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Nietzsche dizia „quem tem um porquê para viver, suporta quase cada
como”. O problema está para quem não tem porquê nem como. Sim, até
porque a vida é mestra e a História obriga.
Na luta da vida, uns ganham, outros perdem e outros nascem perdidos. De
permeio fica a perspectiva individual, numa atmosfera social mais ou
menos intoxicada, diria eu.
Nos primórdios da humanidade, os nossos antepassados
caçadores-colectores esfalfavam-se em manada atrás da caça e da fruta.
Levavam uma vida nómada e na luta pela subsistência viam-se obrigados a
viver na manada.
Na sequência dos hábitos ancestrais de caçadores-colectores, pratica-se
também hoje a caça e a colecta nos centros comerciais (“Shoppings”).
Escarmentados das fadigas invernais sentimos cada vez mais o prazer no
ter do que no ser. Surge o prestígio e este baseia-se já não na
necessidade directa mas na ideia (necessidade construída). A satisfação
e o prestígio de ter passam a impor-se ao do ser. A massa já não segue
em direcção à caça, mas o sentido da ideia dela.
As pessoas perdem a individualidade pensando e vivendo cada vez mais em
termos de manada. Do tédio da monotonia redil surge a necessidade de se
diferenciar numa corrida ao prestígio baseado na ideia do sucesso
económico.
A animalidade individual, agora encarcerada numa cultura domesticadora
procura os seus tubos de escape numa ideia de distinção e de liberdade
apregoada pelo mercado. Os pobres de cima e os pobres de baixo, tudo em
fuga, vivem da futilidade dum ter mais que o outro e duma distinção que
se revela no poder de compra. Cada um quer levar o mundo às costas,
querem tudo na sua mochila. Na luta contra o caos afirmam-se as forças
da animalidade violenta de uns contra os outros. De momento, grande
parte das elites financeiras manifesta-se como extremista e sem um
conceito ordenado de sociedade. A brutalidade de oligarquias torna-se
exemplar para as bases que a sustêm levando-as primeiramente à
desorientação e depois à anarquia.
Uma sociedade que não canalize a brutalidade dos seus membros está
irremediavelmente perdida. Para o poder necessitará de ideais e metas
metafísicas. As estruturas precisarão de homens bons e a contrabalançar
os seguidores da oportunidade. Doutro modo, sob o impulso de canalizar a
animalidade, continuarão a esconder-se, por trás dos bastidores, os
interesses individualistas, nacionalistas e ideológicos. Estes só querem
indivíduos e não pessoas, querem apenas clientes e crentes. Neste
sistema, quem não pertencente ao rebanho, não orienta a inteligência em
benefício próprio. Uma sociedade sem consciência pessoal e comunitária
transcendente e que engendra para cada qual um deus indiferente que tudo
permite deixa a bestialidade humana governar.
A natureza, para não estagnar, não quer harmonia. Ela tem, além dum
sentido imediato, um sentido telelógico, virado para uma meta, um
objectivo sempre mais distante do que a mira da nossa caçadeira alcança.
Quem não descobrir essa meta será condenado, como Sísifo a empurrar
repetidamente uma pedra (a sua vida) até ao lugar mais alto da montanha
para a ver rolar de novo para o fundo dela.
Depois de cada caçada, de cada compra, de cada vitória fica a depressão
do desconsolo duma caçadeira descarregada, de vida vazia. Resta a
sensação de um caçador cansado, a subir a encosta, à semelhança de
Sísifo no mito.
Sísifo quer-nos alertar para uma vida digna de viver e para a
necessidade de intervir no destino. Primeiro procura-se o que dá
alegria: um trabalho, uma casa, uma criança; depois vem a insatisfação,
da falta duma tarefa, da falta de realização.
No caso de desemprego inutilizam-se as próprias capacidades e
conhecimentos. Pior ainda; a sociedade só exige e não louva, o que
diminui a satisfação. O horizonte reduz-se, cada vez mais, ao panorama
dos próprios problemas. Por fim o cenário pode reduzir-se a si mesmo.
Sem a perspectiva do outro não haverá realização.
Uma existência sem metas é vida desperdiçada e perdida
Uma vida sem metas é como um carro com motor em ponto morto, só gasta e
desgasta ou anda à roda como os carrinhos eléctricos das feiras.
Desde a natureza à lógica e ao sentimento, tudo funciona em termos de
fim. O ciclo da trajectória duma semente não é terminar nela; contra
isto fala a evolução e a ânsia de sentido no mais profundo de cada
coração. O sentido encontra-se não só em nós, no todo mas também fora
dele. Tudo se encontra a caminho, a natureza inteira, cada povo e cada
pessoa. O seu ser não se reduz ao caminho como apregoam os barateiros do
mercado.
Sentido é algo subjectivo mas um consolo apenas subjectivista
(individualista) encerraria o ser num labirinto. O sentido
experimenta-se na relação entre o eu e o nós, numa relação de diálogo
binário e trinário dum receber e dar para mais criar. A natureza
orienta-nos para o futuro, muito embora o futuro não seja o seu fim.
É verdade que o sol nasce todos os dias. Ele parece resumir o sentido
que a semente sente numa continuidade repetitiva a caminho dum
chamamento imanente e transcendente. Aquele chamamento vem dum fora
dentro a que o próprio Sol obedece no reconhecimento dum sentido maior.
A vida individual, familiar, social e nacional ocidental encontra-se
ameaçada pelo facto de não reconhecer algo que a transcenda, não
conhecer uma meta mais abrangente que não seja o ciclo das estações do
ano. Tudo circula então em torno do próprio umbigo como se cada um fosse
o umbigo do mundo. Uma multidão sem necessidade de dar à luz. Um mundo
assim concebido já não precisa de heróis nem de santos, acomoda-se ao
destino duma rota de exploradores e explorados.
Prometeu, protótipo do homem grego, foi herói ao conseguir roubar o fogo
dos deuses para o dar ao humano. Este, ao desistir do fogo dos deuses
será reduzido à condição de prisioneiro e acorrentado à própria
arrogância e entregue, pelos deuses, à voragem das águias que se
alimentarão do seu fígado. Ao acomodar-se à fuga do medo não chega a
experimentar a satisfação de que a rebeldia por fim lhe trará
consolação.
Equivoca-se a política ao reduzir a vida pública a uma mera luta de
interesses entre grupos. Erra a psicologia que se fixa no ego,
encurtando o horizonte da pessoa a ela mesma e a vida a uma mera
estratégia de sobrevivência individual, dando receitas que não passam de
anestesiantes para um ego que sofre de miopia. Por isso, a sociedade,
cada vez produz mais doentes e a frustração individual está cada vez
mais patente.
Geralmente procura-se a solução para os problemas onde ela não pode
estar. Coloca-se a bola da vida nas mãos dos donos de matraquilhos
ignorando que eles, consciente ou inconsciente, pretendem levar a bola
ao seu buraco. Uns e outros parecem adiar a vida em trips de egos. Por
falta de panorama limitam-se a ajudar Sísifo a subir a montanha para de
novo cair a seus pés.
Uma solução que se contenta com a satisfação do eu, só em si, não
satisfaz porque empobrece a pessoa, reduzindo-a à condição de Sísifo. A
concentração no ego possibilita a masturbação mas não a criatividade,
realiza-se à margem da evolução.
No mercado da praça pública encontramos muitos profetas do ego. Até
parecem que têm a vida para dar ao oferecerem mais sexo, mais droga,
mais liberdade, como se fossem os donos disto. Eles fixam o bem-estar a
um hedonismo que reduz a felicidade ao acto de striptease, ao acto do
momento, como se o dia não tivesse um nascer e um pôr-do-sol, como se o
dia completo não contivesse também a noite. Para que a realidade da
noite não seja consciencializada têm como solução a bebedeira. Muita da
psicoterapia, dos curandeiros, dos espíritas e muito outra boa gente só
ajudam as pessoas a adiar a vida, sempre à cata dum raio de sol fútil. O
pior é que ainda pagam para isso!… Uma vida com sentido é entrega, é
oferecer consciente que no dar se entra em comunicação com o outro e
nele com o próprio profundo. Doutro modo, o sentido duma vida sem
sentido será alimentar os parasitas da vida. Uns como outros correm o
perigo de se encontram virados apenas para si reduzindo o seu sentido ao
alimentar dos vermes do cemitério. Naturalmente que a paciência do verde
da roseira se premeia nas rosas da roseira também na vida humana não
haverá alegria sem sofrer.
A felicidade dá-se no nós, na relação; o eu encontra, ao mesmo tempo, o
seu limite e a sua complementação no outro. A sociedade ocidental
estressou a pessoa reduzindo-a a indivíduo à disposição do seu mercado:
Reduz a praça social a grupos de vendedores concorrentes entre si sem um
sentido individual nem colectivo. Para isso quer uma sociedade aberta
sem biótopos, quer apenas indivíduos indefesos estando, por isso,
interessada em destruir a pessoa (a pessoa, ao contrário do indivíduo,
encontra-se embutida numa paisagem, numa região, num país, numa cultura,
numa família; a ideologia, pelo contrário só conhece uma cor, as cores
do arco-íris de que a pessoa seria portadora constituiria um impedimento
a qualquer ideologia seja ela económica ou do pensamento). Por isso se
vê cada vez mais a afirmação da ideologia do indivíduo contra a pessoa.
O turbo-capitalismo, o socialismo materialista e os déspotas querem
indivíduos despojados de ideias próprias, despojados de família e de
nação. Uma sociedade como a nossa, já a caminho do pôr-do-sol,
infecta outras sociedades emergentes e ensombra a vida com valores já
não de esperança mas de desilusão. Privilegia a força da entropia só
tendo em conta o ego, sem a consciência de que este faz parte dum
biótopo cultural empenhado na construção dum ecossistema espiritual
universal.
O horizonte do nosso ego encontra-se numa relação complementar à
intimidade do nós. Somos o cruzamento duma panorâmica com vários
horizontes, todos eles enquadrados na nossa pessoa e a serem
considerados no trilho da sociedade. Como o Sol tem uma missão em
relação à Terra assim o humano tem uma missão de seguir e criar sentido.
Quem cria e dá sentido sente sentido na vida, realizando-se e
expandindo-se na alegria dos raios sociais que irradia. Então as sombras
da vida já não adoentam, passam a ser canais por onde passa a luz, por
onde passa a vida. Daí surge a satisfação de tornar a humanidade e o
mundo num lugar digno, onde a vida é equacionada e mantida sob o ponto
de vista da pessoa, do universo e do divino.
A futilidade dum viver numa democracia de cidadãos vencedores e
perdedores, de realização individual, sem uma órbitra que transcenda o
eu, só poderá conduzir à frustração do cidadão que constata nas órbitras
das instituições do Estado e da humanidade a repetição da própria
órbitra egocêntrica, apenas um pouco mais alargada.
Falta a consciência duma órbitra universal cujo trajecto se origina no
nós e tende para o nós numa dinâmica complementar. Uma teoria e uma
praxis na perspectiva do nós (comunidade e não mera sociedade)
interromperia a continuidade histórica de exploração (a relação de
caçador e presa) para, na História da humanidade, se introduzir a
sustentabilidade do seu desenvolvimento. Isto para não reduzirmos o
trajecto histórico a um movimento rotativo de explorados e exploradores.
Doutro modo a nossa vida dará sustentabilidade à reiteração da
exploração e da lamentação, continuando a História ordenada em dois
acampamentos: dum lado os mais solidários, do outro os mais egoístas, os
privilegiados.
Marx pensava poder mudar a humanidade e a natureza humana, se se
acabasse com a propriedade privada. O seu erro foi querer reduzir tudo
ao ciclo da matéria e querer sacrificar as diferentes esperanças da
humanidade à sua esperança, não contando que a realidade consta de erros
complementares que possibilitam o alívio do mal. Há muitos caminhos na
tentativa de superar o mal e de melhorar a sociedade. Será tarefa de
todos fazer desembocar o seu caminho na comunidade e no respeito da
diferença. Uma só solução é engano.
Até hoje, as revoluções criam novas classes dominantes que se legitimam
com novas ideias impostas ao povo e aos vencidos. A ilusão voa mas o
sofrimento provocado pelo ser humano é continuado sob o sol de novas
explicações e dominações.
A tarefa apontará no sentido de se agir a partir do ponto de vista do
nós. Para isso ajuda um princípio duma ética universal digna: não faças
ao outro o que não queres que te façam a ti. A ética superior das
bem-aventuranças poderá ficar para uma segunda fase da evolução da
humanidade. Por enquanto continuamos a ser crianças contentando-nos com
o jogo das escondidas.
Cada sistema de valores corresponde a um ecossistema cultural aferido à
geografia, às necessidades e desejos de cada biótopo. Destruí-los em
nome doutras grandezas seria crime. Há que disponibilizar o sol para
todos. A óptica divina apela à consciência duma perspectiva universal
num mundo a ter de se recriar: um mundo de luz e de treva de todos para
todos. |