PRIMEIRO QUADRO
(sala do paço de Apar
de São Martinho; luz da manhã; ouve-se ao longe um bafordo de armas)
Álvaro Pais
El-rei dom Fernando
finou-se. A senhora dona Beatriz, filha única do matrimónio d’el-rei
defunto, é rainha de Castela. E os tratos de Salvaterra, nos quais quis
el-rei descansar a cabeça, são para rasgar. E nenhum cuidado nos daria
esse abandono, se el-rei de Castela, o senhor dom João, conviesse ao
reino e a Lisboa. Mas não convém.
João das
Regras
Explicai-vos, senhor.
Álvaro Pais
Não se há-de ligar pela
vontade dos homens o que naturalmente é entre si contrário. O Tejo e o
Guadalquivir correm na mesma direcção e sempre as suas gentes disputarão
o mesmo mar. Lisboa e Sevilha são rivais e cada uma há mister de seu
senhor.
João das
Regras
Os reis de Castela já se
fizeram coroar reis de Portugal na Sé de Toledo. As bandeiras de seda,
ao que se diz, cosiam as armas de Castela às de Portugal. Não foi o que
me dissestes senhor conde de Barcelos?
João Afonso
Teles
À boa fé o disse e ora o
repito! No fim com a bênção do arcebispo primaz das Hespanhas, o alferes
do reino até deu vozes de aclamação a el-rei dom João de Castela e
Portugal.
Leonor Teles
(rosto coberto por véu)
Escutai, senhores. A
rainha de Portugal, governadora e regedora destes reinos, por nada
esquecerá os ajustamentos feitos em Salvaterra pelo arcebispo de
Santiago, em nome do seu rei, meu genro, e pelo conde de Ourém, dom João
Fernandes Andeiro, em nome d’el-rei dom Fernando de Portugal. Por esses
tratos se estabelece que a regência e o governo destes reinos cabem à
rainha. E por eles se impede a união das duas coroas. Só o herdeiro de
minha filha poderá reinar em Portugal, nanja meu genro.
Álvaro Peres
de Castro
E caso não haja herdeiro,
a coroa passará para o filho varão de Inês de Castro, o senhor infante
dom João, que o povo adora hoje com o mesmo ardor com que outrora adorou
o pai, el-rei dom Pedro, o doido que deu a beijar a mão dum cadáver ao
reino mas que o povo tomou por pai, dizendo que em Portugal nenhum tempo
houvera como o dele.
João Afonso
Teles
Assim é, senhor. Os
tratos de Salvaterra foram feitos para equilibrar as duas facções em que
então se dividia a corte portuguesa, a que defendia el-rei de Castela,
como o senhor bispo de Lisboa, dom Martinho, e a que tomava partido
contra ele, a favor dos ingleses do conde de Cambridge e do duque de
Alencastre, como o senhor dom João Fernandes Andeiro, conde de Ourém.
Álvaro Pais
E agora de tratos
rasgados não mais se podem colar as duas partes da corte portuguesa. Uma
para Castela irá, chamando a senhora dona Beatriz, e a outra se vai para
Londres, a pedir o senhor duque de Alencastre.
João das
Regras
Hemos então guerra com os
Castelhanos. Ainda a última foi ontem e já nos avisamos para nova.
Álvaro Pais
Tendes receio, doutor? Se
dela sairmos vencedores e for a derradeira até os coxos irão festejar.
Para isso precisamos de ter o valimento forte do senhor conde de Ourém.
Só ele pode ajustar modo de trazer a Portugal o senhor dom Edmundo.
Leonor Teles
O senhor conde de Ourém
já uma vez trouxe a Portugal o senhor conde de Cambridge. Todos vós
lembrais as cinquenta velas inglesas que entraram no Tejo com três mil
homens de armas. El-rei de Castela, tão temeroso dos nossos, nem se
atreveu a atravessar o Caia. Já dele se dizia por toda a raia, que
venga, que vaya, de Badajoz al Caia. Agora de novo os trará. Os
ingleses são bons aliados, mas sem a nossa braveza o reino se perderá.
Haja crença, senhores! (os presentes brindam, em círculo, à volta da
rainha, com vozes de guerra)
João Afonso
Teles
Que propondes entonces,
senhora?
Leonor Teles
Medidas defensivas
imediatas nas estremas do reino, de guisa a cuidar do Alentejo, perto do
qual se encontram já, segundo nota dos esculcas, as hostes d’el-rei de
Castela. Meu mano, mestre de Avis, que tão bem senhoreia as terras de
entre Tejo e Odiana, será o novo fronteiro do Alentejo. Defenderá as
vilas e os castelos da sua Ordem ao mesmo tempo que porá em respeito os
homens d’el-rei dom João de Castela. Nenhum lhe negará valimento.
Mestre de
Avis
Agradeço-vos, senhora, a
confiança. Sois mulher mui inteira e de coração cavaleiroso. Nem as
antigas amazonas eram tão corajosas como vós. A minha espada orgulha-se
de vos servir, senhora. Hoje partirei de modo a chegar à Azambuja e se
possível logo passar a Salvaterra e Coruche. Amanhã mesmo chegarei a
Estremoz, onde mandarei reunir os alcaides da província.
SEGUNDO
QUADRO
(a mesma sala; a mesma
luz da manhã; damas sentadas num banco corrido broslando tecido;
cortesãos falando com a rainha; ao fundo dois músicos tocando atabales)
Leonor Teles
(sempre de rosto velado)
Que surpresa irmão!
Fazia-vos já a caminho da torre nova de Estremoz, de modo a ordenares a
atalaia da estrema. Dizei-me, mano, o que vos fez tornar de vosso
caminho?
Mestre de
Avis
Sabei, senhora, que me
falece carrego para tão pesado encargo. Torno pois para me dardes mais
vassalos e assim vos poder servir como cabe à minha honra e ao vosso
serviço.
Leonor Teles
Assim se fará, mano. O
senhor João Gonçalves buscará o registo de vassalos da comarca de entre
Tejo e Odiana e proverá ao vosso desembargo.
(sai o Mestre, seguido
pelo escrivão; regressa daí pouco o Mestre só)
Mestre de
Avis (embaraçado, mão na adaga)
Senhora, tenho outro caso
a tratar no paço…
Leonor Teles
Mas, irmão, por que
haveis entrado no paço assim sanhudo? Sabei que os Ingleses hão o mui
bom costume de quando são com os seus não trazer armas e quando são na
guerra então levam e usam delas como todo o mundo sabe.
Mestre de
Avis
Senhora, grande verdade é
essa. Mas tal fazem eles porque hão amiúde guerras e poucas vezes paz.
Mas a nós é o contrário; havemos amiúde paz e poucas vezes guerra.
Assim, se na paz não usamos as armas, na guerra nem suportá-las podemos.
João
Fernandes Andeiro
Razão, senhora, tem vosso
irmão. Demais o tempo que agora corre é de guerra não de paz. Usem-se
pois as armas, mesmo no paço, junto das damas, onde é hábito
ensarilhá-las.
Leonor Teles
Pois que seja assim. Má
coisa é porém a guerra que traz as armas para o pé de damas inocentes
que broslam os enfeites das colgaduras de suas casas ou das vestes de
seus maridos e filhos.
João
Fernandes Andeiro
Por invulgar que este
tempo seja, também nele se come. Não é assim, senhor dom João? Vinde
pois comer comigo ao paço do Rossio. Logo tomareis vosso caminho com os
nomes dos novos contiados que o escrivão vos arranjou.
Mestre de
Avis
Escusai, senhor, mas não
comerei convosco, que na alcáçova do castelo me têm o comer feito.
João
Fernandes Andeiro
Entonces prestes me vou,
que esperam por mim para jantar.
Mestre de
Avis
Não vades já, conde.
Vinde, vinde vós comigo para a câmara do lado, que tenho lá cousa muito
do vosso interesse para vos falar.
(afastam-se os dois e
desaparecem por uma porta; daí a pouco a escolta dos escudeiros do
Mestre segue-os; um deles posta-se à porta de mão no bulhão; ouve-se a
voz do Mestre)
Mestre de
Avis
Quedos! Está morto! Nem
mais uma punhada. Ensarilhemos os estoques e andemos preste. Ide cerrar
as portas para nenhum dos do conde vir para dentro e depois ide pela
cidade, aos brados, pedindo ajuda para o Mestre, dando sinal na torre de
São Roque de tudo o que aqui se passou ao senhor Álvaro Pais.
TERCEIRO QUADRO
(mesma sala; noite
cerrada; uma vela acesa; Mestre de Avis e Álvaro Pais aguardam; Leonor
Teles assoma)
Leonor Teles
(sempre coberta)
Quem mata um bom vassalo,
velho e sem armas, em câmara de donas, também é capaz de matar uma
mulher só, pela calada da noite. Se assim é, aqui me tendes. Tomai meu
peito para nele encharcardes o bulhão da traição. (aparte) E eu
que vos chamava mano…
Mestre de
Avis
Senhora, vós que tanta
falta fazeis ao reino… Deus vos guarde para sempre de todo o mal. Não
haveis temor, senhora! Nem eu, nem o senhor Álvaro Pais, vimos aqui para
vos empecer com maldades. Sois a rainha, a nossa senhora! Bons e leais
servidores aqui tendes cerca de vós. Do mesmo modo Lisboa, a cargo do
senhor Álvaro Peres de Castro, irmão da linda Inês, vos rende preito.
Boas armas para vos servir contra a invasão de Castela.
Leonor Teles
Bons e leais servidores,
dizeis vós? Por que houvestes então de matar um homem desarmado em minha
câmara, junto de inocentes donzelas?
Álvaro Pais
Sabei, boa senhora, que
isso são cousas do tempo que passa. Numa guerra como esta que ora temos
com Castela há que fazer tratos e sacrificar partes. Alguém nos pediu a
morte do senhor conde João Fernandes, com cobiça no lugar dele junto dos
ingleses… e de vós. Outro conde… Não lhe chegava ser conde uma vez…
Leonor Teles
Falais de João Afonso
Teles, meu irmão? Doida ambição que o move. Que presunção a dele! Há-de
perdê-lo, como o perdeu em Saltes, no tempo d’el-rei dom Fernando.
Álvaro Pais
Descuidai disso agora,
senhora. O conde de Ourém era homem de bem, de muito aviso e cuidado,
estimado dos ingleses, mas outros há que podem fazer o serviço que ele
nos fazia. Dois vassalos vossos, Lourenço Martins e Tomás Daniel, estão
prestes a partir para Londres como embaixadores de vossa causa.
Mestre de
Avis
Um cavaleiro como o conde
de Barcelos, vale muitos centos de homens de armas. Não se pode deixar
que abale para o lado dos de Castela.
Álvaro Pais
Assim é, senhora! Cousas
do tempo que passa! O Mestre traz um pedido para vos fazer…
Mestre de
Avis
Perdão vos quero pedir,
porque vos errei, matando um vassalo sem armas no vosso paço. Deus sabe
que minha tenção não foi errar-vos, mas apenas tirar desforço dum homem
que estorvava nossas vidas. Mas porque usou ser em vossa casa que esta
obra se fez, matando-o eu quase diante de vós, mercê vos peço. Se este
erro me perdoardes, ainda Deus me permitirá fazer-vos mui bom serviço
nas cousas que me mandardes e noutras de que vos falaremos a seguir.
Álvaro Pais
Olhai, senhora, que até
Deus perdoa ao homem mais teimoso, se este errou com erro grosso e lhe
pede perdão.
Leonor Teles
Boas razões são essas,
Álvaro Pais. Mas perdoado é o Mestre de seu; primeiro, pelas razões que
aqui nos deu, depois, porque só Deus pode perdoar coisas assim vedadas
desde o tempo do Decálogo. Sobeja dar-lho eu, que nada valho. Não há
pois mais que pedir perdão. Mas haveis vós vindo apenas para requerer
mercê? Fazia-vos mais zelosos…
Álvaro Pais
Não, boa senhora. O
negócio que aqui nos traz é outro. E mais sério para vós e para o reino.
Vimos dizer-vos que por todo o reino se estão a formar uniões de gente
para o defender da invasão castelhana. O povo de Lisboa exulta confiante
e pede que vos mostreis à capital do reino.
Leonor Teles
Ao que me dizem, Lisboa
só ouve agora o Mestre.
Álvaro Pais
Sabeis que o infante dom
João de Castro, filho varão da senhora dona Inês, está preso em Castela
e sem possibilidade de regressar ao reino. Seu irmão, o infante dom
Dinis, ao que corre, anda fugido nos fojos dos Pirenéus, a ver se escapa
aos alãos do rei de Castela. Assim sendo, o povo agarrou-se ao Mestre,
que também é filho d’el-rei dom Pedro, que tão boa memória deixou de si
em Lisboa. Quem não recorda as noutes em que el-rei saía da alcáçova com
os atabales a rufar e ele no meio a tocar pandeiro e a bailar? Todos
saíam das moradas e se metiam na roda em danças e trebelhos até na Sé
baterem as badaladas da hora de prima. De manhã mandava el-rei pôr
vianda e vinho no Rossio para todos. E tudo isto fazia dom Pedro, diziam
os antigos, pela paixão que havia à senhora dona Inês de Castro. Por
isso o povo de Lisboa e os seus maiorais querem muito ao senhor dom
João, Mestre de Avis e filho d’el-rei dom Pedro. E muito lhes aprazaria
vê-lo casado com a rainha de Portugal.
Leonor Teles
Que dizeis, senhor Álvaro
Pais?
Álvaro Pais
Que o povo de Lisboa vos
quer bem e por isso vos deseja ver casada com o filho d’el-rei dom Pedro
que temos entre nós, o Mestre de Avis.
Leonor Teles
Que sandice, santa Maria
val! E vós que dizeis, senhor dom João?
Mestre de
Avis
Que sempre vos amei desde que meu irmão, el-rei, vos meteu na câmara das
donas, aqui, no paço de Apar de São Martinho, no tempo de minha irmã,
dona Brites de Castro, ora maridada em Castela. A vossa beleza encantou
Lisboa. Por isso meu irmão, el-rei dom Fernando, se tomou de vós com
tanto ardor. Só houve sossego quando vos quitou de vosso marido, o
senhor João Lourenço da Cunha. Dez anos, se tanto, durou o vosso
casamento com el-rei. Estais, senhora, nova e formosa. Prometo fazer de
vós, Leonor, uma rainha ainda mais amada do que todas as que de si
deixaram memória pelo amor. Já na câmara das donas se dizia que a vossa
beleza excedia a da senhora dona Inês de Castro. Dar-vos-ei um reinado
longo e cheio de volúpia e uma memória mais duradoira do que a da linda
Inês
Álvaro Pais
Sereis uma rainha ainda mais querida do
povo do que aquela que nos veio há cem anos de Aragão e que o povo adora
e chama santa.
Leonor Teles
Grande atrevimento é
falar assim, em maridança e coisas tais, a uma dona que acaba de
soterrar em tão grande nojo o seu amado esposo, também ele filho
d’el-rei dom Pedro. Esqueceis o que uma dama deve a seu amado?
Álvaro Pais
Cuidai senhora doutro
modo neste negócio. Sois vós a rainha e é mister nesta guerra do reino
haverdes o concurso dum homem viril. Só o vosso casamento com o Mestre,
filho de rei, vos pode assegurar esse desígnio. E só ele pode dar ao
reino a segurança que é mister em hora de tanto perigo.
Leonor Teles
Sabei, Álvaro Pais, que
as palavras do Mestre me agoniam; se me visse com ele maridada, em alão
o meteria por esses arvoredos gigantes, que ladrar e obedecer é o único
que lhe apraz fazer.
Mestre de
Avis (desconsolado)
Que dizeis, senhora?
Álvaro Pais
Descuidai, senhor dom
João. A História se encarregará de escarmentar quem assim diz. Pena que
uma tão boa dona, destinada a ser a mais querida rainha do seu povo, se
vá ainda transformar na mais aleivosa das mulheres que pela portuguesa
terra passaram.
Mestre de
Avis
Grande arte é a vossa,
senhor Álvaro Pais.
Álvaro Pais
A mesma que transformou
um bom vassalo como João Fernandes Andeiro, que até as chaves de sua
terra galega deu a el-rei dom Fernando, e que foi o primeiro a
estabelecer a aliança entre Ingleses e Portugueses, num tredor fementido,
no pior perjuro vendido aos castelhanos. É de atoardas que se fazem as
grandes revoluções. Isto me ensinou o meu enteado, o doutor João das
Regras, que o aprendeu em Bolonha dos antigos Romanos.
Mendiga
(assomando
ao postigo)
Que interessa o mundo, se
a sua ordem é a cobiça e a mentira? Que interessa, se ele é roubo e
traição? Mais nobreza tem quem pede do que quem rouba.
O Director do
Jardim Zoológico
(assomando
ao mesmo postigo)
A civilização é a
capacidade de salvaguardar a verdade, ou a sua aparência, quando é
preciso mentir e trair. A verdade é a dissimulação da mentira.
Mendiga
É preferível ser loba com
fome, delirar de febre, do que cadela fechada num canil, de coleira ao
pescoço e mordaça na boca.
Leonor Teles
(descobrindo o rosto)
São mais dignos os rotos
trajes duma mendiga do que as jóias da coroa de Portugal. Mais real é
aquele que abdica do que aquele que cobiça!
O Gigante
Verde
(homenagem
a Manuel Granjeio Crespo)
Vem! No seio da Natureza
virgem encontrarás os poderes maravilhosos do Sonho que foram roubados à
Humanidade pelo erro da História. |