REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | Número 27 | Maio | 2012

 
 

 

 

CUNHA DE LEIRADELLA

 

Romance lusitânico

 

                                                                  
 

EDITOR | TRIPLOV

 
ISSN 2182-147X  
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Dir. Maria Estela Guedes  
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          O romance lusitânico foi a língua falada na Lusitânia do século VI ao século IX. Mas, apesar de não deixar nenhum documento escrito, sempre foi mais do que um romance. Ou até do que uma novela de televisão. Na verdade, a ver pela sua composição metacafónica, o romance lusitânico foi um verdadeiro novelão.

         Entretanto, muito para além do tamanho desse “velão”, o romance lusitânico, a “Rádio Penedo” das invasões dos povos germânicos na Península Ibérica foi, historicamente, o primeiro sinal antiglobalização de quememória nas terras que hoje chamamos Portugal. Comparativamente, o romance lusitânico, como agente antiglobalização romana teve a mesma importância que hoje tem o euro como agente antiglobalização americana. Apenas, a diferenciá-los, o romance lusitânico não deixou nenhuma certidão de nascimento, não tinha cotação cambial nem era caçado pelas agências de rating como se fosse uma Lolita clandestina apanhada em casa de alterne, e o euro sofre de todos esses achaques e ataques. Apenas, e se isto puder servir de consolo aos vindouros, o seu fim será o mesmo. Desaparecer sem deixar rasto, a não ser na memória do lucro de muitos e do prejuízo de quase todos, e com as mesmas consequências: entrar nos museus dos estudos académicos em alentados infólios onde, como é devido, sedimentará o do eterno esquecimento.

Descodificada a complexa fonalidade do romance lusitânico, podemos afirmar, mesmo passando apenas pelas beiradas datadoras do carbono 14, que os primeiros desatinos mandibulares portuguesados decorreram do seu uso, tão difícil e dolorosa era a articulação das palavras utilizadas. O mais simples dos fonemas, mesmo corretamente articulado, transformava-se no que, hoje, até os filólogos mais pragmáticos e adeptos da escrita twitterizada chamam de palavrão. Uma vantagem, porém, esta (des)estrutura fonal apresentava: os lusitanos desconheciam a fonofobia, esta mais do que verdadeira praga da língua da nossa modernidade, especialmente radiofónica e televisiva.

Contudo, apesar do pragmatismo filotwitterizado, é falso que no romance lusitânico houvesse palavrões. Pelo contrário. Assim como nas florestas dos Montes Hermínios quase todas as aves eram (e ainda hoje, as poucas que sobraram, são) passarinhos, também no matiz do romance lusitânico quase todas as palavras eram palavrinhas. O conceito de palavrão provinha, não do sentido despudorado do seu significado, mas do esforço que cada palavra demandava para ser articulada.

Por essa razão, e apesar do romantismo do nome, prevaleceram os argumentos mandibuliformes dos ortodontistas da época: ou o romance lusitânico se calava para sempre ou as bocas dos utentes se transformariam em fauces mastodônticas. Como não havia proboscídeos nas montanhas lusitanas, nem sequer fósseis nas cavernas, a expressão “fauces mastodônticas” logo ganhou foros de corolário demonológico. Atenta a qualquer erupção mais sibilante, a coorte fundamentalista dos politicamente corretos imediatamente aceitou fornecer credenciais gratuitas, na segurança social da época, para uso dos dentímetros, até então considerados instrumentos de bruxedo, e aliou-se aos ortodontistas. Resultado: quatrocentos anos após o primeiro vagido, o Toletum Concilium, ao abrigo da bula Finita Causa do papa Engénio II, decretou a falência sonora do romance lusitânico.

que quatrocentos anos são quatrocentos anos, não são quatrocentos reis nem quatrocentos euros. O que significa que, em termos de prosódia, seja qual for o calendário medidor, quatrocentos anos, mais bissexto menos bissexto, são mais de doze biliões e seiscentos milhões de segundos fonológicos. Considerada essa bilional carrada de razões, mesmo falido, o romance lusitânico ainda era um romanção. Com tamanho para dar e vender. Ou até, se necessário, alugar a estrangeiros interessados em investir em paixões incrementadas. E foi como tal, com toda a força daquele “anção”, que o romance lusitânico encarou o açaimo. Ao invés de aceitar o fim dos decibéis e empoeirar-se apenas como decoração de museus académicofonológicos, empacotou armas e bagagens e foi cultivar milho-duro em vale de lençóis, bem a salvo de olhares e ouvidos indiscretos.

A resolução não agradou nem os gregos nem os troianos fecundantes. Mas estava tomada e não cabia recuar. Com a coorte fundamentalista dos politicamente corretos sempre vigilante e farejando o rasto do cultivo, não fosse a dureza do milho macular a melhor das intenções, a solução era sair. E saiu, fazendo dos lençóis velas enfunadas e dos colchões tessitura viageira. E por mares nunca dantes navegados navegou e navegou, e a salvação, finalmente, apareceu no berro terra à vista!, alguns minutos e segundos depois do cruzamento do paralelo 16 com o meridiano 39, a sul e oeste do ponto de partida. Berro que, atestam os cronistas coetâneos, com a metacafonia crestada pela dura canícula tropical, arrancou dentes e amígdalas e estourou peitos e lombrigas terra adentro.

         E foi nessa de canícula que o romanção deu no que deu. Cresceu tanto em altura e comprimento que virou até Carta de Pero Vaz e caminhou nas suas vergonhas, tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos não se envergonhavam. E sem vergonha nenhuma, nunca ninguém mais se envergonhou nesta e noutras terras onde caniculou o romanção. Mesmo com o Novo Acordo Ortográfico e o decoro parlamentar obrigatórios, ladrão de galinha ou desafeto partidário entram na cadeia, revogadas as disposições em contrário, como manda a lei da boa educação e vizinhança.

 

         Cunha de Leiradella

 

 

Cunha de Leiradella (Póvoa de Lanhoso, Portugal, 16.11.1934)
Emigrou para o Brasil em 1958. Desemigrou em 2003, mas foi lá que escreveu a maior parte da sua obra. Peças de teatro (Laio ou o poder, Judas, As pulgas, etc.), romances (Cinco dias de sagração, Guerrilha urbana, Apenas questão de método, etc.), contos (Fractal em duas línguas, Síndromes & síndromes (e conclusões inevitáveis), O que faria Casanova?, etc.) e roteiros para cinema e televisão (Belo Horizonte: caminhos, O circo das qualidades humanas, Vestida de sol e de vento, etc.). Com isto ganhou alguns prêmios (no Brasil, Prêmio Fernando Chináglia, 1981, I Concurso de Textos Teatrais Rede Globo de Televisão, 1982, Prêmio Humberto Mauro, 1997, no México, Prêmio Plural 1990, em Portugal, Prêmio Caminho de Literatura Policial, 1999, etc.).
Contacto: leiradella@sapo.pt

 

 

© Maria Estela Guedes
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