termos
de prosódia, seja
qual
for o calendário medidor,
quatrocentos anos, mais bissexto menos bissexto, são mais de doze biliões
e seiscentos milhões de segundos fonológicos.
Considerada essa bilional carrada
de razões, mesmo
falido, o romance
lusitânico ainda
era um
romanção. Com
tamanho
para dar e
vender.
Ou até,
se necessário, alugar
a estrangeiros interessados em
investir em paixões incrementadas. E foi
como
tal, com
toda a força
daquele “anção”, que o romance lusitânico encarou o açaimo. Ao invés
de aceitar o fim
dos decibéis e empoeirar-se apenas como decoração de museus
académicofonológicos, empacotou armas
e bagagens e foi cultivar
milho-duro em
vale
de lençóis, bem a
salvo
de olhares e
ouvidos
indiscretos.
A resolução não agradou nem
os gregos
nem
os troianos fecundantes. Mas estava tomada
e não cabia
recuar.
Com a coorte
fundamentalista
dos politicamente corretos sempre vigilante e farejando
o rasto do cultivo,
não fosse a
dureza
do milho
macular
a melhor das
intenções, a solução
era
sair. E saiu, fazendo dos lençóis velas enfunadas e dos colchões
tessitura viageira. E por mares nunca dantes navegados navegou e navegou, e a salvação,
finalmente, apareceu no berro terra à vista!, alguns
minutos e
segundos
depois do
cruzamento
do paralelo 16
com
o meridiano 39, a
sul
e oeste do
ponto
de partida.
Berro
que, atestam os cronistas coetâneos, com a metacafonia crestada pela
dura canícula
tropical, arrancou
dentes
e amígdalas e estourou peitos e lombrigas
terra adentro.
E foi nessa de canícula
que o romanção deu no que deu. Cresceu tanto
em altura
e comprimento
que
virou até
Carta
de Pero Vaz e caminhou nas suas vergonhas, tão altas, tão
cerradinhas e tão
limpas
das cabeleiras
que, de as nós
muito
bem olharmos não
se envergonhavam. E sem vergonha nenhuma, nunca
ninguém mais
se envergonhou nesta e noutras terras onde caniculou o romanção.
Mesmo
com o Novo Acordo Ortográfico e o decoro
parlamentar obrigatórios,
só ladrão
de galinha
ou
desafeto partidário
entram na cadeia, revogadas as disposições em contrário, como
manda a lei
da boa educação e
vizinhança.
Cunha
de Leiradella |
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Cunha de Leiradella (Póvoa de
Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que
escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder,
Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha
urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas
línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria
Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte:
caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento,
etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando
Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão,
1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em
Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt |